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Muito além do esquecimento: Os desafios invisíveis para quem vive com TDAH no Brasil

Por Victor Hernandes

Foto: Imagem Ilustrativa. Joédson Alves/Agência Brasil

Esquecer carteiras, bolsas e documentos em casa, não lembrar de passar roupa ou chegar ao carro sem as chaves. Tudo isso parece algo comum, que já pode ter acontecido com qualquer pessoa em meio à correria do cotidiano. No entanto, esses episódios podem ser marcas constantes na vida de pessoas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

 

O que pode parecer apenas esquecimento, na verdade, trata-se de uma condição complexa, que envolve diversos fatores — da distração até episódios de hiperfoco. O transtorno ganhou destaque e passou a ser mais discutido após uma onda de autodiagnósticos, causada, especialmente, pela circulação de informações na internet, seja em publicações, seja em memes.

 

Nesse contexto, o número de pessoas que passaram por atendimentos ambulatoriais relacionados ao TDAH aumentou nos últimos quatro anos. Conforme dados do Ministério da Saúde, disponibilizados com exclusividade ao Bahia Notícias, foi registrado um crescimento de casos: de 523,6 mil em 2020, para 744,7 mil em 2021, 932,4 mil em 2022 e 978,3 mil em 2023. Já no ano passado, um recorde foi atingido, alcançando 1,06 milhão de pessoas.

 

Fonte: Ministério da Saúde 

 

De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo, o transtorno é caracterizado por sintomas persistentes de hiperatividade, desatenção e impulsividade. Para ele, a condição não deve ser confundida com desorganização, preguiça ou procrastinação — características comumente atribuídas a quem recebe o diagnóstico.

 

“O TDAH é um transtorno do desenvolvimento caracterizado por um padrão persistente e intenso de sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade, que podem se manifestar juntos ou separadamente”, explicou Geraldo.

 

Segundo o especialista, há uma diferença entre TDAH e simples lapsos de memória. Ele ressaltou que a condição pode interferir nas atividades cotidianas e nas relações pessoais de quem é diagnosticado.

 

“A principal diferença é que o TDAH é uma doença que pode afetar diversas áreas da vida de uma pessoa, como o trabalho, o desempenho escolar ou as relações pessoais. Esquecimento e falta de atenção são situações normais do cotidiano; qualquer pessoa está sujeita a isso. Às vezes, estamos tão atarefados em um dia específico que esquecemos de realizar alguma tarefa, e isso é completamente normal”, observou o psiquiatra.

 

Os sintomas do TDAH podem ser divididos em dois grupos. Os de desatenção incluem: dificuldade para se concentrar em detalhes e manter o foco, cometer erros por descuido, esquecer tarefas, perder objetos com frequência e evitar atividades que exigem esforço mental prolongado.


Já os de hiperatividade e impulsividade são: inquietação, agitação de mãos e pernas, falar em excesso, correr em demasia, dificuldade em esperar a vez para falar, interromper os outros e agir sem pensar nas consequências.

 

Foto: Ilustração 

 

DIAGNÓSTICOS E GRAUS
Diferentemente de estereótipos e paradigmas que cercam o TDAH, identificar e diagnosticar o transtorno não é tarefa simples. O processo envolve entrevistas médicas, conhecidas como anamnese, além da análise do quanto os sintomas interferem na rotina.

 

“O diagnóstico é clínico, baseado na entrevista psiquiátrica. Na anamnese é feita uma avaliação comportamental, tanto a partir do relato do paciente quanto de pessoas próximas (pais, professores etc.). Nesse momento, o psiquiatra descarta outras causas e avalia se os sintomas estão presentes desde a infância, se ocorrem em mais de um ambiente (escola, casa, trabalho) e se geram prejuízo funcional”, relatou Geraldo.

 

Para avaliar o grau de comprometimento, utiliza-se uma lista de 26 critérios divididos em quatro níveis de gravidade.

 

“No DSM-5, há uma lista de 26 critérios em escala de quatro níveis. Os primeiros nove itens se referem a sintomas de desatenção; os itens de 10 a 18, a sintomas de hiperatividade e impulsividade; e os itens de 19 a 26 auxiliam no diagnóstico de transtorno de oposição desafiante”, detalhou.

 

Embora seja na infância que os sinais costumam se manifestar de forma mais clara, há pessoas diagnosticadas apenas na vida adulta. Nesses casos, o diagnóstico retrospectivo exige a confirmação da presença de sintomas na infância.

 

Existe ainda a possibilidade de idosos que tenham vivido com TDAH de forma “invisível” durante toda a vida, chegando à terceira idade sem diagnóstico, muitas vezes confundido com doenças como o Alzheimer.

 

A VIDA COM TDAH
Uma das histórias é a do publicitário Josué Oliveira, de 33 anos, diagnosticado aos 31. Em entrevista ao BN, ele contou que, desde a infância, sentia inquietação e buscava experimentar diversas áreas — escrita, pintura e desenho — simultaneamente.

 

Essa curiosidade e proatividade o levaram à comunicação, mas também causaram dificuldades em outras áreas da vida, como relacionamentos e carreira. Ele relatou que tinha dificuldade em manter o foco em uma única tarefa e tendência a dispersar em diversos pensamentos.

 

“Na infância e na pré-adolescência, me sentia deslocado e sem saber o que fazer. Havia esse sentimento de não pertencimento, aliado à agitação. Eu queria ser pintor, desenhista e várias outras coisas. Começava a fazer tudo, mas não conseguia me concentrar em nenhuma dessas atividades”, relatou.

 

Josué contou ainda que o transtorno interfere até em momentos de lazer e descanso, dificultando, por exemplo, o planejamento de viagens.

 

“Afetivamente já foi muito problemático. O TDAH tira a plenitude do planejamento de longo prazo. Você vai marcar uma viagem daqui a seis meses, mas no dia não quer mais ir.”

 

Ele exemplificou também sua tendência a ter pensamentos variados com insights repentinos, como a ideia de criar uma hamburgueria para atletas chamada “Scooby-Mook”.

 

“Estava voltando da academia quando vi uma mochila do Scooby-Doo, muito bonita, com uma cor linda. Pensei em uma hamburgueria focada em comida para atletas e imaginei a Scooby-Mook. Criei todo o design, com o Scooby usando um capacete de motoboy. Fiz o escopo inteiro só porque queria desenvolver a embalagem”, contou.

 

Foto: Acervo Pessoal 

A ansiedade diante do futuro também é um dos incômodos.

 

“Fico tentando prever cenários. Sofro por antecipação, mesmo sabendo que não tenho controle. Sempre estou pensando em como será minha vida daqui a um ou dois anos. É algo que não consigo vencer”, disse.

 

O publicitário também relatou dificuldades nas relações familiares e na paternidade. “Com amigos próximos é tranquilo, porque muitos entendem ou até têm diagnóstico. Já com a família foi complicado. Houve descrédito, sugestões de medicação de tarja preta, comparações com autismo devido ao estigma", disse. 

 

Pai de uma criança de 9 anos, ele mencionou a dificuldade de manter o foco até em conversas com o filho.

 

“Às vezes, me pego pensando se preciso estar de fato naquele diálogo. Para mim, é algo resolvido, mas para ele não. Outro dia ele me perguntou por que a palavra ‘manga’ se refere tanto à fruta quanto à manga da camisa. Eu disse que não sabia e fiquei refletindo. Passo horas preso nesses pensamentos.”

Veja o vídeo de Josué em diferentes momentos de sua vida, após ter o diagnóstico de TDAH 

 

Foto:Acervo Pessoal 

TDAH NA INFÂNCIA
A infância é a fase em que o transtorno costuma ser mais identificado. Além da desatenção, o TDAH pode afetar a memória, o controle inibitório e as relações sociais. Segundo a pesquisadora em neurociência Aline Lisbôa, a impulsividade, comum em crianças e adolescentes com TDAH, muitas vezes resulta em falas constrangedoras ou atitudes agressivas.

 

“O TDAH afeta todas as áreas da vida, especialmente as relações interpessoais, devido à falta de controle inibitório, e pode levar à agressividade. Cerca de 70% dos casos apresentam baixo rendimento escolar a partir dos 6 ou 7 anos de idade. A ausência de concentração, a inquietação constante e a dificuldade de interagir de forma adequada em sala de aula ou em brincadeiras são sinais comuns”, destacou.

 

A pesquisadora classificou os tipos de TDAH em três grupos:

  • Predominância desatenta, com esquecimento frequente e dificuldade de concentração;
     

  • Predominância hiperativa e impulsiva, marcada por agitação corporal e atitudes impulsivas;
     

  • Combinado, que reúne sintomas dos dois primeiros.
     

“O tratamento é essencial, principalmente para adolescentes, que já vivenciaram os danos do transtorno. Não se retira o TDAH da criança, mas ela aprende a lidar com os sintomas e a se autocontrolar”, completou.

 

ATENDIMENTOS E DESMISTIFICAÇÃO 
O aumento dos diagnósticos também se reflete nos números da Bahia. Em 2020, foram registrados 19,8 mil atendimentos ambulatoriais. O total subiu para 33,6 mil em 2021, 43,5 mil em 2022, 42,6 mil em 2023 e 44,3 mil em 2024. 
Embora as causas exatas do TDAH ainda não sejam totalmente conhecidas, estudos apontam para a influência de fatores genéticos, ambientais e de desenvolvimento.

 

Fonte: Ministério da Saúde

 

“Fatores ambientais pré-natais, como consumo de álcool e tabaco, hipertensão, pré-eclâmpsia e estresse durante a gestação, além de baixo peso ao nascer, prematuridade, adversidades familiares e maus-tratos, podem aumentar o risco de desenvolvimento do TDAH”, afirmou dr Geraldo.

 

O psiquiatra reforçou a importância da psicoeducação para combater estigmas.

 

“Desmistificar o TDAH ajuda a reduzir preconceitos e crenças equivocadas sobre a condição. É muito mais do que simples esquecimento”, concluiu.