Nem toda restinga pode ser APP: recurso do MP no STJ contraria congresso e posição de todos os estados do nordeste
Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que cria a Política Nacional para a Gestão Integrada, a Conservação e o Uso Sustentável do Sistema Costeiro-Marinho (PNGCMar). A chamada Lei do Mar estava em apreciação desde 2013 na Casa e foi aprovada em regime de urgência, com 376 votos a favor e 66 contrários. Com a aprovação na Câmara, o projeto agora aguarda a definição de relator para apreciação no Senado. Contudo, o Judiciário brasileiro parece, mais uma vez, querer substituir o Congresso Nacional e sua prerrogativa de legislar sobre a matéria.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará, na próxima terça-feira (11/11), um recurso decorrente de Ação Civil Pública originada em Santa Catarina, para decidir se toda a vegetação de restinga deve ser considerada Área de Preservação Permanente (APP) no Brasil. Até o momento, o Código Florestal (Lei Federal nº 12.651/2012) define que as áreas de APP abrangem restingas que têm a função de fixar dunas ou estabilizar manguezais.
Em 13 estados litorâneos mapeados pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Brasil possui 741.145 hectares de restinga, sendo 191.298 hectares nos três estados do Sul. A região Sudeste concentra a maior área dessa vegetação, com São Paulo registrando 229.688 hectares, segundo dados do Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica (2020), elaborado pelas entidades. Santa Catarina possui 68.053 hectares, conforme o estudo.
A ação foi movida pelo Ministério Público de Santa Catarina em 2012, e a decisão do STJ poderá impactar as construções em toda a faixa costeira — o que seria inconstitucional, tanto por violar a lei quanto por configurar ativismo judicial, substituindo a vontade expressa na Constituição e na lei.
Foi exatamente por esse motivo que o relator do PL 6969/2013, que institui a Política Nacional para a Gestão Integrada, a Conservação e o Uso Sustentável do Sistema Costeiro-Marinho — conhecida como “Lei do Mar” — na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e em Plenário, o deputado Túlio Gadêlha (REDE-PE), em seu parecer e substitutivo apresentados em 2025, propôs a supressão de vários artigos do projeto original e do substitutivo anterior, visando corrigir inconstitucionalidades.
Além das supressões totais, o relator promoveu ajustes em outros artigos para corrigir má técnica legislativa, como a remoção de expressões entre parênteses ou substituições de termos (por exemplo, nos incisos dos arts. 2º, 6º, 7º, 10º, 11º, 21º e 22º do texto original), mas sem exclusão completa desses dispositivos. O substitutivo final reduziu a estrutura do projeto de 25 para cerca de 15 artigos, integrando conceitos como abordagem ecossistêmica e alinhando o texto com leis já existentes.
Agora, ao arrepio da Constituição, das leis de regência e em confronto com o que foi debatido durante mais de duas décadas na Casa do Povo, muitos deputados e congressistas veem como intempestiva e inoportuna a atuação do STJ — que, na iminência de o Congresso Nacional finalmente editar uma lei específica do mar, integrando-a e harmonizando-a com a de gestão costeira, pretende criar uma APP em toda a restinga, mesmo quando esta não apresenta função ecológica relevante. Trata-se de algo que nem o Conama nem as ONGs sustentaram, por ser uma aberração técnica, científica e jurídica.
Nem toda restinga pode ser APP
Nem toda restinga pode ser APP. Por isso, foi acertado retirar do PL da Lei do Mar os dispositivos que revisava determinados indicadores, critérios, elementos e definições quanto às restingas e ao uso e ocupação de áreas litorâneas, notadamente nos arts. 9 e 10 do projeto referido.
Inclusive, técnicos e juristas ouvidos em condição de anonimato, garantem que tais dispositivos conflitam com as normas específicas da matéria, a saber, da Resolução CONAMA nº 417 de 23/11/2009, da Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006 e da Lei Federal 12.651/2012, em especial o artigo 4º, inciso VI.
Tais dispositivos, se mantida a redação e o teor apresentados pelo relator, podem resultar na inviabilidade de empreendimentos novos em toda a borda atlântica, no país, notadamente no nordeste, vocacionados ao turismo sustentável e à construção civil, gerando desemprego, insegurança jurídica, e desequilíbrio entre desenvolvimento social, geração de riqueza e preservação dos ecossistemas, ampliando as desigualdades regionais.
Em síntese, o conceito técnico e científico de restinga não pode ser tirado do Judiciário, como pode fazer o STJ, em julgamento pautaso para amanhã, seja pela ausência de competência constitucional para criar novo espaço especialmente protegido, seja porque desconsidera as funções ambientais próprias de cada situação e características locais deste bioma, confere um tratamento igual à situações jurídicas, inclusive as diferentes, de forma desproporcional e sem qualquer necessidade, adequação e razoabilidade.
Importa registrar que, conforme ciência, doutrina e jurisprudência, a especial proteção dos biomas costeiro, para preservação e equilíbrio dos ecossistemas, é feita em especial atenção aos manguezais, à vegetação de restinga com função de fixar dunas ou estabilizar mangues e diversos outros ambientes, como consta do Código Florestal e também a Lei da Mata Atlântica, normas vigentes, específicas e que já preveem proteção rigorosa para essas hipóteses, não sendo a Lei do Mar o veículo normativo adequado e apto à tratar do tema, seja para tornar as regras mais restritivas ou menos.
Por estas razões, de fato, direito, ciência, mas também por, econômica e socialmente, caso haja ativismo no STJ, criando uma nova APP na forma de toda e qualquer restinga, isto configuraria não somente uma usurpação constitucional de competência, mas, no mérito, mais um ato jurídico à servir como violação à livre iniciativa, à isonomia, à razoabilidade e proporcionalidade, assim como à sustentabilidade (potencializando o ecológico e anulando o social e o econômico nestes territórios e propriedades).
Por estas razões, nove estados do nordeste e o Congresso Nacional rejeitam o pedido que o MP formula junto ao STJ e vai hoje a julgamento.
*Georges Humbert é advogado, professor, pós-doutor em direito pela Universidade de Coimbra – Portugal, doutor e mestre em direito do estado pela PUC-SP, é presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade – Ibrades, presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico e Sustentabilidade da OAB/Ba, Vice-Presidente de Sustentabilidade da Associação Comercial da Bahia, membro do Conselho da Reserva da Biosfera do Estado da Bahia e do Conselho de Meio Ambiente do Município de Salvador e autor de mais de quarenta livros jurídicos
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