Túnel do Tempo: Entenda como a urbanização histórica de Salvador moldou a cidade e suas desigualdades
Por Eduarda Pinto
Que Salvador é uma cidade desigual, “todo mundo” sabe. É o que dizem os números de desemprego, segurança pública e divisão de renda. No entanto, para além das pesquisas, algumas disparidades podem ser observadas a “olho nu”, como os padrões urbanos. Para além dos casarões do Centro Histórico ou os prédios de luxo na Barra, a cidade possui “bolsões de pobreza” representados por ocupações populares em bairros de alta renda ou até mesmo zonas inteiras de comunidades mais pobres, que deram origem a Cajazeiras, por exemplo, complexo de bairros que é considerada um dos maiores conjuntos habitacionais da América Latina.
Para entender esse fenômeno, o Bahia Notícias conversou com a arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), Angela Maria Gordilho.
A pesquisadora, que pesquisou os “Limites do Habitar; segregação e exclusão na configuração urbana contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX”, defende que a história da capital baiana, desde a sua liderança histórica no Nordeste a crise econômica que assolou o estado no início do século XIX, ajuda a explicar sua constituição e seus modos de vida contemporâneos.
TÚNEL DO TEMPO
Angela destaca, já de pronto, que a urbanização de Salvador foi imediata: “A gente pode dizer que a cidade urbanizada nasceu desde a sua fundação e era grande, era um dos maiores centros urbanos do Brasil”.
“Isso aí já tem quase 500 anos. A cidade de Salvador foi fundada em 1549, ela é fruto de um projeto que veio de Portugal e quando a cidade foi fundada, ela se edificou onde hoje é chamado o Centro Histórico, que era um pouco menor. Havia duas portas de entrada da cidade, mas ela nasceu toda planejada e cercada na escarpa, ali onde tem o elevador Lacerda, onde tem a prefeitura, porque é ali que se fundou mesmo a parte mais oficial da cidade”, detalha a urbanista.
Ela conta que as portas em questão seriam a Porta de Santa Catarina, localizada entre a Ladeira do Pelourinho e a Ladeira do Carmo, e a Porta de Santa Luzia, onde hoje está localizada a Praça Castro Alves. E apesar da sua longevidade, sendo por mais de 200 anos a capital do Brasil, a cidade cresceu muito pouco até o século XIX (19). “Para você ter uma ideia, em 1900 e nós estamos falando aí de quase de 400 anos depois de fundada, só havia em Salvador em torno de 170.000 habitantes”
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Registro do Palácio Rio Branco, então sede do Governo da Bahia, no ano de 1910. Foto: Acervo / Rodolpho Lindemann
Angela Souza, que atua como professora permanente no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-FAUFBA), descreve que o cenário começa a mudar a partir da virada do século XX (20), com a estabilização das leis anti-escravistas conquistadas ao final do século anterior. A primeira delas foi a Lei Feijó, de 1831, que proibia, em tese, o tráfico de pessoas escravizadas no Brasil a partir da data em questão. O tráfico, no entanto, que era uma prática extremamente lucrativa na época, continuou por décadas, até a chegada da Lei Eusébio de Queirós, de 1850.
Na sequência, o Brasil aderiu a duas legislações importantes antes da abolição: a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a Lei dos Sexagenários, de 1885, que libertavam, respectivamente, os negros, filhos de escravizados, nascidos a partir de 1871 e os negros escravizados com mais de 60 anos. Foi apenas em 1888 que o país aboliu, por meio da Lei Áurea, a escravização de pessoas.
A estabilização das leis gera um declínio na economia rural da Bahia, que era quase totalmente baseada na mão de obra escrava, e dá início ao crescimento dos grandes centros, que gerou grande repercussão nos primeiros 50 anos do século XIX.
“Então, entre 1940 para 1950 é quando começam as ocupações porque exatamente há um declínio da economia rural e essa população negra liberada da escravidão não tinha ou não queria mais estar nas fazendas e saíram. Essa população rural, que a maioria era negra, ex-escravos, vinham para o Centro para tentar sobreviver como ambulantes - isso inclusive se mantém praticamente hoje - e começa a ocupar essas terras do entorno do que se chama Cidade Antiga”, explica.
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Foto: Registros da Boa Vista, região que pertencia a Quinta da Boa Vista, no bairro de Engenho Velho de Brotas
A pesquisadora cita bairros como Brotas e Federação, onde se encontram os primeiros morros da cidade, como pioneiras nessa urbanização. “Naquela época, a grande maioria [da população] era negra mesmo e não podiam ter ser proprietários de terra, então era esse tipo de ocupação, por doações, ou terras devolutas”.
As terras “devolutas” seriam aquelas que passariam a pertencer ao Estado Brasileiro após a Lei de Terras (Lei nº 601), de 1850, que passou a regularizar a compra e venda de terrenos, a propriedade privada e a própria aquisição de terras pelo poder público ao final do sistema de sesmarias no período colonial.
VITÓRIA VS. SUBÚRBIO
Mas o marco da Lei de Terras não foi importante apenas para a população mais pobre ou de classe média, que encontrou residência nos primeiros morros da cidade, mas também deu início a uma das primeiras disparidades regionais de urbanismo dentro da capital.
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Registro do Corredor da Vitória nos anos 1920. Foto: Acervo postal
A urbanista conta que, a partir de 1850, a aquisição legal de terras começa no entorno esquerdo do Centro, expandindo para a região em que hoje é conhecida como “Corredor da Vitória”, bairros como Graça, Barra e Canela. Do lado direito do Centro, onde hoje está a região do subúrbio, por sua vez, era desabitada até meados de 1930.
Angela destaca que o crescimento da região marca o início do crescimento urbano e populacional de Salvador. Considerando que o primeiro trem do estado, que ligava Alagoinhas a Salvador, já operava desde 1860, foi nos anos 30, que o modal permitiu a locomoção de muitos baianos no processo de êxodo rural.
Os grupos mais pobres foram se aglomerando justamente onde hoje se encontram os bairros da Calçada, Bonfim, Uruguai, Bonfim e os antigos Alagados, conhecidos pelas casas erguidas sobre o mar utilizando pedaços de madeira, chamadas de palafitas. Enquanto na “Cidade Alta” os imóveis eram rapidamente comprados e acomodavam famílias tradicionais de Salvador, na “Cidade Baixa” não faltavam terras, mas sim o dinheiro e a possibilidade legal de obter os loteamentos.
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Península de Itapagipe, na Ribeira, entre 1912 e 1919. Foto: Pedro Gonsalves da Silva / Acervo Digital
“Os primeiros loteamentos do subúrbio, só vão acontecer após 1930, mas ficam vazios durante muitos anos porque não tinha quem comprasse. Gente tinha, mas não tinha dinheiro para comprar e algum tempo depois é exatamente essa área suburbana que vai sendo subdividida, as áreas verdes vão sendo ocupadas, aí vira essa grande favela que é hoje o Subúrbio”, explica.
Mas, dentro dessa grande região, a pesquisadora define que havia uma comunidade pioneira. “A primeiríssima que se tem notícia era uma que foi chamada de ‘corta braço’. A gente deduz que o nome seja porque tiraram o capim e para tirar-se o capim e corta braço. Então era chamado de ‘corta braço’ onde é hoje o bairro do Pero Vaz, junto da Liberdade”, diz Angela.
A pesquisadora narra que bairros antigos como a Liberdade não poderiam ser considerados ocupações. “O início da Liberdade são áreas arrendadas de vilas, tinham muitas vilas, corredores de casas. Até 1930, a maioria das casas era arrendada. O arrendamento, em tese, era você possuir uma terra e alugar, e alguém construir a casa em cima. O [bairro do] Garcia é todo assim, [a região da Avenida] Vasco da Gama, [os bairros do] Engenho Velho de Brotas e Engenho Velho da Federação”, detalha.
Mas para além da primeira, Angela diz que é possível identificar a maior delas - ou a que ocupou esse posto por muitas décadas. “A primeira ocupação da cidade foram os Alagados. Que foi um local que cresceu exatamente porque, ‘eu não tenho onde morar e por isso que eu moro na areia ou na água’, então eram palafitas”

Foto: Dissertação UFBA / CARVALHO, E. T. de. (2002)
Ela destaca que os Alagados ocupavam não eram a pequena faixa pela qual ficaram mais conhecidos no final dos anos 90. “Toda aquela área ali onde vai se implantar essa ponte [na região do Comércio e Calçada], tudo aquilo ali eram palafitas. Tudo. Então, foram enterrando com lixo”, relata.
DA ORLA AO “MIOLO”
Considerando que a cidade cresceu “primeiro” na direção da Baía de Todos os Santos, justamente por conta de sua colonização, a orla marítima e o “miolo”, que seria o Centro geográfico da cidade, demoraram mais para ganhar a aparência atual.

Praça Dorival Caymmi em Itapuã por volta dos anos 50. Foto: Acervo público
Angela conta que a orla imediata, aquela que vem depois do Farol da Barra, foi ocupada pelos “novos-ricos”, já que as famílias mais antigas já se acomodavam, há décadas, no Centro. “A cidade mais rica vai crescer ao longo da orla. Ela já crescia, mas a cidade sai da cidade antiga para Pituba, Rio Vermelho, Amaralina, nesse período entre 1940 até 2000, quando se fazem os grandes loteamentos de Itaigara, Pituba. O da Pituba era chamado 'Cidade da Luz', e foi um dos primeiros loteamentos de Salvador e depois o crescimento se espalha lá em meados dos anos 70 e 80.”
Ela conta que outras partes mais “longínquas” da orla de Salvador, como Boca do Rio e Itapuã, que nasceram de pequenas vilas de pescadores e viviam completamente segregadas do Centro Histórico, foram os destinos de moradores mais pobres de comunidades também do Centro, em um processo de gentrificação, ou hipervalorizadão imobiliária da região mais central do município, que era mais povoada.
E antes mesmo que a orla estivesse completamente ocupada, a professora da Universidade Federal da Bahia destaca que o Estado já iniciou o processo de regularização do “miolo” da cidade. “O que é que vai acontecer é que Estado, começa a fazer os grandes conjuntos habitacionais nessa região de Cajazeiras, Fazenda Grande e Sete de Abril”, explica. Ela relata ainda que foi assim que Salvador começou a perder a maioria de suas áreas verdes.

Folheto jornalístico da década de 70. Foto: Cajazeiras On / Reprodução
“A classe média baixa vai para o miolo, que é essa área. Mas só que as áreas do entorno desses conjuntos habitacionais também foram sendo ocupadas e hoje estão todas ocupadas, mas por invasões provocadas pela pobreza”, finaliza.
