Antropólogo baiano exalta negritude de Pelé e se perde em digressões em livro, avalia colunista
Nas primeiras linhas do prefácio de "Pelé - o Negão Planetário", o antropólogo Antonio Risério esclarece que não se trata de mais uma biografia do jogador. É "um espaço onde penso, retrato e examino aspectos das realidades brasileiras através da figura e da performance de Pelé".
A iniciativa é bem-vinda porque ainda são poucos os projetos de cunho mais ensaístico sobre o futebol brasileiro. "Veneno Remédio" (2008), de José Miguel Wisnik, e "Dando Tratos à Bola" (2017), de Hilário Franco Júnior, estão entre as boas publicações nessa seara lançadas nas últimas duas décadas.
O livro de Risério não está à altura desses dois, mas alguns ensaios conduzem a reflexões pertinentes sobre a vida e a carreira do atleta. Um desses textos é "A Escola Brasileira de Futebol", em que o autor aborda temas como a inteligência do corpo, que aproxima Pelé do pugilista norte-americano Muhammad Ali e do bailarino russo Vaslav Nijinsky.
Mas o ponto-chave do ensaio está no trecho em que Risério toma como base o clássico "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mario Filho, para ressaltar a virada representada por Pelé como um homem negro.
Até a ascensão dele, era muito comum que os jogadores escondessem suas origens afrobrasileiras. Arthur Friedenreich, que atuou dos anos 1900 à década de 1930, tentava alisar e prender seus cabelos crespos no vestiário "de sorte a não ser visto pela multidão como o mulato que era", como registra o antropólogo.
Na trilha de Mario Filho, Risério enfatiza que Pelé se orgulhava de ser um homem preto. Não fazia discursos contra o racismo, mas sua genialidade em campo contribuía para a autoestima dos negros no Brasil e no exterior.
No ensaio "A Questão Racial", o autor diz que "Pelé não tratava o problema negro como algo exclusivo da raça. Em vez disso, via que a necessidade de redução das distâncias sociais e de oferta de oportunidade para todos situava num mesmo horizonte todos os pobres, independentemente de suas cores".
O texto seguinte, "Diamante Negro", lembra que Pelé dizia jamais ter sido vítima de preconceito racial. Não era verdade, como Risério mostra. Em "My Life and the Beautiful Game", biografia de 2007, o jogador se recorda de um episódio na adolescência em Bauru (SP), em que o pai da sua primeira namorada o chamou de "preto vagabundo". Nas biografias lançadas nos anos seguintes, segundo Risério, esse episódio não foi mais mencionado.
Apesar de ambiguidades como essa, Pelé representou "uma vitória negra, imensa, formidável, espetacular", de acordo com o antropólogo. Dá, entre outros exemplos, a admiração efusiva dos sul-africanos Nelson Mandela e Desmond Tutu pelo craque.
Assim como Pelé, Risério não escapa das contradições, mas seus argumentos que elevam o atleta a um símbolo da negritude merecem ser lidos com atenção.
O livro não se restringe à questão racial. Um dos ensaios curiosos é "O Duplo e o Topete", em que o antropólogo comenta nuances do hábito do jogador de distinguir Pelé de Edson Arantes do Nascimento. "Edson é a mesmice cotidiana, Pelé, o relampadear dos deuses", escreve.
Em "Qualidade Técnica e Humana", o autor detalha como Dondinho, o pai de Pelé, foi a maior influência do melhor jogador da história. Atacante conhecido pelos gols de cabeça, Dondinho atuou em times mineiros, como o Atlético Tricordiano, de Três Corações, e no Bauru Atlético Clube entre os anos 1930 e 1950.
Além de ensinar o filho a cabecear e a chutar com a parte de dentro do pé, dava dicas extracampo. Como se comportar diante de torcedores agressivos? Ignore-os, orientava Dondinho.
Um problema da publicação é o excesso de digressões. Em muitos momentos, Risério se afasta das questões mais diretamente ligadas a Pelé para atacar o que chama de "praga do identitarismo woke", tema de seus livros anteriores, como "A Crise da Política Identitária" (2022). O livro tem 464 páginas e seria melhor se tivesse a metade.
No prefácio, Risério volta a acusar a Folha de censura. Em janeiro de 2022, o jornal publicou um artigo dele intitulado "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo". No texto, o autor afirmava que "o racismo negro é um fato" e discordava da definição de que só há racismo quando existe opressão.
Nos dias seguintes, o jornal publicou textos que contestavam a tese de Risério. Incomodado com as críticas, ele procurou o jornal para publicar uma réplica e diz que foi, então, censurado.
De acordo com Vinicius Mota, secretário de Redação do jornal, "a Folha ofereceu duas vezes a Antonio Risério espaço para manifestar-se sobre as críticas a seu artigo inicial na Ilustríssima. Nas duas oportunidades, ele publicou os textos antes em suas redes sociais, o que inviabilizou a publicação na Folha, que só aceita artigos inéditos".
Pelé - O Negão Planetário
Autoria: Antonio Risério
Editora: Topbooks (470 págs.)
Avaliação: *Regular*
