Museu do Recôncavo reabre na Bahia com reflexão sobre passado escravocrata do país
Quem vem pelo mar vê o casarão imponente nas margens da Enseada de Caboto, na baía de Todos-os-Santos, símbolo de da opulência colonial que se construiu em cima da exploração e de contradições.
Por terra, o ziguezague das vias cercadas por uma vegetação rasteira remonta aos antigos canaviais, base da produção de riqueza de um Brasil que tinha o Nordeste como centro político e econômico.
Instalado em um casarão colonial com 55 cômodos, o Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, em Candeias, a 50 quilômetros de Salvador, será reaberto até dezembro com a proposta de debater o passado escravocrata do país e a meta de se tornar um dos principais equipamentos culturais da Bahia.
Com as portas fechadas há 25 anos, o museu fica na sede do antigo Engenho Freguesia, um dos primeiros engenhos de produção de açúcar do Brasil, criado no século 16. O conjunto arquitetônico é do século 18 e inclui a antiga Casa Grande e a capela de Nossa Senhora da Piedade.
"Será museu que contará a história da escravidão de indígenas e negros no Recôncavo baiano a partir da ótica dos escravizados", afirma Bruno Monteiro, secretário de Cultura da Bahia.
A história do Engenho Freguesia se confunde com a do próprio Recôncavo, região com 33 municípios no entorno da baía de Todos-os-Santos que possui forte influência das culturas indígena e afro-brasileira.
O engenho foi erguido no século 16 em uma sesmaria cedida a Sebastião Álvares após uma guerra contra indígenas tupinambás. Foi incendiado durante a invasão holandesa, depois foi recuperado e viveu seu auge no século 19.
A produção de açúcar foi encerrada em 1899, mas o conjunto arquitetônico foi tombado em 1944. O casarão foi transformado em um museu em 1971, mas estava fechado desde 2000 por problemas estruturais. Confira imagens:
A restauração do complexo foi iniciada em 2018 e custou R$ 42 milhões em recursos do Prodetur, o Programa Regional de Desenvolvimento do Turismo. Além da recuperação das edificações históricas, foi construído um píer para permitir o acesso dos visitantes pelo mar.
Com a conclusão das obras em 2022, o passo seguinte foi definir a concepção artística do museu, aproveitando seu acervo, que continha 260 peças e achados arqueológicos ligados ao ciclo do açúcar.
A exposição permanente é dividida em cinco núcleos, cuja visita guiada segue uma ordem específica. O primeiro é o histórico, que apresenta uma linha desde o Brasil colonial, destacando marcos no Recôncavo baiano.
O segundo espaço é dedicado aos povos originários e reúne fotografias, vídeos e intervenções artísticas, com destaque para os tupinambás que ocupavam aquela região antes da dominação portuguesa.
Na sequência, o visitante poderá conferir o núcleo dos povos escravizados, que exibe documentos e manuscritos digitalizados do poeta Castro Alves, incluindo trecho do poema Navio Negreiro, de 1868.
O núcleo doméstico apresenta mobiliários, retratos e pinturas do período colônia. Eles são apresentados não como uma representação de uma antiga Casa Grande, mas estão dispostos por tipos de materiais. "A gente não queria mostrar a casa do colonizador, do dono do engenho, mas destacar o trabalho feito pelas pessoas naquela casa, como os marceneiros e carpinteiros", afirma Daniela Steele, coordenadora do museu.
A cozinha do antigo casarão, sem janelas e com um conjunto de fornos a lenha, reflete a vivência dos escravizados que ali trabalhavam.
Por fim, a exposição tem um núcleo da memória que apresenta objetos de suplício e tortura, dispostos em estruturas de madeira no chão. Os equipamentos formam a chamada sala do silêncio e são um convite à reflexão.
O percurso completo de visitação pode durar de duas a três horas. Além da exposição permanente, o casarão também terá um espaço destinado a mostras de arte temporárias sob gestão do Ipac, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.
A reabertura vai abrigar a exposição "Encruzilhadas", com obras com temáticas da cultura afro-baiana de 40 artistas, incluindo nomes como Mestre Didi, Emanoel Araújo, Pierre Verger, Rubem Valentim, Juarez Paraíso e Arlete Soares.
As obras fazem parte dos acervos do Museu de Arte Moderna da Bahia e do Solar Ferrão. Pela dificuldade logística de acesso, a ideia é que o espaço abrigue exposições temporárias mais longas.
O espaço também deve sediar residências artísticas, oficinas e atividades com moradores da região, que abriga famílias quilombolas, pescadores e marisqueiras de Caboto e da Ilha de Maré. A ideia é manter o equipamento próximo da dinâmica da comunidade local, diz Monteiro.
"É um espaço muito incorporado à cultura local. Por exemplo, o cemitério do Caboto fica anexo numa área vizinha ao museu. Os cortejos fúnebres da comunidade passam pelo museu. Por isso é uma costura sempre delicada."
