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Artigo

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Ano novo, literatura nova

Por Palmira Heine

Foto: Divulgação

Chegamos a um novo ano e, com ele, novos ares… Novas páginas do caderno que escreveremos dia a dia. E, nessa renovação, também cabe falar das transformações que um texto literário, ao imitar a vida, pode conter. Isso porque um texto é sempre uma estrutura cheia de vida que se conecta com elementos de nossa realidade e cultura. E isso ocorre também no âmbito da literatura para infâncias. 

 

Há muito que os contos de fada e as fábulas povoam o imaginário infantil, trazendo as mazelas humanas encarnadas na luta entre o bem e o mal, e, muitas vezes com tom pedagógico que, por sinal, na atualidade é questionado, uma vez que ao ser empregado, traz a concepção de criança como uma tábula rasa incapaz de gerar sentidos para as histórias que ouvem ou leem. Assim, desde pequenos, os infantes são apresentadas aos clássicos contos como Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Cinderela, e às fábulas clássicas a exemplo da Cigarra e a Formiga e A lebre e a tartaruga.

 

Mas, apesar de serem atemporais, a maioria dos contos de fada e das fábulas traz estereótipos e visões eurocêntricas que, grande parte das vezes, não representa a cultura brasileira ou de uma determinada região. Um exemplo disso é a representação dos padrões de beleza que vêm mudando ao longo das atualizações das narrativas, mas que, por muito tempo reproduziram um único padrão mais eurocentrista e muito deslocado de nossa representação enquanto povo proveniente do encontro nada pacífico das três já conhecidas matrizes raciais.  Mas, será que não é importante e relevante oferecer às crianças formas de identificação de si mesmas através da atualização de contos e fábulas?

 

É importante pensar nesses contos a partir de um outro lugar: o nosso. Quem somos nós? De que cultura fazemos parte? Como podemos nos sentir representados em textos que trazem visões puramente eurocêntricas?

 

Pensando nisso, é relevante trazer à tona as releituras de contos e fábulas que visem trazer representatividade e dar um ar contemporâneo às narrativas. A questão de se sentir representado culturalmente, de se reconhecer na narrativa gera conexão, inclusive para as crianças que são sujeitos em formação. Ao invés de apenas terem acesso a elementos eurocêntricos, por que não possibilitar que a criança se reconheça enquanto sujeito de uma cultura, de um lugar, de uma região? Reconhecer-se na literatura é fortalecer a identidade histórica e cultural.

 

E as crianças, em vez de serem tábulas rasas, são seres pensantes, que questionam, fazem perguntas, refletem. Em uma das minhas participações em eventos literários, um menino me questionou o porquê dos livros que ele lia não trazerem elementos de sua cultura genuinamente baiana. Nessa ocasião, eu estava participando de um evento literário no Pelourinho e fui surpreendida por esse questionamento por parte de uma criança que me ouvia falar sobre a literatura para infâncias.

 

Bingo! Com sua provocação, ele trouxe à tona todo um debate sobre representatividade, sobre se sentir parte de uma narrativa, sobre pertencimento, sobre valorização de nossa cultura. Foi assim, que escrevi Chapeuzinho no Pelô, um livro em que trago a famosa personagem do conto tradicional para as terras soteropolitanas, e incluo elementos da nossa cultura como a culinária, a capoeira, a música e as cores da Bahia. A cada pequeno grande leitor que tem acesso ao livro, a surpresa vem:  – Olha! Eu faço capoeira! Ou: – Olha! Eu adoro acarajé! Na narrativa, trago personagens icônicos de nossa cultura como a baiana de acarajé e o capoeirista, que substitui o caçador da tradicional narrativa.

 

O livro gerou uma genuína conexão com as crianças. A partir daí, novos debates, novas formas de ver os contos passaram a ter espaço na literatura de caráter regional para crianças que eu produzia (já com duas obras publicadas com esse direcionamento, e mais duas sendo produzidas). E por falar nisso, esse debate gera outras reflexões como a de que podemos ser sujeitos criativos, construir nossas próprias histórias com as nuances de nossa cultura, de nosso lugar, de nosso olhar. 

 

Assim, como a arte imita a vida, vamos escrevendo novas histórias, sendo ou não escritores publicados. Na literatura infantil, essa escrita tem sido por mim reinventada, os sentidos originais dos contos tradicionais, reelaborados, porque há muito a se dizer e há muito de nós a se dizer nesses textos. E é essa a magia da literatura: afinal poder criar mundos novos a partir de outros mundos já existentes, e brincar com as palavras é um poder incrível! 

 

Assim como cada um de nós pode escrever novas páginas no livro do ano que chega, podemos também renovar o nosso repertório literário e o de nossas crianças, ofertando a elas livros de autores baianos que tragam parte de elementos de nossa rica cultura.
 

*Palmira Heine é escritora, professora e poeta baiana

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias

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