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Artigo

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A gourmetização do Curuzu, a prefeitura e o Ilê

Por Jorge Augusto

Foto: Acervo pessoal

É conhecido o governo antipopular de ACM Neto, são muitos os exemplos, mas podem ser sintetizados no corte das linhas de ônibus que ligavam os bairros ditos periféricos e os bairros “nobres”, sobretudo os coletivos que se dirigiam a Barra/Ondina/Rio Vermelho. Mas as diversas ações da prefeitura que demonstram seu caráter elitista são contrabalançadas por uma engenharia midiática e discursiva que performa exatamente aquilo que não tem: uma face popular.

 

Isso pode ser demonstrado nas diversas aparições do prefeito em eventos populares, dançando, bebendo, beijando, ou seja, operando um simulacro ‘populesco’ que o aproximaria daquilo que o governo dele mais nega. Não pode ser vista de outra maneira sua aproximação com a potente figura do Príncipe do Gueto e o pagode baiano. Mas há, para nós, uma face mais perversa desse simulacro:  o uso que a prefeitura tem feito dos signos da cultura negra a fim de adensar essa engenharia de produção de um populismo de direita, que só pode existir, obviamente, como performance.

 

Essa utilização da cultura negra pela prefeitura pode ser pensada de duas maneiras básicas: a) na produção de uma catarse contínua, produzida a partir de um investimento massivo em festa e entretenimento. Essa política simula uma identificação com aspectos subjetivos e caros à cultura negro-baiana, como o que Muniz Sodré chamou de alacridade, mas o faz de modo que neutraliza e interdita sua potência; b) na produção de espaços destinados à simbologia e circulação da presença negra. Porém, esses espaços devem obedecer a dois aspectos: 1 – ficar restritos a um recorte “periférico” da cidade; 2 -  ser bastante descaracterizados, chegando a dissimular sua origem popular. São os casos respectivos do Parque São Bartolomeu e do Candeal.

 

Capitalizada pela indústria do turismo e por uma política que carnavaliza a identidade étnica soteropolitana, a alecridade é reduzida à festividade histérica que impulsiona os gastos exorbitantes da prefeitura com festas de todo gênero; já os espaços negros vão sendo apropriados e aos poucos entrando na vitrine do turismo étnico. Esse movimento visa, mais uma vez, expor a negritude como produto e os negros como objetos. Não é outro o sentido que antevemos, espreitando a discussão que corre à meia-luz e aos cochichos sobre a gourmetização do Curuzu, bairro signo da cultura negra soteropolitana, que nunca recebeu nada da prefeitura, e agora é agraciado com o quase desconhecido projeto de requalificação, que mais parece, pelo pouquíssimo material que circula, querer transformar a rua do Ilê Ayê em uma espécie de “macumba pra turista ver”.

 

A apropriação dos signos e espaços da cultura negra pelo mercado não é novidade, aliás um dos grandes desafios das políticas e lutas identitárias é se esquivar do cerco que o mercado lhe faz, buscando transformar os signos dessa luta em produtos consumíveis por um grande número de pessoas, ao mesmo tempo em que os esvazia do sentido da luta que os produziu. Se já conhecemos essa engenharia perversa que atravessa a relação do mercado com as lutas identitárias, se é familiar a crueldade que permeia o racismo estrutural do Estado brasileiro, como vamos deixar correr à sombra a proposta de requalificação do bairro do Curuzu, sem fazermos perguntas cruciais?

 

Qual o projeto da prefeitura para o Curuzu? E como seus moradores irão ser integrados ao espaço reformado; ou serão relocados ou desapropriados? A nova proposta de urbanização do Curuzu dialoga com sua história e seus signos, que lugar ocupa a cultura negra nessa requalificação? Que tipo de comércio será instaurado ali e quem comandará esses negócios? A população do bairro participará dessa distribuição? Ou o projeto se resume a capturar o Curuzu como signo do maior bairro negro fora da África e impulsionar a Senzala do Barro Preto como mais um espaço destinado à festividade da indústria do turismo?

 

É demasiado conhecido o processo perverso que tende a presidir essas requalificações, com o Estado pagando preços ínfimos sobre as casas dos moradores, ou desapropriando-os arbitrariamente e distribuindo os espaços comerciais para uma iniciativa privada que não possui nenhuma ligação com o local. Por isso, a urgência em empreender um debate amplo, não restrito a uma sala com três dezenas de pessoas, para compreender o projeto de requalificação do Curuzu, com a participação de sua população e de suas vozes. Ouvir a comunidade será, certamente, fundamental para o sucesso de qualquer projeto ali instaurado. E cremos que o Ilê Ayê deva assumir a gerência desse debate, não como tutor, mas como organizador e como espaço de escuta da população, além de, independentemente da prefeitura, se posicionar ao lado dos moradores diante dos possíveis conflitos. É com certeza a única coisa que podemos esperar do mais belo dos belos.

 

Em suma, não se trata de estar contra ou a favor do projeto de reconstrução do bairro do Curuzu, mas, sim, de nos posicionarmos ao lado de uma escuta e de uma participação mais efetiva dos seus moradores, que devem, em última instância, definir os termos dessa mudança, e não apenas figurarem como meros espectadores de transformações que vão impactar diretamente em suas vidas. Por fim, acreditamos que cabe a nós, negros moradores de Salvador e ao Ilê Ayê, não permitir que a cultura negra seja gourmetizada como produto para turista ver e descaracterizada de sua existência mais significativa, que é afirmação e produção de si e resistência. Não nos parece exagero imaginar que a apropriação do Curuzu, e sua transformação em produto cultural descaracterizado, pode muito bem implicar num processo de mitigação da potência simbólica que o Ilê Ayê tem para a comunidade negra no Brasil.

 

* Jorge Augusto é poeta, professor no IFMA e doutorando na Universidade Federal da Bahia. Publicou o livro Contemporaneidades Periféricas (org)

 

* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias

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