Tribunais federais só preencheram metade das vagas de cotas raciais para juízes desde 2023
Quase metade das vagas reservadas a pessoas pretas e pardas em concursos para juiz deixou de ser preenchida em Tribunais Regionais Federais desde 2023. O número, embora represente um incremento em relação à cifra até então inexistente de aprovados via cotas raciais nesse ramo da Justiça, composto por uma das carreiras mais bem remuneradas do Judiciário, revela gargalos da política.
As cotas raciais foram instituídas pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2015. A regra previa a reserva de, no mínimo, 20% das vagas a pretos ou pardos em todas as carreiras do Judiciário. Na semana passada, o conselho ampliou o percentual para 30% e incluiu novos segmentos. No total, 25% serão reservadas a pretos e pardos, 3% a indígenas e 2% a quilombolas.
Mas há um descompasso, como mostrou a Folha de S.Paulo. Até 2023, nenhuma vaga reservada a pretos e pardos tinha sido preenchida na Justiça Federal. Agora, novo levantamento feito pela reportagem aponta um progresso, apesar da persistência da ociosidade: desde então, 16 magistrados foram aprovados nas 31 vagas reservadas a pessoas pretas e pardas, preenchendo 52% das vagas.
A ociosidade das vagas nos concursos da magistratura costuma se dar pelo fato de não haver número suficiente de candidatos que atinjam as notas mínimas exigidas. É comum sobrarem também vagas ofertadas por ampla concorrência, mas isso tende a ocorrer em maior proporção nas destinadas a políticas afirmativas.
O levantamento considerou os concursos para magistrados concluídos após novembro de 2023, quando nenhuma vaga reservada a pessoas negras havia sido preenchida. Foram identificados processos nos Tribunais Regionais Federais da 1ª Região (AC, AM, AP, BA, DF, GO, MA, MT, PA, PI, RO, RR e TO), 2ª Região (ES e RJ) e 3ª Região (MS e SP).
O número de aprovados via cotas raciais foi obtido na divulgação dos resultados finais dos certames. A quantidade de vagas reservadas foi retirada dos editais de abertura dos concursos.
Por esses critérios, existiam 6 vagas reservadas no TRF-2, das quais 1 foi preenchida. No TRF-3, a proporção foi de 21 para 14 no primeiro concurso e de 4 para 1 no segundo. A reportagem entrou em contato com as cortes, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
O TRF-1 finalizou no período um concurso que havia previsto inicialmente apenas 1 vaga, sendo nenhuma destinada a pretos e pardos. No fim, contudo, como o processo também serve para vagas que surgem ao longo do trâmite, houve 7 aprovados por cota racial. Nesse caso, o dado foi desconsiderado, pois não houve reserva prévia de vaga.
A pesquisadora Inara Flora Firmino, do Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da FGV Direito SP, afirma que a política de cotas na magistratura e as ações afirmativas implementadas pelo CNJ representam um avanço, "o problema é a forma como a ação afirmativa tem sido aplicada e gerida pelos tribunais."
Ela aponta uma saída gradativa de candidaturas negras a cada etapa do concurso, o que se agrava porque "os tribunais não fazem acompanhamento. Eles não têm uma postura de avaliar esse problema, tentar resolver."
Um dos obstáculos para o preenchimento das vagas é financeiro. O processo todo de concurso pode durar um ano ou mais e envolve gastos com materiais, inscrições, locomoção, cursos preparatórios, além da dificuldade de conciliar tudo com o custeio próprio e, por vezes, familiar.
Para isso, o CNJ criou no ano passado um programa para pessoas negras e indígenas em duas modalidades: bolsa de manutenção com auxílio financeiro mensal e bolsa de estudos para cursos preparatórios voltados a concursos da magistratura.
Professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), a socióloga Fabiana Luci é coautora de um artigo que examina a baixa efetividade da política de cotas raciais em concursos do Judiciário para magistrados e servidores.
O estudo ressalta a precariedade dos dados, o que compromete a realização de um diagnóstico sobre inclusão. Quase um terço das cortes não enviou ou prestou de forma inadequada a informação sobre raça em relatório de 2021 do CNJ.
"Isso é um problema para qualquer política pública, não só para avaliar cotas raciais no Judiciário. São necessários dados de qualidade que permitam essa avaliação", afirma a professora.
Segundo ela, existe uma resistência na adoção da terminologia do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de pretos e pardos. Essa dificuldade em lidar com o tema, diz, é a forma como o racismo brasileiro se manifesta.
Dados gerais do painel de estatísticas do CNJ identificam 14% dos magistrados como pretos ou pardos, segmentos que correspondem a mais da metade da população brasileira, contra 82% de brancos. Na Justiça Federal, brancos são cerca de 86%, e pretos e pardos, 11%.
Magali Dantas, doutoranda em políticas públicas pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública), defende que o Judiciário adote medidas para aplicar ações afirmativas em todas as fases do concurso, além da ampliação do percentual de cotas, já feita pelo CNJ.
Ela ainda assim mantém uma visão otimista. Para ela, há hoje mais abertura institucional e acúmulo de conhecimento sobre o tema. "Esses órgãos superiores têm agora uma receptividade, e o Poder Judiciário realmente está fazendo uma discussão, sobretudo de como a diversidade contribui para a saúde da democracia. Subiu de nível."
