Inventariante Digital: Uma Virada de Chave na Discussão Sobre Herança Digital no Brasil
O recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que criou a figura do “inventariante digital” é mais do que uma decisão jurídica — é um marco cultural. Pela primeira vez, a Justiça brasileira reconhece que nossa vida digital é parte integrante de quem somos e que precisa ser tratada com o mesmo cuidado, sigilo e respeito que dedicamos aos nossos bens materiais.
A decisão, tomada pela 3ª Turma do STJ, surgiu de um pedido de familiares de uma das vítimas do acidente aéreo que vitimou Roger Agnelli. Eles queriam acessar o notebook do falecido, mas a questão foi muito além de um simples desbloqueio de senha. Ela expôs uma lacuna legal e filosófica: até onde vai o direito à privacidade de alguém que já morreu? E até onde vai o direito da família de acessar memórias, arquivos e até ativos financeiros digitais que fazem parte de um patrimônio?
A ministra Nancy Andrighi foi precisa ao lembrar que o direito à intimidade não morre junto com o titular. Com isso, a Corte propôs uma solução de equilíbrio: um inventariante digital, atuando sob sigilo, será responsável por avaliar o acervo virtual, filtrar o que pode ser repassado aos herdeiros e entregar ao juiz um relatório para decisão. É um passo importante, que evita tanto o acesso irrestrito a dados sensíveis quanto o bloqueio absoluto de bens digitais que podem ter valor econômico ou afetivo para a família.
Mas aqui está o ponto central: essa decisão, por mais relevante que seja, não substitui a urgência de uma legislação clara sobre o tema. O Código Civil não trata de bens digitais, o Marco Civil da Internet protege o sigilo mas não fala do destino de contas e dados após a morte. Isso significa que, sem lei, ficamos à mercê de interpretações judiciais, que podem variar de caso a caso.
Além disso, a decisão nos convida a repensar nossa própria relação com o legado digital. Contas de e-mail, redes sociais, bibliotecas virtuais, criptomoedas, fotos, conversas... tudo isso é parte de nossa identidade e, cedo ou tarde, alguém terá de decidir o que fazer com esses dados. Deixar essa decisão exclusivamente para o Judiciário pode ser arriscado — e doloroso para os familiares.
O caminho mais inteligente é o planejamento sucessório. Assim como fazemos um testamento para bens materiais, é hora de incluirmos nossos bens digitais nessa lista. Quem você gostaria que tivesse acesso às suas fotos e mensagens? Quem poderia administrar suas redes sociais ou gerenciar suas criptomoedas? A decisão do STJ nos mostra que é possível nomear um responsável, mas idealmente essa escolha deveria ser feita por nós, em vida.
Em um mundo cada vez mais conectado, ignorar a herança digital é ignorar parte de quem somos. A decisão do STJ foi um avanço, mas é só o começo de um debate que precisa se tornar público, legislativo e, principalmente, pessoal. Afinal, o direito à memória — e à privacidade — também é um direito fundamental.
*Dayane Araújo Sobral é especialista em planejamento patrimonial e sucessório
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