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Lei de Igualdade Salarial esbarra na falta de efetividade

Por Juliane Facó

Foto: Divulgação

Em julho de 2023, entrou em vigor a Lei nº 14.611, que reforça a igualdade salarial entre homens e mulheres ao estabelecer mecanismos concretos de transparência e fiscalização. A norma não cria um direito novo, afinal o princípio de salário igual para trabalho de igual valor já consta da CLT desde 1943, mas busca resolver uma antiga lacuna na aplicação prática desse direito no Brasil. Dois anos depois, embora a lei tenha gerado avanços institucionais importantes, seus efeitos concretos ainda são limitados.


Entre os pontos positivos, destaca-se a mudança de postura dentro das empresas. A obrigatoriedade de publicar relatórios semestrais de transparência salarial fez com que a equidade de gênero deixasse de ser apenas uma pauta ética ou reputacional e passasse a integrar as estratégias de compliance e os critérios ESG (ambiental, social e governança). Dados da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH) mostram que cerca de 65% das grandes empresas já instituíram comitês internos de equidade desde a entrada em vigor da nova legislação.


Apesar dessa evolução cultural, os números não escondem a estagnação prática. O terceiro Relatório de Transparência Salarial, divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pelo Ministério das Mulheres, revela que a diferença média de remuneração entre homens e mulheres permanece em 20,9%, maior do que a apontada no primeiro relatório, de 19,4%. E essa disparidade se agrava ao considerar o recorte racial: mulheres negras recebem, em média, menos da metade do que ganham homens não negros. Esses dados indicam que a igualdade de gênero, por si só, não é suficiente. É imprescindível considerar também o fator racial, sob pena de invisibilizar os grupos mais vulnerabilizados.


O caso da Bahia ilustra bem esse paradoxo. O estado apresenta uma diferença salarial entre homens e mulheres de 18,5%, um índice levemente abaixo da média nacional. Porém, quando se analisa a remuneração das mulheres negras baianas, a diferença chega a 27% em relação às mulheres não negras. Ou seja, mesmo onde há sinais de leve progresso, a desigualdade permanece enraizada.


Por que, então, a lei não surte o efeito desejado? Um dos principais obstáculos é a fragilidade da fiscalização. O modelo ainda é predominantemente reativo: depende que a própria trabalhadora denuncie a discriminação, o que é um grande desafio diante do receio de retaliações no ambiente de trabalho. Além disso, os órgãos fiscalizadores, como a Auditoria-Fiscal do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho, sofrem com a falta de estrutura, pessoal e capacitação técnica para analisar os relatórios e realizar investigações proativas em larga escala.


Outro entrave relevante é o debate jurídico ainda em curso. Diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) questionam pontos centrais da lei no Supremo Tribunal Federal, como a obrigatoriedade de divulgação dos relatórios. Essa judicialização provoca insegurança jurídica e tem sido utilizada por muitas empresas como justificativa para não cumprir integralmente a norma, o que, na prática, paralisou a aplicação de penalidades. Passados dois anos, nenhuma multa foi aplicada por descumprimento da lei, seja por discriminação comprovada, seja por falta de transparência.


A sanção por discriminação, aliás, é considerável: até dez vezes o valor do novo salário devido, podendo dobrar em caso de reincidência. Já a sanção por não publicar o relatório é de até 3% da folha salarial, limitada a 100 salários-mínimos. O problema é que, enquanto essas penalidades não forem efetivamente aplicadas, a mensagem transmitida ao setor privado é de que o descumprimento compensa.


No campo das denúncias, a lei prevê diversos canais institucionais, como o portal da Inspeção do Trabalho, aplicativos oficiais e os números de atendimento como o Disque 100 e o Disque 180. As trabalhadoras também podem recorrer a sindicatos e ao Ministério Público do Trabalho. Judicialmente, a via mais comum continua sendo a ação de equiparação salarial com base no artigo 461 da CLT. No entanto, os critérios legais são rigorosos e a prova é, muitas vezes, difícil de obter.


A expectativa é que os relatórios de transparência passem a cumprir um papel mais ativo nesse processo, servindo como elemento probatório e incentivando uma inversão do ônus da prova em juízo, ou seja, exigindo que a empresa justifique as diferenças salariais identificadas. Essa tendência já encontra respaldo no “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, adotado pelo Conselho Nacional de Justiça, e representa um importante avanço para as trabalhadoras que buscam justiça.


A Lei 14.611/2023 é um marco relevante, mas ainda carece de efetividade. Para que ela cumpra seu papel, será necessário um esforço coordenado entre o Judiciário, o Executivo, os órgãos de fiscalização e o setor empresarial. É preciso ampliar a base de empresas obrigadas a divulgar dados, aplicar as sanções previstas, capacitar os agentes fiscalizadores e desenvolver políticas de promoção profissional com foco na diversidade e na inclusão.


A igualdade salarial entre homens e mulheres é um direito constitucional, mas só será realidade quando deixar de ser apenas norma e passar a ser prática efetiva. A transparência, por si só, não elimina a desigualdade, mas é um passo fundamental para enfrentá-la com seriedade, evidência e justiça.


*Juliane Facó é Advogada trabalhista, Doutora em Direito do Trabalho pela USP e professora de Direito e Processo do Trabalho.

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias

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