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Artigo

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A violência nossa de cada dia

Por Francisco Viana

Foto: Acervo pessoal

... para mim felicidade é a morte
Shakespeare, Otelo o mouro de Veneza

 

O que o Brasil comunica? A estatísticas indicam a maior recessão da história desde o início do século passado. As conquistas sociais estão se dissolvendo, grassa a corrupção e nada funciona. A Previdência Social segue pela mesma trilha. Mas...

 

Nos dias atuais, as atenções se voltam para o caso de assédio sexual de um galã da TV Globo sobre uma jovem figurinista. Não estaria havendo um certo exagero em se satanizar o galã? Virou lugar comum a violência contra a mulher: estupros, espancamentos, mortes fazem parte do dia a dia do Brasil. Não deveria motivar idêntica indignação? Ou uma indignação ainda maior? 

 

Vamos ao centro da questão: o problema envolvendo a jovem e o galã é sério, mas não pode haver tanta repressão por causa de uma falta. É preciso haver tolerância e bom senso. Não?  O problema mais uma vez não está no indivíduo, mas nas estruturas, em uma cultura machista.  Se não atacarmos o problema pela raiz, essa cultura vai continuar se reproduzindo. Agora ficou em evidência porque envolve um galã de uma emissora mundialmente poderosa. E as pessoas  comuns? O galã pediu desculpas, com humildade. Comunicação , em momentos de crise, é contexto. Não fosse o personagem em questão famoso e a Globo também, o episódio passaria em branco ou quase desapercebido. 

 

Como é celebridade, "alavanca"  a causa feminina, mesmo que temporariamente. O que é preciso não esquecer é que a emancipação da mulher com relação à violência e a emancipação do homem, também com relação à violência, caminham juntas. O homem não é inimigo, mas aliado. Em paralelo, precisamos construir uma sociedade nova: não violenta, ética, fraterna e solidária. O galã está purgando seus pecados. Que os grandes problemas da mulher e do homem tenham a visibilidade que merecem. Pois o Brasil tem mostrado sua face profunda. E ela está nas ruas... 

 

Cabe ainda a pergunta: o que as ruas brasileiras comunicam? A morte, por covarde agressão, de um turista argentino no Rio de Janeiro, em Ipanema, mostra, de maneira trágica, o quando a violência entrou no nosso cotidiano e como pode ainda se tornar mais presente. Banalizou-se.

 

É hoje, entre nós, uma forma dissimulada de fascismo. Um ovo de serpente. Que pode transbordar para crimes políticos e o terrorismo. Não há limites para o que pode acontecer. 

 

Pior: todos parecem que se acostumaram à rotina da violência. Há uma podridão moral, típica de ciclos de decadência, que enfraquece o poder público e revela as entranhas da crise que vive nossa sociedade. 

 

Uma visão retrospectiva irá demonstrar que sempre vivemos imersos na cultura da violência. Ou o que simbolizaria a destruição do Arraial de Canudos pelo Exército? As torturas praticadas nos idos de 1935 após o fracassado levante comunista? A extinção física das  esquerdas no pós-64 como política de Estado?

 

Tudo isso, isso transbordou, há anos, para uma guerra civil de novo tipo, onde , a cada dia, morrem jovens, negros, cidadãos comuns e  aqueles que, geralmente, sem opção enveredam pelos labirintos do crime. 

 

Não é só. Evidências da cultura da violência também são demonstradas pelos assassinatos de mulheres, estupros, espancamentos, também de mulheres, racismo, homofobia,  violência contra crianças, pedofilia, enfim, as diferentes faces da violência. Faces banalizadas. 

 

Paradoxalmente, somos um país cristão. Só que quase não lembramos que, a despeito do Estado ser laico, o cristianismo tornou-se um princípio de ordem pública e não só um compromisso espiritual. Será que os jovens, todos de classe media, que mataram o turista argentino sabem disso? 

 

De qualquer forma, o Governo ( Federal e do Rio de Janeiro) tem o compromisso de promover campanhas e estimular a cultura da não violência. A mídia também. A violência não pode ser banalizada. Precisa ser erradicada do ambiente brasileiro como cultura. 

 

A natureza leva muitos anos para criar a vida humana em todo o seu esplendor. Esse trabalho único não pode acabar com um soco, como foi o caso da vida do rapaz argentino.

 

Não há democracia sem valorização da vida. Não é uma questão de imagem e reputação. Mas de humanismo. Esse pressuposto é como um filtro que descobre o nosso entendimento racional da sociedade, um antidoto contra o narcisismo e o sentimento de impunidade. O sentimento de que a vida do outro não tem qualquer importância. 

 

Mais de que uma questão individual, a violência revela o quanto precisamos mudar o modelo de sociedade: do compromisso com sentimentos que trazemos dentro de nós, para sentimentos voltados para o outro. Ou, em lugar do egoísmo narcísico e individualista, a solidariedade e a fraternidade.  

 

As imagens do crime mostradas pelo Jornal Nacional são horripilantes. São pura expressão da barbárie. Qualquer um de nós, seja que seja, poderia estar no lugar do jovem argentino. E tombar, atingido por um golpe fatal, que também poderia vir por meio de um assalto, um sequestro ou uma bala perdida. 

 

A cultura da violência é cega e devora a qualquer um. Seu descendente mais direto e temido é o medo. Medo que consome e isola o cidadão. Medo mensageiro da depressão de viver num pais antes considerado cordial, mas que se tornou absurdamente hostil.

 

* Francisco Viana é jornalista e doutor em filosofia política (PUC-SP)

 

* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias

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