Liberdade religiosa, igualdade, tolerância
e proselitismo religioso no Estado Democrático de Direito
Breves notas
Aloisio Cristovam dos Santos Junior1
Quando observamos que as circunstâncias que envolveram a afirmação histórica da liberdade religiosa conectam-se ao pluralismo religioso advindo da quebra da unidade teológico-político da cristandade e à eclosão do constitucionalismo moderno2, o valor que historicamente se sobressai como fundamental ao reconhecimento do direito à liberdade religiosa é o princípio da igualdade.
É certo que num primeiro momento o discurso da igualdade é direcionado aos indivíduos que pertencem aos ramos rompidos da cristandade, não alcançando os segmentos religiosos estranhos à fé cristã. Quando muito, tenta timidamente incluir os que professam a fé judaica. Somente num momento posterior da evolução constitucional – sobretudo quando os Estados Unidos recebem um grande contingente de emigrantes orientais – é que o discurso da igualdade torna-se mais inclusivista, englobando indivíduos que adotem quaisquer credos ou cultos religiosos3.
A igualdade, aliás, constitui o valor fundamental da democracia. A construção de um Estado Democrático de Direito somente é possível a partir do respeito à igualdade essencial dos seres humanos, pois, como sustenta com muita precisão Jónatas Machado,
Se assim o é, no campo da liberdade religiosa o princípio da igualdade reveste-se de uma importância crucial. A idéia de liberdade religiosa somente pode prosperar num contexto em que se busca o respeito à igualdade de direitos entre todos os cidadãos. Com efeito, somente possui liberdade religiosa quem pode adotar esta ou aquela opção religiosa sem recear sofrer tratamento discriminatório por parte da comunidade política.
O princípio da igualdade em matéria religiosa é claramente adotado no nosso ordenamento jurídico-constitucional. Primeiro, o caput do artigo 5º da Constituição da República reza que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, onde se inclui, naturalmente, a distinção de natureza religiosa. Depois, o inciso VIII do mesmo artigo, estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa”.
Sobre a igualdade “sem distinção de credo religioso” preconizada pela Constituição Federal, José Afonso da Silva comenta:
Todavia, é relevante destacar que o princípio da igualdade não pretende ignorar a diversidade de crenças existente no interior da sociedade. Ao contrário, visa a protegê-la. Recorrendo mais uma vez às palavras de Jónatas Machado,
A igualdade em matéria religiosa, como sustentam Reina y Reina,
Tal observação avulta em importância nos dias hodiernos, quando – ao que nos parece – a idéia de tolerância religiosa tem sido confundida com a idéia de sincretismo, como se o respeito à diversidade religiosa devesse necessariamente implicar a aceitação de outras crenças como sendo verdadeiras. Na verdade, a idéia de tolerância pressupõe justamente a diferença de opiniões e de crenças e não sua igualdade. Ora, a religião trabalha essencialmente com valores dogmáticos. Conceitos como o de verdade e de erro, que na filosofia contemporânea têm sido relativizados, costumam se apresentar no fenômeno religioso como valores absolutos, de modo que as crenças religiosas, em regra, têm um caráter exclusivista. O respeito à crença religiosa do outro não deve significar necessariamente o reconhecimento de que a religião alheia seja verdadeira. Interpretação diversa constitui supressão da liberdade de consciência8 e atentado à própria liberdade de crença, pois, em última análise, representaria um constrangimento ao crente a que abjurasse de sua fé e, como diz Alexandre de Moraes,
Por tais razões, o princípio de igualdade em matéria religiosa não pode ser utilizado como pretexto para que se considere discriminatória ou intolerante a conduta de quem, na prática do proselitismo religioso, defende a verdade de suas crenças em oposição às crenças dos outros. Desde que o esforço apologético do crente, seja qual for a sua religião, limite-se a apontar o suposto erro da doutrina religiosa acreditada por alguém, sem ofender a honra ou a dignidade pessoal do outro – inclusive respeitando o direito que este possui de querer ou não ouvir o discurso –, não há como atribuir a tal conduta qualquer afronta ao princípio constitucional de igualdade em matéria religiosa10. Ao contrário, ambos possuem igualmente o direito de defender a verdade de sua crença, assim como têm direito a defender a sua posição os que não crêem (ateus ou agnósticos) e aqueles que sustentam que todas as religiões são, simultaneamente, verdadeiras.
Na verdade, não reconhecer ao crente o direito de fazer proselitismo religioso constituir-se-ia, sem sombra de dúvida, na própria negação do Estado Democrático de Direito, cuja concretização traz como pressuposto necessário não apenas o respeito às diferenças e ao pluralismo em todas as suas formas, mas, sobretudo, a liberdade de pensamento, que na lapidar definição de Sampaio Dória11 é “o direito de exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião, arte, ou o que for”. Neste sentido é que André Ramos Tavares12, ao tratar da liberdade de religião, diz que “nada mais é que um desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação”13.
As conclusões a que chegamos, portanto, são as seguintes:
A liberdade religiosa pressupõe necessariamente o tratamento isonômico a todos os cidadãos independentemente de suas crenças religiosas;
A igualdade em matéria religiosa não se lastreia na necessidade de uniformização das convicções religiosas e, ao contrário, somente pode ser concebida num ambiente de pluralidade de crenças e de opiniões relacionadas à fé.
A construção do Estado Democrático de Direito não se concebe sem que se reconheça ao crente o direito de fazer proselitismo religioso, mormente considerando-se que a liberdade religiosa, em certo sentido, é emanação da liberdade de pensamento, ou mais precisamente o direito de exprimir o pensamento em matéria religiosa.
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1 Juiz do Trabalho (5ª Região). Doutorando em Direito pela PUC-RS. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor da graduação em Direito da Faculdade 2 de Julho.
2 Sobre a história da conquista da liberdade religiosa, vale conferir Milton Ribeiro (RIBEIRO, Milton. Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Editora Mackenzie, 2002) e Jónatas Machado (A Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos / Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, 1996). Ambos dedicam especial atenção ao assunto.
3 No entanto, mesmo no século XVII, ainda manchado pelas guerras religiosas, houve quem estivesse na vanguarda da luta por uma liberdade religiosa ampla. Roger Williams, pastor batista, apregoava já naquela época a separação da igreja e do Estado e reclamava uma absoluta liberdade religiosa, não só para os cristãos, mas também para os judeus, muçulmanos e pagãos, que deveriam ter os mesmos direitos civis e políticos que os cristãos, pois – segundo dizia – a consciência do homem pertence a ele mesmo e não ao Estado. Roger Williams começou a pregar em Salem, de onde foi expulso e, junto com alguns fiéis que o acompanharam, fundou a cidade de Providence, na qual todos os que sofriam perseguição por suas crenças religiosas encontravam refúgio. Referindo-se aos fundadores de Providence, conta Georg Jellinek (La Declaración de los derechos del hombre y del ciudadano Traducción y estudio preliminar Adolfo Posada; Segunda Edición, Serie Estudios Jurídicos, Núm. 12. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2003, p. 119) que: “En su pacto fundamental, los secesionistas prometían obedecer a las leyes dictadas por la mayoría, pero ‘only in civil things’, la religión no es materia sometida a la legislación. Así se reconoció, por primera vez, la plena libertad en asuntos religiosos, y eso por un hombre que era un creyente lleno de ardor”.
4 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. op. cit., p. 290
5 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. nos termos da Revisão Constitucional de 1994. São Paulo: Malheiros, 1995., p. 220/221.
6 Ibid., p. 287
7 REINA, Victor y REINA, Antonio. Lecciones de Derecho eclesiástico español, Barcelona: págs. 320-321.
8 Estranhamente, as diferenças de opinião são aceitas em qualquer campo (científico, político etc.) como algo saudável e democrático. Quando se trata de divergência no campo religioso, porém, há uma enorme resistência a considerá-la democrática, por se acreditar que o ideal é que todos tenham a mesma crença (ou não tenham crença alguma).
9 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2004, p. 75.
10 Como na célebre citação atribuída erroneamente a Voltaire (surgida, segundo os historiadores, num livro de 1907 intitulado “friends of Voltaire”, de Beatrice Hall): “Não concordo com uma única palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-la” (tradução disponível no endereço eletrônico http://pt.wikiquote.org/wiki/Voltaire), o reconhecimento de que os outros possuem o direito de professar as suas crenças religiosas não tem, necessariamente, que implicar concordância. Respeito e discordância não constituem atitudes excludentes entre si.
11 SAMPAIO DÓRIA, Antônio Roberto. Direito Constitucional: Comentários à Constituição de 1946, v. III/602 apud José Afonso da Silva, op. cit., p. 234.
12 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 542.
13 Estranhamente, as diferenças de opinião são aceitas em qualquer campo (científico, político etc.) como algo saudável e democrático. Quando se trata de divergência no campo religioso, porém, há uma enorme resistência a considerá-la democrática, por se acreditar que o ideal é que todos tenham a mesma crença (ou não tenham crença alguma).