Belém tentou devolver vida aos canais até a COP30, mas coleta de esgoto não deslancha na periferia
Numa cidade onde os igarapés amazônicos viraram canais retilíneos, densamente povoados ao longo das décadas, a estratégia de execução de simultâneas obras de drenagem e saneamento -dentro do escopo de projetos para a COP30- poderia representar uma mudança rápida e estrutural no cenário de abandono desses canais em Belém.
Era esse o plano, por meio intervenções a cargo do Governo do Pará e da Prefeitura de Belém, com financiamento direto do governo federal, do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) e da hidrelétrica Itaipu Binacional. Os gastos previstos são superiores a R$ 2 bilhões.
A conferência do clima da ONU chegou, com a realização dos primeiros eventos oficiais em Belém, e a transformação prometida está longe de ser alcançada.
Não há maior desafio ambiental para Belém, hoje, do que devolver a vida a seus canais e igarapés, o que representaria a garantia de serviços básicos à população que vive em torno dessas estruturas.
Entre esses serviços estão coleta de esgoto e alargamento dos cursos d'água de forma a evitar os constantes alagamentos, numa cidade conhecida pelos elevados índices pluviométricos, com média de 3.000 milímetros por ano, e que sofre influência de marés, pela proximidade ao mar. Belém também é um lugar plano, com topografia baixa.
O problema da insuficiência de coleta de esgoto -pelos índices oficiais, apenas dois em cada dez moradores da cidade de 1,3 milhão de habitantes contam com o serviço- é comum a áreas ricas e à periferia. Os bairros estão estruturados e adensados em torno de canais, independentemente da localização. Enchentes são frequentes em ruas e passagens cortadas por canais em áreas periféricas.
A COP30 chegou com um avanço das obras em áreas mais centrais e ricas, como a entrega da Nova Doca -uma avenida cortada por um longo canal, no bairro Umarizal, onde está um dos metros quadrados mais caros da cidade, e que ganhou intervenções em saneamento e um parque urbano- e do sistema de coleta de esgoto nas imediações do Mercado Ver-o-Peso, cartão-postal da cidade.
Na periferia, longe dos olhos de visitantes e delegados que buscarão acordos climáticos, a realidade é bem diferente.
"Boa parte dessas obras não estava ligada à COP30. Houve um volume inédito de recursos na cidade, e uma euforia na tentativa de colocar tudo no balaio da COP, sem garantia de que daria certo", afirma o arquiteto e urbanista Juliano Ximenes, professor da Faculdade de Arquitetura da UFPA (Universidade Federal do Pará) e integrante do Laboratório Cidades na Amazônia.
"A COP acabou se tornando um megaevento, o que levou a redirecionamento de prioridades", completa o professor, em referência à priorização de intervenções em canais em áreas mais centrais, como a Nova Doca.
O Governo do Pará e o governo federal entregaram obras feitas na periferia, como nos canais Gentil, Cipriano Santos, União e Bengui e Marambaia, mas nem todos contemplam serviços de coleta de esgoto. Em Bengui e Marambaia, houve exclusão de áreas onde são comuns alagamentos, sem que os moradores tenham acesso aos avanços feitos no sistema de macrodrenagem.
Em outros bairros altamente populosos, as obras de drenagem -com ampliação e limpeza dos canais- estão em ritmo lento, e devem atravessar o ano de 2026. É o caso dos canais Caraparu, Mártir e Murutucu, com execuções entre 62% e 69%, segundo dados do governo do Pará.
Nesses lugares, todos eles periféricos, existe ainda uma reconfiguração das próprias ruas e passagens, com demolições de casas -ação tida como necessária para permitir o alargamento dos canais- e expulsão dos moradores para lugares ainda mais periféricos, ou mesmo para fora de Belém, em razão dos valores baixos das indenizações pagas às famílias.
Em todos esses canais, o dinheiro usado é advindo de um financiamento do BNDES.
O Governo do Pará, comandado por Helder Barbalho (MDB), diz que cumpre os cronogramas, que fiscaliza o andamento das obras e que o sistema de coleta de esgoto existirá como uma próxima etapa em parte desses canais.
O BNDES afirma que esse é o maior conjunto de projetos de urbanização de favelas já financiado pelo banco, com contratações sob a responsabilidade do governo estadual. O governo Lula (PT) sustenta que "nunca foi dito" que tudo estaria pronto até a COP30, dada a complexidade das intervenções.
Um outro programa deveria garantir serviços básicos -drenagem, coleta de esgoto e pavimentação de ruas- a 130 mil pessoas, moradores de quatro bairros da cidade, onde existe uma extensa rede de canais associados ao igarapé Mata Fome, na periferia de Belém.
Em 2024, o projeto chegou a ser apresentado como prioritário para a COP30, dada a urgência dos problemas, especialmente o alagamento das casas.
O programa foi praticamente abandonado, como constatou a PF (Polícia Federal) em investigação sobre um suposto esquema de propina e lavagem de dinheiro, envolvendo contratos relacionados às intervenções no Mata Fome.
Os investigados integraram a gestão passada da Prefeitura de Belém. A atual gestão, de Igor Normando (MDB), diz que os recursos estão assegurados para as obras.
A prefeitura também posterga as intervenções em saneamento nas imediações do canal São Joaquim. O Município deu preferência a um parque urbano em torno de um trecho do canal que está no caminho do aeroporto, de forma a transformar esse parque num "cartão de visitas" para quem chega à cidade.
O próprio parque está com as obras atrasadas -nem 40% ficaram prontos para a COP30, segundo os dados mais recentes. A prefeitura diz que o projeto promoverá transformações urbanas e sociais. Itaipu Binacional, que banca o projeto com R$ 150 milhões, diz que notifica o Município e que há o compromisso de entrega da primeira etapa do empreendimento.
Porções da cidade com um histórico de exclusão, como a Vila da Barca, uma das maiores comunidades do país com moradias em palafitas, foram excluídas de projetos de saneamento voltados à COP30.
Na região da Vila da Barca existe uma estação elevatória, por onde passa o esgoto produzido na região da Nova Doca, em direção a uma estação de tratamento. Boa parte do esgoto da Vila Barca é destinado sem tratamento para as águas da baía do Guajará.
Para Juliano Ximenes, da UFPA, Belém deveria ter um padrão mais moderno de obras de drenagem, com bioengenharia. "As margens dos canais deveriam ser recuperadas com vegetação, para absorção da água da chuva, minimização do impacto das marés e influência no próprio microclima. A escolha foi por canais conservadores, muito caros, de baixa eficácia."
