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Entendendo a Previdência: Será que a fila do INSS reduziu mesmo?

Entendendo a Previdência: Será que a fila do INSS reduziu mesmo?
Foto: Divulgação
Inicialmente, cabe esclarecer que o termo “FILA DO INSS”, conhecido em todo o Brasil, significa o acúmulo de requerimentos de benefícios pendentes de concessão, sejam auxílios ou aposentadorias, revisões ou ajustes junto ao órgão previdenciário. Dito isso, muito se fala desse termo como sinônimo de medidor de efetividade no atendimento, seja pelo quantitativo ou pela qualidade. 

Promotor sugere incluir na lei previsão do “estelionato judicial”: “Talvez seja uma alteração legislativa importante”

Promotor sugere incluir na lei previsão do “estelionato judicial”: “Talvez seja uma alteração legislativa importante”
Foto: Reprodução
Prática já reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), o chamado estelionato judiciário ou judicial é a prática do uso de documentos particulares com informações falsas para obter vantagens em um processo. Mesmo assim, a figura do estelionatário judicial não existe no ordenamento jurídico e, portanto, não é classificada como crime. 

Promotor Hugo Casciano fala sobre combate a crimes de colarinho branco em novo episódio do JusPod

Promotor Hugo Casciano fala sobre combate a crimes de colarinho branco em novo episódio do JusPod
Na última década, os chamados "crimes de colarinho branco" ganharam mais destaque no Brasil e no mundo. Tipificações como fraude corporativa, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, suborno, corrupção e manipulação de mercado ganharam as manchetes e se transformaram em tema recorrente nas conversas do cotidiano. E para debater sobre a atuação contra esse tipo de prática na Bahia, o JusPod recebe nesta quinta-feira (14) o Promotor de Justiça Hugo Casciano de Sant’Anna.

Entrevistas

Um ano à frente da DP-BA, Firmiane Venâncio aponta orçamento e desconhecimento sobre papel do órgão como principais desafios da gestão
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

Há 22 anos atuante na Defensoria Pública da Bahia (DP-BA), Firmiane Venâncio completa este mês um ano como defensora pública-geral. Nessas mais de duas décadas na entidade, ela passou pelos cargos de subdefensora pública-geral; coordenadora executiva das regionais, do Núcleo Especializado de Defesa das Mulheres e da Especializada de Direitos Humanos; diretora da Escola Superior da DP-BA e membra do Conselho Superior, por exemplo. 

 

A sua confirmação no cargo de chefia da Defensoria Pública tem sido apontada como um projeto feminista dentro do Sistema de Justiça. Ela é a sexta mulher a comandar a instituição, que em 2024 completa 39 anos. 

 

Declaradamente uma mulher feminista, antes mesmo de ocupar o posto de defensora pública-geral, Firmiane Venâncio recebeu o Prêmio Global Princesa Sabeeka Bint Ibrahim Al Khalifa para o Empoderamento Feminino, em 2022, representando a DP-BA na premiação promovida pela ONU Mulheres em parceria com o Conselho Supremo para Mulheres do Reino do Bahrein

 

Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal), Venâncio é doutoranda e mestra pelo Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (UFBA). Especialista em Direitos Humanos (UFBA), tem experiência na área de Direitos, com ênfase em Direitos Humanos das Mulheres e Direito Penal. 

 

Nesta entrevista ao Bahia Notícias, Venâncio fala do protagonismo feminino, dos planos e ações projetados para o seu biênio 2023-2025, o balanço do primeiro ano de gestão, desafios e relação com a categoria. 

 

 

Em seu primeiro ano de gestão, Firmiane Venâncio diz ter se deparado com o retrato de uma instituição que tem trabalhado para chegar a cada vez mais pessoas e cidades baianas, e tornar a Defensoria mais conhecida por boa parte da população. 

 

“Nós chegamos em um momento em que tinham verdadeiros heróis e heroínas da resistência ali segurando as fundações da Defensoria Pública da Bahia, mas de lá para cá eu tenho um orgulho muito grande de ter feito parte de uma história institucional que só vem mostrando o avanço e a importância da nossa instituição”, pontua. 

 

Com a ampliação do leque de atuações, do número de sedes e do quadro funcional, o desafio, segundo a defensora pública-geral, é conciliar as necessidades, a criatividade e o orçamento disponível. 

 

“Para uma instituição que é constitucionalmente vocacionada à defesa das pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, social, o desafio em uma sociedade que ainda é tão desigual e que a fome ainda é uma realidade para o nosso povo, um dos nossos desafios é a nossa criatividade com um orçamento que ainda não corresponde à necessidade da instituição, dessa missão institucional muito grande”, complementa.

 

 

Para além da atuação na área criminal e execução penal, a DP-BA também trabalha nas áreas de família, cível e fazenda pública, infância e juventude, direitos da pessoa idosa, direitos humanos. 

 

Dois casos que marcaram recentemente a atuação da Defensoria Pública baiana são a situação dos indígenas venezuelanos em Feira de Santana e o projeto de construção do centro de treinamento do Esporte Clube Bahia e de um bairro planejado no quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas. Em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública da União (DPU), a DP-BA expediu recomendação para o cuidado da comunidade imigrante e para a não concretização das obras em terreno quilombola. 

 

 

Falando em desafios, nesta entrevista ao Bahia Notícias, Firmiane Venâncio aponta o orçamento e a constante necessidade de suplementação orçamentária para que as propostas previstas sejam cumpridas anualmente. 

 

“O orçamento da Defensoria Pública hoje é 1/3 do Ministério Público - que é insuficiente para o Ministério Público, diga-se de passagem - e é um décimo do Poder Judiciário. Não é um traço só da Bahia, é um traço do Brasil. Para que nós conseguíssemos, digamos assim, equilibrar as coisas um pouquinho era preciso que nós pelo menos encostássemos próximos do orçamento do Ministério Público”. 

 

Com a verba reduzida, ainda não há previsão para início da construção da sede própria da DP-BA em Salvador - projeto apresentado há 10 anos. 

 

Em 2023, 12 sedes da DP-BA foram inauguradas - incluindo as unidades reformadas ou que mudaram de local: Itaparica, Macaúbas, Euclides da Cunha, Porto Seguro, Vitória da Conquista, Riachão do Jacuípe, Catu, Camacã, Santa Maria da Vitória, Canavieiras e Campo Formoso. Outras duas regionais foram criadas, em Teixeira de Freitas (14ª) e em Guanambi (15ª). 

 

No ano passado, a Defensoria chegou a todos os 27 Territórios Regionais de Identidades, passando a contar com um quadro de 412 defensores públicos. Apesar do aumento de defensores nos últimos 10 anos, em 2013 eram 224, o número ainda está abaixo do previsto pela Lei Orgânica da entidade, que prevê quadro geral composto por 583 defensores. 

 

Na busca pelo equilíbrio, tendo atingido a marca de 1.129.661 atendimentos em um ano, Venâncio aponta como principal desafio da sua gestão o orçamento e a falta de compreensão sobre o trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública. 

 

Mesmo com o avanço, a DP-BA ainda não está presente em todas as comarcas. Atualmente, conforme dados da própria entidade, a DP está presente em 53 comarcas com atuação plena (Salvador e interior) e 14 comarcas por substituição cumulativa. São 158, dos 417 municípios, atendidos pelo órgão, o que representa 66% população baiana assistida pela Defensoria. 

 

 

No diálogo com a categoria, a defensora pública-geral diz haver uma conversa constante para atender às demandas salariais e de condições de trabalho. 

 

No ano passado, em movimento encabeçado pela Associação de Defensoras e Defensores do Estado da Bahia (Adep-BA), defensores e defensoras públicas aprovaram estado de greve e paralisaram as atividades por três dias. Os profissionais cobravam equiparação salarial com membros do Ministério Público e do Tribunal de Justiça, como prevê a Constituição, e afirmaram que a remuneração está congelada há 11 anos. 

 

“Os interesses da instituição e da classe não são divergentes. Você ter uma classe reconhecida, fortalecida por diversos aspectos, ter o seu trabalho reconhecido é também ter uma remuneração digna”, destaca Venâncio. 

 

O projeto de lei 154/2023 está em tramitação na Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA) para tratar do assunto. A matéria foi colocada em pauta algumas vezes, mas retirada ao ser apontada a necessidade de reajustes. 

 

Venâncio afirma manter diálogo com os deputados estaduais, o líder do governo na AL-BA, Rosemberg Pinto (PT), e com o governador Jerônimo Rodrigues (PT), para agilizar a apreciação e sanção do PL. “O nosso pleito e nosso diálogo com o Executivo foi sempre nesse sentido, de que o que nós buscamos, tanto a gestão quanto a associação, é, digamos assim, ver também na Bahia a mesma sistemática constitucional que tem sido implementada em outros estados da federação”, assegura. 

 

“É uma gestão de continuidade, não vai haver uma ruptura”, diz Pedro Maia sobre comando do MP-BA no biênio 2024-2026
Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

Integrante do Ministério Público da Bahia (MP-BA) desde 2004, o promotor Pedro Maia, 44 anos, assumirá uma nova missão a partir de 1º de março de 2024. Ele ocupará o assento de procurador-geral de Justiça, substituindo Norma Cavalcanti. Em um movimento de pacificação dentro do órgão, o seu nome foi o único na disputa - cenário que se repetiu apenas por outras duas vezes nos últimos 20 anos. 

 

Em conversa com o Bahia Notícias, Maia comentou os planos para os próximos dois anos no comando do MP-BA, com recorte especial para atuação no campo da segurança pública e combate às organizações criminosas. “Eu diria que nós temos ampliado a estrutura e entregado os resultados efetivos, e no médio prazo vamos conseguir vencer esse quadro de segurança pública que é a prioridade para o Ministério Público da Bahia”, frisou. 

 

Outro ponto destacado é a incorporação da inteligência artificial no desempenho dos trabalhos da entidade e a interiorização do MP-BA. 

 

“Estamos também com um investimento muito forte na área de inteligência artificial e, sem dúvida alguma, nesse próximo biênio, que eu estarei à frente, essa vai ser uma das marcas do Ministério Público da Bahia. Vamos estar conectados com o que tem de mais moderno, utilizando já da inteligência artificial para que ela possa realmente impactar no incremento dos serviços para a população baiana”, demarcou. 

 

Natural de Salvador, Pedro Maia integrou a lista tríplice para PGJ como o mais votado nas últimas quatro eleições. Ao longo desses 20 anos, passou pelas comarcas de Canarana, Santa Maria da Vitória, Barreiras, Gandu, Feira de Santana e Vitória da Conquista, sendo promovido para Salvador em 2013 - sempre com atuação na área criminal, seja na Promotoria do Júri, de Tóxicos ou Núcleo de Prisão em Flagrante.

 

Na capital baiana, Maia coordenou o Grupo de Atuação Especial de Combate à Sonegação Fiscal e Crimes Contra a Ordem Tributária (Gaesf), o Centro de Apoio Operacional Criminal (Caocrim) e foi secretário-executivo do Comitê Interinstitucional  de Recuperação de Ativos (Cira). Nos últimos quatros anos atuou como chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça e de março de 2022 a março de 2023 foi secretário-executivo do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG).

 

O senhor foi o único a se candidatar para a vaga de procurador-geral de Justiça do Ministério Público da Bahia para o próximo biênio e obteve o número recorde de votos na história da instituição. Como percebe este cenário da disputa? Considera que seu nome foi um movimento para uma espécie de pacificação dentro do MP baiano?

Eu não tenho dúvida que foi um movimento de unidade, pacificação dentro do Ministério Público da Bahia. É uma votação que realmente me deixou muito feliz, nos dá uma legitimidade muito grande junto à instituição, junto à classe de membros, procuradores, procuradoras, promotores e promotoras. É um processo que vem de algum tempo. Eu me candidato a procurador-geral desde 2016. Eu me candidatei em 2016, 2018, 2020, 2022 e agora em 2024: cinco eleições. Nas quatro anteriores eu figurei como o mais votado, tive a alegria de integrar a lista tríplice, mas como mais votado pela classe e venho numa crescente também em termos de votos. Na última eleição, eu já tinha tido uma votação também recorde com 87% dos votos dos membros e essa eleição acho que consolida esse processo. Eu atribuo isso a uma confiança muito grande na minha trajetória institucional, dentro da instituição atuando tanto na área fim, na ponta, nas minhas promotorias, nos grupos que eu trabalhei, mas principalmente na gestão administrativa e traz uma marca de êxito da atual gestão conduzida pela procuradora-geral, a amiga Norma Cavalcanti, que me deu a possibilidade de trabalhar como seu chefe de gabinete e lhe suceder. Então é um processo de pacificação interna e de confiança na atual gestão, e no meu nome para dar seguimento no trabalho que vem sendo realizado.

 

Queria adiantar sobre as suas perspectivas. O que o senhor tem pensado como prioridade para o órgão nos próximos dois anos?

Marcar primeiro que é uma gestão de continuidade, não vai haver uma ruptura, alguns ajustes sim, uma marca pessoal à frente da Procuradoria-Geral, mas é uma continuidade do trabalho que vem sendo realizado, é a continuidade do projeto que em 2020, há quatro anos atrás, passou a ser implementado no Ministério Público da Bahia que é o projeto que traz a marca da transparência nas ações da Procuradoria-Geral, do Ministério Público da Bahia, de organização administrativa, de eficiência na gestão, suporte à atividade finalística, priorizando os recursos do Ministério Público para essa atividade que é a atividade que está descrita na Constituição Federal e é a atividade do Ministério Público por excelência, que deve se estruturar com uma finalidade: servir a população baiana. Então, é investimento maciço em tecnologia, é atuação nas mais diversas áreas, é a palavra para a segurança pública no Ministério Público da Bahia, prioridade, compreendendo que infância é prioridade pela Constituição Federal, atuação do meio ambiente, na área do consumidor, de direitos humanos, pensando sempre em inclusão e diversidade, educação, saúde, e, enfim, a atuação em todas as áreas que o Ministério Público serve à população baiana. Mas a partir desses pilares de estruturação administrativa, transparência das atividades, melhoria dos fluxos e investimento em tecnologia. 

 

O senhor falou sobre essa questão administrativa. Já tem debatido a questão da ampliação do MP no interior do estado? A possível reestruturação de sedes e quem sabe a inauguração de novas sedes? Tem acompanhado o debate orçamentário neste sentido?

Na verdade é o que eu fiz nesses quatro anos como chefe de gabinete, minha atuação ficou marcada pela atuação na parte administrativa. Em relação à parte estrutural do Ministério Público entregamos só neste ano de 2023, quatro sedes de grande porte, quatro promotorias regionais: Porto Seguro, Eunápolis, Euclides da Cunha e Jacobina - sedes próprias construídas com recursos do Ministério Público. Foram feitas uma série de reformas, aquisição de algumas outras áreas para construção de sedes, cessões de órgãos públicos para o Ministério Público. Então, tem um planejamento bem acentuado para poder o trabalho acontecer da melhor forma possível, sendo um espaço digno de trabalho para os membros e servidores da instituição e, principalmente, para acolher e receber bem a população baiana. Além da parte estrutural, a parte de sistemas, que hoje o trabalho do Ministério Público da Bahia, o trabalho dentro do sistema de Justiça acontece através de sistemas. Temos investido bastante em um sistema de informática, construindo um sistema próprio, adquirindo softwares e isso tem dado um resultado de eficiência para atuação dos membros do Ministério Público. Estamos também com um investimento muito forte na área de inteligência artificial e, sem dúvida alguma, nesse próximo biênio, que eu estarei à frente, essa vai ser uma das marcas do Ministério Público da Bahia. Vamos estar conectados com o que tem de mais moderno, utilizando já da inteligência artificial para que ela possa realmente impactar no incremento dos serviços para a população baiana. 

 

O senhor tocou nesse ponto da inteligência artificial, Salvador no ano passado sediou o Congresso Nacional do Ministério Público que trouxe a temática da inteligência artificial, o Supremo também tem defendido a utilização e regulamentação dessas ferramentas. Como o senhor avalia esse debate e de que forma acredita que esse instrumento pode e deve ser utilizado pelo Ministério Público?

O Ministério Público da Bahia, em 2023, teve o Congresso Nacional que foi o maior congresso em número de participantes da história do Ministério Público brasileiro, eu participei da coordenação desse evento, e no primeiro semestre sediou o Enastic - que é o Encontro Nacional de Tecnologia e Inovação dos Ministérios Públicos, e Tribunais de Contas do Brasil. E eu falar como a inteligência artificial vai impactar a atividade do Ministério Público, preciso ir para o momento anterior, dizer como é que a inteligência artificial vai impactar a humanidade. Acredito firmemente que nos próximos cinco anos a humanidade vai viver a revolução parecida com a que ocorreu por ocasião da Revolução Industrial, vai haver uma mudança completa na forma de produzir, de se relacionar, de viver e tudo isso vai ter que ser muito pensado pelos governos, pelas organizações, pela sociedade civil, porque o impacto será marcante. Vai se produzir muito mais, vai haver uma necessidade de melhor distribuição da força de trabalho, das riquezas. Sem dúvida alguma é uma revolução que vai acontecer e a parte que cabe ao Ministério Público é estar antenado com essa evolução, se antecipar ao que está por vir e caminhar nessa direção. Fechamos com o Cimatec um curso de pós-graduação para toda a nossa equipe de analista de TI, em inteligência artificial. Nossa equipe hoje está preparada para poder lidar com a inteligência artificial, estamos construindo nossos robôs, já tem alguns em fase de teste avançado, e nesse evento que eu citei, fizemos a primeira simulação dentro do Ministério Público brasileiro de um robô trabalhando em cima de inquéritos policiais com inteligência artificial. O resultado foi absolutamente satisfatório, surpreendente, para alguns até assustador, em milésimos de segundos uma resposta bem satisfatória para produzir o resultado final da atividade de assessoramento a um Promotoria de Justiça pronta, o que nos deixa bastante entusiasmados. A gente já tem robôs rodando em fase de teste. A gente tem nosso sistema que é o Fratria, que é um sistema de inteligência artifical que a gente está construindo, um sistema próprio, e a gente vai estar disponibilizando para uso já na atividade fim, na ponta, nesses dois anos, para que a instituição se beneficie desse avanço.

 

O senhor poderia detalhar um pouquinho mais quais seriam as funções desse robô, de que modo eles auxiliam? 

Desde a atividade administrativa, reduzindo o tempo de resposta para os fluxos, na verdade há uma substituição do trabalho humano naquelas rotinas pela inteligência artificial, e a capacidade de produção é incomparavelmente maior; até a atividade na ponta, a confecção de peças processuais, confecção de pareceres. Hoje no Fratria, já está em fase de teste, a gente entrega o inquérito, a máquina faz a leitura do inquérito, corrige a digitalização - que muitas vezes vem falhado -, a partir do conhecimento que a máquina já tem indica a orientação jurídica, o posicionamento, qual seria o tipo de peça - se é uma promoção de arquivamento, uma denúncia, pedido de diligência para autoridade policial já indicando como é que seria -, minuta essa peça e fica só para o promotor realmente analisar, como faz com assessor, e validar. Isso gera economia de recursos, economia de tempo e dá condições de enfrentar as demandas que são cada vez maiores de forma eficiente.

 

Agora, o senhor acha que possam ter aspectos negativos? Levantamos até aqui apenas pontos positivos, mas existe alguma parte negativa, algo que precise estar em alerta?

A principal preocupação que se tem é com a questão da força de trabalho, diversas atividades tanto no Ministério Público quanto em outras áreas do Direito, da Medicina, Engenharia, Publicidade…hoje a inteligência artificial faz música, pinturas, obras de arte - se é que aquilo pode ser considerado arte. A gente tem um conceito de arte que é subjetivo, mas a partir dos parâmetros sinalizados a máquina já faz isso, então há substituição da atividade humana por uma atividade produzida pela inteligência artificial, pela máquina. É de se pensar o que vai se fazer com essa mão de obra ociosa e da própria parte relacional também. A máquina, a gente tem que ter cuidado para não substituir as relações humanas de uma forma plena e que gera transtornos dos mais variados, principalmente para as crianças, os adolescentes, para aquelas pessoas que começam a vida já com essa nova realidade. Tudo na vida tem efeito colateral, a gente tem que extrair a parte boa e tentar projetar e minimizar os danos que advêm dos avanços tecnológicos, principalmente com a revolução como vai ser a inteligência artificial..

 

Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

 

Durante a sua gestão, pensa em debater algum plano de reestruturação do plano de cargos e carreiras dos promotores baianos?

Em relação à interiorização, eu falei só da parte de sedes e eu queria pontuar, para deixar registrado. Recebemos o Ministério Público com mais de 100 unidades que não tinham nem servidor lotado. O Ministério Público está presente em todas as comarcas do estado, temos promotorias que funcionam em todas as unidades do estado, temos um déficit no número de promotores de Justiça e estamos com um concurso em curso, já em fase de prova oral para diminuir esse déficit, mas hoje não temos nenhuma promotoria que esteja desfalcada de servidor. Então temos todas as promotorias do Estado abertas à população, o que nos traz um alento de saber que o cidadão pode procurar o Ministério Público a qualquer momento, inclusive agora em qualquer comarca e vai encontrar alguém para atendê-lo. Temos canais de comunicação também com a população, como o nosso site de atendimento ao cidadão e o número 127 - que é o artigo que define o Ministério Público na Constituição - e foi um avanço que foi colocado a partir do ano de 2021. Qualquer cidadão que discar 127 vai entrar em contato com a equipe de atendimento, que vai direcionar ele ao setor onde a demanda será tratada. Além disso, nós temos a nossa Ouvidoria interna e, como eu coloquei, a presença física de servidores atendendo em todas as localidades do estado. Há uma necessidade de melhoria da estrutura física como eu coloquei, há uma necessidade de avanço da parte pessoal, fizemos um concurso, colocamos mais analistas, servidores e tem um concurso para membros em curso, vamos colocar mais promotores na instituição. Tudo isso considerando que a gente tem um orçamento limitado e que a gente precisa cumprir esse orçamento.

 

Falando sobre o seu histórico de atuação dentro do Ministério Público, o senhor coordenou o Grupo de Atuação Especial de Combate à Sonegação Fiscal e Crimes Contra a Ordem Tributária, o Centro de Apoio Operacional Criminal, atuou no Gaeco, no Núcleo de Prisão em Flagrante, na Promotoria de Tóxicos de Salvador. Com toda essa experiência na área criminal, como classifica a atuação do MP no combate ao crime organizado, às facções que têm chegado e se instalado no território baiano?

Em que pese eu olhar para a instituição na condição de gestor como um todo, na minha atuação profissional eu tive uma vinculação muito grande com a área criminal, com a área de segurança pública. Eu vejo a atuação do Ministério Público no combate às organizações criminosas, principalmente nesses últimos quatro anos, como exemplar. Para o cidadão que está sofrendo as consequências desse momento da segurança pública, que juntamente com as forças policiais, com o sistema de defesa, sistema de Justiça, nós vamos vencer essa luta. Para essa população pode soar como arrogante dizer isso, mas eu tenho que vir à realidade do Ministério Público, a história do Ministério Público, e dizer o que foi feito. Foram 120 operações só do Gaeco, durante esse período. Eu somo isso a três operações do Gaesf, mais outra tantas do Geosp e agora do Gaep. Geosp é o grupo de segurança pública criado nesta gestão, no ano de 2022, para tratar da questão do controle externo da atividade policial, das questões de segurança pública. O Gaep foi um grupo criado em 2023, que trata do sistema prisional. Juntamente com o Gaesp e o Gaeco, o Gaeco sendo o grupo que tem mais robustez, uma estrutura de trabalho muito grande, eu posso dizer que o enfrentamento à criminalidade feito pelo Ministério Público, em parceria com o sistema de defesa, entregou resultados expressivos à população tanto no enfrentamento da criminalidade organizada clássica, aquela que vem do sistema prisional, que trata do tráfico de entorpecentes, dos grupos de extermínio, até aquela criminalidade do colarinho branco que trata dos crimes de corrupção. Então o Ministério Público [tem atuado] de forma efetiva nesses últimos quatro anos e tem muito mais projetado para frente com o uso e emprego maciço de tecnologia nessas investigações, com reforço no número de promotores, servidores e policiais. Hoje a gente tem um órgão de inteligência composto por mais de 70 pessoas trabalhando para dar suporte a essa atividade. A gente interiorizou o Gaeco, colocando um braço do Gaeco no Norte do estado, outro no Sul e já com diversas operações. Fizemos uma campanha, está no nosso site, um mapa do estado da Bahia onde está pontilhado onde foi realizada qualquer operação de enfrentamento ao crime organizado, e quem observar esse mapa vai ver mais de 120 operações realizadas de forma espalhada em todo o território. Investigamos e denunciamos mais de 150 policiais, em desvio de sua atividade, praticando crimes. Foram 500 denúncias de feminicídio. Ampliamos o número de promotores, na verdade ampliamos em 50% o número de promotores no júri na capital; ampliamos em 50% o número de promotores atuando na área de tóxico na capital, criamos a Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial da capital, número de seis. Eu diria que nós temos ampliado a estrutura e entregado os resultados efetivos, e no médio prazo vamos conseguir vencer esse quadro de segurança pública que é a prioridade para o Ministério Público da Bahia.

 

E o que senhor acha que são os principais gargalos para poder conseguir vencer esse atual cenário?

O sistema prisional é o principal gargalo hoje. Eu não tenho dúvida disso. É um problema nacional e que aqui na Bahia se acentua bastante, nosso sistema prisional é poroso e é algo que a gente vai enfrentar, já vem enfrentando com os promotores que atuam em cada unidade prisional do estado e agora com um grupo para fazer uma articulação e integração e um diálogo interinstitucional para enfrentar essas questões. Hoje no nosso sistema prisional, à exceção do sistema federal, há entrada de celulares, de armas, há diálogo de quem está dentro do sistema prisional com quem está fora - diálogo que eu falo, permanente e para prática de atividades ilícitas. O outro gargalo que a gente tem, na verdade não é um gargalo, é uma situação nacional, é um problema que a gente resolve com a atuação firme e integração entre as instituições, entre as forças, para enfrentar essas organizações que transcendem o território baiano, que extrapolam o território baiano, são organizações nacionais e algumas transnacionais, que realmente comprometem todo o quadro de segurança pública. Eu quero deixar claro que a questão da segurança pública é um tema que não se resolve apenas com repressão. Eu acho que tem que se pontuar isso aqui, a gente não pode limitar o debate a essa condição, mas hoje é um enfrentamento com repressão desse momento agudo que vive a segurança pública e a outra mão para trabalhar isso aí é um trato transversal de diálogo com outras áreas para compreender e enfrentar fatores etiológicos. A gente vive sobre um tecido social extremamente esgarçado, que sem dúvida é o componente máximo que alimenta essas organizações criminosas. É a falta da presença do Estado como um todo, eu não estou falando do governo, do Executivo baiano, mas do Estado brasileiro nas áreas mais carentes, nas periferias e o ajuste, a sintonia fina é fazer esse enfrentamento a essas organizações criminosas e entrando com os serviços do Estado, com políticas públicas, para que, principalmente, os jovens da periferia não entrem no crime. 

 

Sobre uma questão que também envolve segurança pública; as disputas de terras no sul e extremo sul do estado. De que forma pretende colocar isso em debate e fazer o MP presente nessa discussão?

Eu já anuncio aqui, a gente está na transição dentro do Ministério Público, vamos criar um núcleo para tratar questões fundiárias dentro do Ministério Público da Bahia - esse núcleo vinculado à Coordenação de Direitos Humanos do Ministério Público da Bahia -, para um olhar especial justamente para a situação dos povos tradicionais: quilombolas, indígenas. Para justamente com esse olhar de direitos humanos enfrentar a questão, identificar todos os fatores de conflitos e utilizar da capilaridade do Ministério Público para fazer esse enfrentamento. Ouvi com muita alegria a criação de um batalhão especializado para tratar dessa temática, que é uma temática aguda em nosso estado e não tenho dúvidas que essa é uma questão delicada, e o Ministério Público vai estar atuando de forma firme para diminuir o tensionamento e a violência no campo.

 

Ainda nesse desenrolar sobre o futuro, o futuro secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubo, defendeu recentemente a criação de um “Gaeco Nacional” para combater o crime organizado, uma proposta que teria sido sugerida pelo agora ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Associações apontam a inconstitucionalidade do projeto. O senhor acredita que este é o caminho para enfrentar as organizações criminosas?

Primeiro registrar a alegria em ter Mário Sarrubo como o secretário nacional de segurança pública, ele saiu da cadeira de procurador-geral do Ministério Público de São Paulo, mas a relação dele com o Ministério Público, baiano inclusive, vem de uma convivência com o Conselho Nacional dos Procuradores Gerais quando a atual procuradora-geral, doutora Norma, presidia e eu o secretariava o colegiado, e ele coordenava o Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas. É uma pessoa talhada para a missão, a difícil missão de tratar em âmbito nacional da temática da segurança pública. E a fala dele em relação à criação do Gaeco Nacional, eu confesso que não ficou claro para mim o que seria esse Gaeco Nacional, mas eu imagino que seja uma espécie de força-tarefa integrada entre as forças policiais e o Ministério Público, que é a forma de atuar dos Gaecos estaduais. O antigo procurador-geral da República, doutor Augusto Aras, já criou o Gaeco Federal, do Ministério Público Federal, à semelhança do que acontece nos Gaecos estaduais. Eu imagino que o debate proposto pelo secretário nacional seria a criação de uma força integrada nacional, trazendo à baila da integração dessa estrutura o Ministério Público brasileiro e participando diretamente das investigações que têm um âmbito nacional e pode ser acionada nas maiores crises que aconteçam em cada estado. Então, eu acho que é muito preliminar ainda falar de constitucionalidade, inconstitucionalidade da criação desse Gaeco Nacional. O Ministério Público não está dentro da estrutura do Executivo e a Secretaria Nacional de Segurança Pública é órgão do Executivo Federal. Eu acho que a expressão Gaeco Nacional veio de uma história do procurador Mário Sarrubo dentro do Ministério Público de São Paulo e na condição de presidente do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, que é um grupo que reúne justamente os Gaecos de cada unidade estadual. Eu não teria como comentar sobre constitucionalidade e legalidade. O que eu posso marcar é que o Ministério Público não tem vinculação, não faz parte da estrutura do Executivo, mas está sempre pronto para participar e colaborar nessa temática, integrando qualquer força-tarefa que seja criada no âmbito da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

 

O senhor citou a PGR. A gente vê, desde a Operação Lava Jato, uma espetacularização da atuação do MPF. Como percebe esse cenário de um possível estrelismo do Ministério Público? Na Bahia a gente tem esse cenário um pouco mais tímido, mas o senhor percebe esse papel?

A expressão que eu usaria para atuação do Ministério Público da Bahia não seria tímido, seria uma atuação responsável. Eu defendo dentro do Ministério Público da Bahia e defendo quando o diálogo para fora, que há um amadurecimento da instituição nesse sentido. O Ministério Público deve prestar informações do seu trabalho, deve dialogar com a sociedade, com a imprensa, mas dentro do espectro que não se destrua reputações e que não se antecipe o julgamento dos investigados, e a instituição vem cumprindo esse roteiro. Eu falei aí de números elásticos, números bastante expressivos de atuações, de operações, de atuações sensíveis de repercussão social, mas a sua fala sobre a timidez da atuação do Ministério Público acho que demonstra de forma clara de que não houve essa espetacularização na atuação do Ministério Público da Bahia. Sobre a Lava Jato, eu acho que nacionalmente já foi discutido o roteiro daquela operação, que não se confunde também com o Ministério Público Federal como um todo, ali foi uma atuação do Ministério Público Federal em Curitiba, mas eu acho que dentro do Ministério Público da Bahia a gente tem uma linha clara compreendida pelos membros que atuam em questões sensíveis, da importância de se respeitar os espaços e o que vai ser divulgado é aquilo que não compromete a investigação, nem expõe o investigado. Eu acho que essa é uma forma responsável de trabalhar, atuar, atuar em silêncio, mas sempre dando transparência à atuação e preservando esses dois valores.

 

O senhor acha que pode ter tido uma politização do papel do que é o Ministério Público, tanto a nível federal quanto estadual?

Pois é, eu vou falar novamente sobre a realidade do Ministério Público da Bahia e desde a formação dos promotores, eu participei ativamente nos últimos cursos de formação dos promotores, o que a gente transmite é que deve se respeitar o espaço de quem foi legitimado através do voto popular para ocupar o cargo de gestor. Então, o promotor de Justiça não pode chegar e começar, através de recomendações e ações, pautar a atuação do gestor municipal, estadual, federal, mas o Ministério Público deve sim observar se há uma atuação desse gestor em conformidade com as normas constitucionais. O papel de fiscal não se confunde com a substituição do gestor, então o promotor de Justiça não deve querer ser o prefeito, o governador, o presidente. Não cabe ao Ministério Público isso aí. Eu acho que uma atuação responsável do Ministério Público, como vem ocorrendo dentro do Ministério Público da Bahia pela totalidade de seus membros, traz uma tranquilidade tanto no meio político quanto da sociedade civil que vê resguardar seus direitos, mas também não vê uma usurpação dessa função de gestor por parte do Ministério Público. Acredito que a gente tem acertado nos últimos anos, a partir de um processo de diálogo interno, de compreensão desse cenário, de compreensão da posição constitucional de cada poder e do Ministério Público que não integra nem o Executivo, nem o Legislativo, nem o judiciário, permeia entre os poderes cumprindo seu papel de fiscal, uma compreensão e desse papel para ter uma atuação amadurecida e que  fortalece não só a posição do Ministério Público, mas serve realmente como uma instituição que entrega ainda mais para a sociedade sem se usurpar de qualquer atividade que não seja aquela que está demarcada e delimitada pela Constituição Federal. 

 

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa? O espaço está aberto para as considerações finais. 

Dizer que eu vou estar sempre à disposição é da imprensa baiana para poder prestar contas do trabalho do Ministério Público. Estou muito motivado para esse biênio à frente da instituição. Eu sou promotor por vocação. Saí da faculdade de Direito e prestei concurso para o Ministério Público da Bahia, antes de ser promotor de Justiça eu era estagiário do Ministério Público, estagiário de direito, e recebo essa oportunidade de ser Procurador Geral de Justiça como um momento para poder realmente servir de forma plena à minha instituição e à sociedade baiana.

“Democratizamos o Poder Judiciário”, crava Castelo Branco ao fim da gestão no TJ-BA
Foto: Camila São José / Bahia Notícias

Empossado presidente do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) em fevereiro de 2022, o desembargador Nilson Soares Castelo Branco deixará o comando da Corte no próximo ano e, na sua avaliação, o principal legado deixado para a Corte baiana é a democracia. “Democratizamos o Poder Judiciário. Saímos da torre de marfim e fomos ao encontro dos jurisdicionados que moram e habitam na Bahia profunda”, afirma. 

 

A cadeira da presidência será ocupada pela desembargadora Cynthia Maria Pina Resende, que tomará posse em fevereiro. Sobre a sucessão, Castelo Branco aposta em um biênio pautado na tecnologia, democratização e diversidade. “Juntamente com a desembargadora das Comarcas do Interior, desembargadora Pilar [Tobio], elas vão dar uma atenção muito grande a esse item consistente na violência contra a mulher e nas minorias que são discriminadas: negros, transgêneros, deficientes físicos”.

 

Nesta entrevista ao Bahia Notícias, Nilson Soares Castelo Branco faz um balanço dos dois anos à frente do primeiro tribunal das Américas, os investimentos no 1º Grau, os gargalos da gestão, a relação com a advocacia e os demais poderes, além da luta travada para restituição da moral e imagem do TJ-BA e seus desembargadores diante de escândalos como a Operação Faroeste. 

 

Depois da última sessão do ano do Pleno, gostaria que o senhor fizesse um balanço de 2023. Qual o saldo?

O tribunal foi um tribunal mais cordato, mais ponderado. Há divergências, mas são divergências civilizadas. Não era um tribunal que tinha, muitas vezes, discussões que saíam dos limites da civilidade e nós estamos buscando construir um tribunal melhor ainda. Esses magistrados novos que têm vindo, seja por antiguidade ou merecimento, têm enriquecido o tribunal, vêm com outra mentalidade. São magistrados de raiz, mas que têm uma vida pregressa modelar. Então eu encaro que a minha sucessão, a sucessora, no caso a desembargadora Cynthia, mulher, afeita e sensível às questões da mulher, juntamente com a desembargadora das Comarcas do Interior, desembargadora Pilar [Tobio], vão dar uma atenção muito grande a esse item consistente na violência contra a mulher e nas minorias que são discriminadas: negros, transgêneros, deficientes físicos. Eu acho que é um tribunal que está se modernizando e tendo uma visão pluralista da nossa sociedade, da nossa história. E cada vez mais eu acredito no Tribunal de Justiça da Bahia sintonizado com a realidade do mundo e a realidade da vida. Se fala em muito acesso à Justiça, acesso amplo, fala-se em multiportas, mas o que eu sinto é que o cidadão brasileiro gostaria que ele se livrasse das demandas ao final, com a prestação jurisdicional mais célere. E isso vai implicar em concursos de magistrados, de servidores, mas tudo isso eu lhe digo na perspectiva de que o Poder Judiciário tem uma responsabilidade na dinâmica econômica. Quanto melhor o judiciário, quanto mais o judiciário que entrega a prestação jurisdicional rápida, melhor será para a economia e para a vida social das pessoas. Porque não é possível que se espere uma demanda com mais de quatro, cinco anos.

 

E o que o senhor acredita que é possível fazer para se reduzir esse tempo, essa morosidade?

Uma reforma constitucional em que se diminua o número de instâncias. À primeira vista pensa-se: ‘olha, muitas instâncias é para que ao final e ao cabo se aprofunde na questão da boa aplicação da Justiça’, mas chegamos ao entendimento de que a demora das demandas com recursos de instância em instância é muito prejudicial. O cidadão quer e requer acessibilidade ao Poder Judiciário, mas também não é de bom grado para ele ficar escravizado pelas demoras das questões e das demandas. Hoje, você não sabe, mas existe um juiz estressado, juízes com depressão, juízes com angústia, porque cada magistrado tem sua estrutura psicológica e psíquica diferente de um e do outro. Então é preciso se olhar também do sofrimento por que passa o juiz e também o sofrimento por que passam as partes que litigam. Não é boa coisa a pessoa saber de que a questão deles não foi resolvida. Por isso que também o Poder Judiciário está intensificando os meios alternativos de resolução de conflito através do Cejusc, da mediação, dos conciliadores, para que isso se resolva através da autocomposição. A autocomposição é mais legítima e eficaz do que é a própria sentença imposta a uma das partes, porque na conciliação e na mediação, as partes constroem a decisão, negociam qual decisão pretendem. Nós não podemos infantilizar a sociedade com essa tutela permanente do poder judiciário. Não é possível que você tenha uma briga com o vizinho a respeito de um pet, de um cachorro e não procure o síndico para resolver, já quer ir logo para o juizado. Precisa ter que se criar junto à sociedade a capacidade dos sujeitos discutirem para resolver o problema.

 

O ministro Luís Roberto Barroso [presidente do Supremo Tribunal Federal] quando esteve aqui em Salvador falou da necessidade de regulamentação do acesso ao STF. O senhor acredita que também seria necessário pensar algo para a primeira instância, para o Tribunal de Justiça?

O que nós precisamos é que a última instância, o Supremo Tribunal Federal, seja uma Instância eminentemente constitucional, para a preservação da Constituição Federal, mas se coloca lá também recursos ordinários, mandados de segurança diretamente interpostos. Nos Estados Unidos, parece que a Suprema Corte julga 80 questões por ano. Isso cria um saturamento mental. Eu gostaria aqui de criar no tribunal um setor de saúde, uma espécie de saúde mental, de alguém ser socorrido pelos dramas, pelas angústias. Às vezes o juiz vai para uma Vara e vê uma vara com 4.000 processos, 5.000 processos e às vezes ele se sente com problemas de depressão, de angústia, de sofrimento. 

 

Isso principalmente no interior?

Agora mesmo você verifica que uma juíza de Feira de Santana foi destinatária de um elogio por parte da procuradora de Justiça, doutora Vanda, pela coragem com que ela teve de determinar a prisão de várias pessoas, inclusive pessoas que detém status políticos, e ela sozinha em Feira de Santana. Então, hoje nós colocamos o setor de inteligência, o setor de segurança para dar garantia a ela. Você vê como uma mulher juíza, magistrada, que às vezes acumula as questões de ser dona de casa, mãe de filhos, ela precisa ter um olhar diferenciado. 

 

Castelo Branco deixará a presidência do TJ-BA em fevereiro de 2024 | Foto: Camila São José / Bahia Notícias

 

O senhor acredita que esse debate também passa por uma possível ampliação de comarcas? 

Muitas vezes aqui as comarcas aqui tinham 40 processos, 100 processos, então houve a necessidade até de extinguir comarcas. A Constituição do estado diz que em cada município haverá uma comarca, mas às vezes, paradoxalmente, quando você cria muitas comarcas, muitos juizados, isso, por incrível que pareça, estimula até os litígios. Por exemplo, Xique-Xique do Iguaçu está ali em eterna paz, todo mundo cuidando, o último homicídio ocorreu há mais de 100 anos, todos vivem em uma interação salutar. Bote um Juizado lá que começa a ter litígio, começa a ter demanda. Tem um elemento psicológico nisso. Nós estamos criando e fomentando a uma sociedade altamente litigiosa, por qualquer coisa ela litiga. 

 

E como desfazer essa cultura?

Através de capacitações, da educação judiciária, da Universidade Corporativa, de tempo de colaboração para dialogar com os demais setores da sociedade. [Neste mês de dezembro] entregamos prêmios a todas as empresas que tiveram a capacidade de resolver conflitos mediante conciliação, elas receberam o prêmio e de Juízes também. Essa capacidade de promover a conciliação é um atributo para o magistrado que precisa ser capacitado para tal. 

 

Essa questão de celeridade, voltado a falar do ministro Barroso, ele tem falado sobre o uso da tecnologia e da inteligência artificial. O senhor acredita que de fato isso possa ter um impacto positivo e dar uma celeridade na análise dos processos?

Pode ter impactos positivos, mas a tecnologia às vezes não pode substituir o homem. O robô às vezes não substitui o juiz, porque muitas vezes é a prolação de uma sentença depende de sentimentos, de valores, a dosimetria de uma pena - que é a quantidade de uma pena que vai se aumentar ou diminuir - depende muito da percepção do magistrado sobre aqueles fatos. Então, o robô vai poder resolver muitas coisas, mas muitas delas essenciais ao aspecto axiológico, valorativo, ele não vai poder resolver. 

 

Agora, durante a sua gestão, o senhor focou bastante no fortalecimento do 1º Grau. Foram diversos fóruns inaugurados. Quais os resultados já são perceptíveis, que até o jurisdicionado possa perceber com essas reinaugurações e qualificações?

A ida do presidente a essas comarcas, que estão localizadas na Bahia profunda, como Cocos, Santa Maria da Vitória, Riachão das Neves, Formosa do Rio Preto, isso é importante porque o jurisdicionado se sente prestigiado, os servidores se sentem prestigiados, o juiz se sente prestigiado e através desse contato direto nós vamos perceber os problemas de cada comarca. Tem comarca onde o nível de violência sexual contra menor ou de abuso sexual contra menores está superando o crime de tráfico. É doloroso. Tem um um município, Carinhanha, se eu não me engano, que faz divisa quase com Minas Gerais, que ela [a prefeita] chegou a implorar em uma inauguração. Como mulher, como negra, essa prefeita, Dona Raimunda, nunca me esqueci, onde ela clamava para que os órgãos, inclusive o poder judiciário, prestassem atenção para essa questão que está ocorrendo no município relativamente às violências sexuais contra menores e os abusos sexuais. A ponto de eu ser informado que o delegado de polícia não resolvia muitas das questões, porque sequer tinha um veículo. Essa questão não é de governo, porque você vê coisas boas feitas pelo Governo da Bahia, com a questão de [escola de] tempo integral - aonde a criança menos favorecida entra pela manhã, tem a merenda matinal, depois elas tomam banho, almoçam, ainda ficam estudando cursos de música, de desenho, geometria, linguagem, é um espetáculo. Então o governo faz, mas ele não tem condições de fazer tudo. Eu vou ter um contato com o governador [Jerônimo Rodrigues], para que eu possa dizer a ele o que é que está acontecendo em Carinhanha. Ao tempo em que vou aplaudir pelas atitudes e as obras bem fazeres que tem trazido ao estado da Bahia.

 

O senhor acredita que esse diálogo entre Judiciário, Legislativo e Executivo tem se estreitado cada vez mais? 

Tem se estreitado e há de se estreitar mais. Os atos de colaboração com os poderes, isso é muito importante. Eu chego no interior e vejo que o prefeito municipal está colaborando com o judiciário, às vezes fazendo cessão de funcionários, ajudando o juiz. Então eu vejo com muita esperança essa questão das colaborações entre Executivo, Judiciário e as Câmaras de Vereadores porque todos querem que exista uma sociedade melhor, mais justa, mais fraternal.

 

Mas o senhor não teme essa questão da politização do politização? Porque a gente tem visto até no cenário nacional, com as indicações de ministros ao STF, por exemplo. 

Isso é um problema que é um momento histórico, isso vai passar, a sociedade vai chegar a um ponto de amadurecimento crítico e de força junto a essas instâncias para que elas se modifiquem. Essa questão, nós tivemos Supremos em momentos virtuosos, não estou fazendo crítica a atual composição do Supremo, mas eu não sei, eu acho talvez que isso decorra muito das questões das redes sociais, das polarizações ideológicas, das narrativas. Fenômeno que ocorre no mundo inteiro.

 

Agora falando dos gargalos, a questão do PJE, o senhor acredita que melhorou apesar das críticas? 

Melhorou e tem ainda um emperramento aqui e acolá, mas tem sido amplificado a capacidade desses provedores. Tem o chamado provedor redundância, que na caída de um vem outro. Você pode verificar que diminuiu muita crítica, ainda existe, mas foi atenuada. Na próxima gestão, eu tenho certeza de que vai melhorar muito ainda. Isso é um processo.

 

E questionamentos de advogados e da própria OAB sobre as prerrogativas da advocacia, principalmente na questão das sustentações orais? Advogados relatando, por vezes, terem sido barrados de sustentar. 

Olhe bem, existe um mundo de processo. Eu fui advogado, eu sei o significado e o valor da sustentação oral. Mas há momentos em que se for dar ao advogado, a todas as incidências que ocorrem no processo com recurso contra decisões interlocutórias a possibilidade de sustentação oral, vamos começar às 8h30 aqui e terminar às 4 horas da manhã que ainda não termina. Isso é uma forma de abreviar. Eu gostaria que todos produzissem sustentação oral, até porque é uma sustentação oral que evita que nós magistrados possamos praticar uma injustiça. Quantas vezes eu já não levei processos à Corte e, de repente, o advogado diz algo, eu peço vista desse processo e entendo que ele tem razão. Até já aconteceu aqui, de uma senhora vir ao meu gabinete, de Maceió, chegou umas 17h45 e eu estava saindo para ir para casa, e minha secretária - eu tinha uma secretária muito amável e humana - disse: 'desembargador, vem aqui, a pessoa veio lá de Maceió para a ver a questão do filho dela sobre a quantidade de droga'. Eu voltei sem advogado, eu e os assessores reexaminamos o processo, e ela tinha razão. Então a própria parte em contato com o juiz e a LOMAN diz isso, é obrigado a magistrado atender os advogados e as partes. É capaz de clarear o ponto que para nós ficou obscuro. 

 

Mas o senhor acha que existe essa guerra mesmo entre magistratura e advocacia?

Essa guerra no mundo está em todos os lugares. É a mesma que Thomas Hobbes, em Leviatã, todos contra todos. É juíza contra juíza, juiz de primeiro grau contra o tribunal, desembargador; tribunais de instância inferior contra os tribunais superiores. Você tem legislador contra juiz, juízo contra legislador, mulher contra homem. É um negócio sério que está se expandindo no mundo, uma briga constante. 

 

A polarização…

A polarização no mundo é uma coisa. Eu também às vezes penso: será que não foi o novo despertar? Isso não veio para um novo despertar? Será que isso não é uma fase histórica que vai desembocar em um momento civilizatório mais avançado, para se chegar a uma síntese? Eu acredito, às vezes, muito nisso, que às vezes é o prelúdio de uma etapa melhor do que a que nós estamos vivendo.

 

Foto: Camila São José / Bahia Notícias

 

O senhor na última sessão do Pleno falou muito sobre restituição da moral e restituição da imagem da magistratura. Como é que avalia esse novo momento do tribunal com a chegada de novos desembargadores e em paralelo a abertura de novas investigações, com desdobramento da Faroeste e também fora do âmbito da força-tarefa?

Nós entregamos exemplares do Código de Ética da Magistratura. Eu sinto que vem uma turma iluminada, com nova visão, com novo modo de olhar. Houve um ganho significativo desses novos desembargadores que foram investidos no Tribunal de Justiça. Têm outro pensamento, um pensamento renovador, mais lúcido, mais saudável, eu tenho certeza que o Tribunal de Justiça, sobretudo no comando da desembargadora Cynthia, vai evoluir. Ele vai evoluir. A própria pressão da sociedade, a liberdade de imprensa que é importante, não se pode criminalizar a liberdade de imprensa, a liberdade de imprensa é salutar, é saudável e contra ela não pode se impor censura prévia, isso é uma regra para mim que vem ao encontro dos marcos civilizatórios que nós encontramos. Isso é importante que o judiciário tome consciência disso, inclusive eu e meus colegas. Então tudo isso é importante. A imprensa é importante, o Ministério Público é importante, outra instituição fabulosa que está vindo aí é a Defensoria Pública - trabalhos tecnicamente excelentes, com a nova visão de compromisso com o ser humano -, tem a OAB, um grupo de advogados que pensam de uma forma libertadora, emancipadora, da mulher, do homem, das pessoas que são discriminada,s das pessoas que são objeto de preconceito. Então isso é muito importante para todos nós. Nós tiramos ali o Prêmio Transparência, foi o primeiro do Brasil.

 

Ia perguntar exatamente sobre os prêmios que o tribunal recebeu esse ano.

Isso ajuda, quanto mais transparente são as instituições, mas ela capta o resultado dessas transparências evoluindo com a crítica. As transparências existem para que ocorra a democracia, para que alguém de lá aponte os nossos defeitos. Fizemos um portal que evoluímos muito em decorrência das críticas existentes. 

 

Se o senhor pudesse definir em uma palavra a sua gestão e destacar os principais pontos, o que diria?

Para mim a democracia. Democratizamos o Poder Judiciário. Saímos da torre de marfim e fomos ao encontro dos jurisdicionados que moram e habitam na Bahia profunda, para ouvir todos, para ouvir a servidora, o juiz, o administrador do fórum, o advogado, o Ministério Público, o defensor público. A presença do presidente, a presença da mesa diretora no interior da Bahia profunda é importante, nisso que se consiste na democracia do Poder Judiciário.

 

Se o senhor puder fazer projeções também para o futuro do Tribunal de Justiça da Bahia. O que o senhor deseja?

É a maior democratização, até porque em toda essa caravana física que fizemos, caravana cívica que fizemos ao longo de muitas ao longo de muitas comarcas no interior da Bahia. Eu fui com Cynthia, que era responsável pela Justiça 4.0 e implementação 4.0, e pelas salas passivas onde existe o local no fórum, onde o facilitador recebe as pessoas que são excluídas digitalmente para serem inseridas dentro da estrutura do Judiciário. Salomão [Resedá] também, um grande desembargador, que tem como perspectiva preocupações com a criança e o adolescente, ele foi e vai ainda para essas comarcas para que se instale a sala de depoimento especial, que é ouvida a testemunha da criança vítima de abuso sexual ou quando ela testemunha de crime que tem um contorno, afeição de violência, ele também foi importante, ele é importante. Eu tenho certeza que a desembargadora Cynthia, pela essa vivência, ela que inclusive já foi corregedora do Interior, ela vai dar ênfase nessas visitas às comarcas do interior.

Enegrecer a Justiça é uma agenda irreversível, enfatiza advogada baiana indicada para o TSE
Enegrecer a Justiça é uma agenda irreversível, enfatiza advogada baiana indicada

Baiana, natural de Livramento de Nossa Senhora, no Sertão Produtivo, a advogada Vera Lúcia Santana Araújo compõe pela segunda vez a lista tríplice para a vaga de ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e foi defendida por movimentos sociais e de juristas para o lugar de Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF). 

 

Com a carreira construída em Brasília, tendo se mudado para a capital federal aos 18 anos onde se formou em Direito, Araújo defende que “enegrecer” o sistema de Justiça é uma “agenda irreversível”. 

 

Em entrevista ao Bahia Notícias, a advogada pontua a falta de representatividade não apenas no TSE e STF, mas em todo o sistema de Justiça. “Benedito [Gonçalves] entrou no STJ foi no governo Lula e continua sendo o único. Não tem nenhum tribunal, nenhum Tribunal Regional Federal que tenha uma desembargadora federal negra. Só tivemos até hoje a desembargadora federal negra, a desembargadora Neuza [Maria Alves], daí da Bahia, no TRF-1. Você não tem no Ministério Público Federal um único negro no país”, critica. 

 

Integrante da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), Vera Lúcia consolidou a sua carreira no Direito com forte atuação no campo político, especialmente nos quadros do governo federal. 

 

Ao BN, a advogada fala da sua trajetória e sobre a expectativa de poder compor uma bancada histórica no TSE ao lado da ministra substituta Edilene Lôbo - a primeira mulher negra no cargo. “O que significa isso? Se o presidente Lula me nomear para o TSE, ter a possibilidade de compor uma bancada histórica, duas ministras, ainda que substitutas, mas duas ministras substitutas negras do Tribunal Superior Eleitoral pela primeira vez… De novo estarei escrevendo a história”.

 

A senhora é advogada, neta de lavadeira, filha de professora, nascida em Livramento de Nossa Senhora, sudoeste da Bahia, ativista de movimentos sociais, ligada a movimento de mulheres negras e de juristas pela advocacia, tem mais de 40 anos de atuação como jurista, foi para Brasília aos 18 anos para estudar e vive na capital federal desde então. O que dessa sua história de vida e trajetória acadêmica dizem sobre o seu fazer jurídico?

Eu acho que eu estar a longo de todo esse tempo atuando como advogada privada e igualmente atuando na esfera pública, em cargos importantes de função jurídica e também em cargos de gestão, naturalmente que tudo isso me deu um aprendizado que vai para muito além do aprendizado dos livros, dos tempos acadêmicos, na medida dessa articulação entre o saber e o praticar do direito, o operar, a materialização de direitos. Então, a minha história é marcadamente destacada, eu acho, que por esse recorte de uma execução material do que é o direito. Acho que diz muito sobre isso. 

 

Ter essa vivência social, a sua experiência acadêmica diferencia a senhora em algum sentido?

As minhas escolhas se deram sempre muito em torno de projetos políticos coletivos, projetos políticos de formulação, de execução de políticas públicas. Por exemplo, eu fiz um mestrado. Quando eu estava no mestrado de Política Social aqui na UNB [Universidade de Brasília], foi na época da elaboração da Lei Orgânica do Distrito Federal - o Distrito Federal a gente só veio a ter representação política a partir dos anos 90. Resultado: eu fui convidada para trabalhar na assessoria de um parlamentar exatamente pela minha formação jurídica, pela experiência porque eu já tinha sido também do Parlamento, na criação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Ao mesmo tempo dei uma contribuição muito grande, inclusive tendo sido a primeira coordenadora da Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara Legislativa. Então assim, eu sempre fui muito estudiosa, sempre gostei muito de ler, desde Livramento. Durante a faculdade aqui em Brasília, eu fiquei amiga de todas as senhoras que trabalhavam na biblioteca do Ministério da Justiça, porque às vezes eu passava o dia inteiro na biblioteca do MJ estudando e dando concretude a isso dentro do meu trabalho. Então, assim, digamos que eu ia fazendo uma coisa meio que autodidata no sentido de estudar Direito Administrativo e tal, no tempo em que advogava mais como advogada privada. Depois, em 1993 eu fui aprovada na seleção do mestrado da Faculdade de Direito de Florianópolis, Santa Catarina, e era o auge daquele debate sobre direito alternativo, então fazer mestrado em direito alternativo, era um sonho de todo profissional do campo progressista. E aí fui aprovada, a gente tinha toda já uma demanda de organização, à época eu já filiada ao PT, fui fundadora do PT, e para organizar, como eu já fazia a coordenação jurídica das campanhas do PT, mas assim dispensar uma campanha mais robusta que foi a campanha do Cristovam Buarque, quando a gente elegeu o Cristovam primeiro governador do PT do Distrito Federal. Resultado: eu não fui nem para fazer minha matrícula lá no mestrado e aí é um capítulo da minha vida que eu acho que eu fiz a coisa certa, porque eu fui consultora jurídica do gabinete do governador ao longo dos quatro anos e, sabidamente, nenhum mestrado, não para desqualificar a academia, mas enfim o meu aprendizado de Direito, de vida de política, de gestão na consultoria jurídica de um governador do Partido dos Trabalhadores que tinha como presidente, ou seja, o governo central que era do Fernando Henrique [Cardoso] à época - nós éramos um governo de oposição -, era um exercício extremamente desafiador e, por óbvio, a exigir e saber jurídico que desse sustentação, robustez, segurança jurídica às políticas do governo, que realmente foi assim a minha grande escola, foi efetivamente a minha grande escola jurídica. Então eu acabei fazendo sempre essas escolhas de executar o direito, operar com o direito, embora eu goste, já participei, já ajudei na concepção, inclusive, de cursos pontuais com operadores do Sistema de Segurança Pública, que é uma área que naturalmente me atrai muito. A questão dos direitos humanos num país onde o racismo impera, como é aqui no Brasil, por óbvio, que me afeta profundamente. E aí eu adoro elaborar, fazer, participar, compor cursos especiais para formadores, mas esse ano eu me projetei para uma vida acadêmica como professora, então as minhas escolhas acabaram ficando muito marcadas por esse pragmatismo de operação com o direito.

 

Agora falando sobre o STF, a senhora teve seu nome defendido por movimentos sociais e organizações de advogados para ocupar a vaga deixada por Rosa Weber. A indicação de uma mulher negra é uma pauta que vem sendo debatida e cobrada do governo Lula durante meses. A que a senhora atribui esse apoio? 

Quando no ano passado o Supremo Tribunal Federal me incluiu, e aí fui a primeira jurista negra a compor uma lista tríplice do Supremo para o Tribunal Superior Eleitoral, o fato de ser primeira acabou trazendo luzes para a ausência de representatividade negra e especialmente de mulheres negras na composição do sistema de Justiça, com destaque do Poder Judiciário. Isso criou naturalmente a expectativa de que eu pudesse ir para o TSE, que também todo mundo sabia que seria muito difícil dado o contexto político daquela época. Quando nesse ano algumas pessoas começaram a trazer à tona essa reflexão e aí os ministros do Supremo Tribunal, ministra Rosa Weber, ministro Edson Fachin, isso foi ganhando corpo, acho que fez eco junto à sociedade, meu nome surgiu, embora não por uma reivindicação, postulação minha, efetivamente não foi, muito pelo contrário. Mas, assim, digamos que era um nome muito natural em virtude do processo anterior, foi o meu nome que trouxe um pouco o processo. Supremo/TSE foi o que trouxe luzes para isso, então era meio que natural que meu nome emergisse. Inclusive quando o meu nome começou a circular foi por uma nota de um jornalista que sequer tem uma relação, então assim, digamos, foi muito natural para olhares externos e aí depois foi ganhando corpo e a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, que eu integro, entendeu que encampar de verdade essa agenda só faria sentido tendo um nome. Foi muito natural, muito tranquilo de que recaísse sobre mim essa indicação, daí foi que eu efetivamente fui colocada no processo, mas não por uma auto candidatura. 

 

Quero compreender da senhora o que representaria para o Supremo e para a sociedade brasileira 130 anos após a criação do STF ter uma mulher negra entre aqueles 11 ministros ocupando uma cadeira independentemente de ser a senhora ou não?

Primeiro, há que ser um perfil de uma representação democrática, assentada numa construção jurídica construída coletivamente também pelos movimentos sociais, pelos debates sobre o racismo no Brasil. Por quê? Porque a prestação jurisdicional do Brasil, toda ela, em qualquer área que você investigue, estude, tem essa clivagem da seletividade racial fazendo sempre a menor, quer pelo acesso quer pela decisão. E aí eu não digo somente na área criminal, que é a mais evidente, diante de um encarceramento em massa que é da juventude negra. Junto com isso você tem a impunidade dos agentes do Estado, dos avanços policiais que matam os negros e que tem a impunidade, significa que há cumplicidade do sistema de Justiça. Você tem na questão da reparação, por exemplo a reparação por danos morais você faça qualquer pesquisa em qualquer tribunal, vai identificar que para os mesmos casos, mesmo que seja numa relação de consumo, a indenização para as pessoas negras é sempre menor. Nossa moral, nossa dignidade humana vale muito menos do que a do branco, então você levar essa reflexão no operar do direito, no interpretar e aplicar a lei e, especialmente, o Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição Federal que tem a dignidade humana como o princípio fundante da própria República, a diferença que isso vai fazer é incomensurável. É para passar a julgar a favor de  A ou B? Não, não se trata disso. É de efetivamente levar um olhar que obriga o pensar sobre as diversidades, é você levar matrizes e referenciais teóricos também diferenciados. Me recordo que quando do julgamento da lei de cotas das universidades públicas, da constitucionalidade daquela política, que o ministro Joaquim Barbosa ainda estava no tribunal e de o ministro Gilmar Mendes ter declarado naquela sessão que aprioristicamente ele tinha uma posição contrária, mas foi o debate, o olhar trazido, levado, compartilhado pelo ministro Joaquim que é negro, que foi que alterou a percepção dele sobre essa questão. Então, assim, é manifesto e tem como legítima a presença de mulheres nos tribunais, e hoje a gente tem de maneira crescente, mas são sempre mulheres brancas. Por que não se entende que o olhar da mulher negra é diferenciado, até porque são experiências muito diferentes? Então o distanciamento das realidades que a elite branca leva para composição do sistema de Justiça, por óbvio que emprenha a interpretação jurídica a partir dessas experiências. Se você pega em Salvador uma pessoa branca, uma mulher branca que nasceu na Graça, que nunca pegou um ônibus para chegar até Itapuã, que não sabe o que que é a insegurança de uma escola pública, a falta de professor, a própria formação escolar educacional lá, vai fazendo o recorte em que o limite do convívio que essa pessoa tem com a realidade do mundo negro é com a empregada doméstica, é com o secto doméstico, muitas das vezes sem sequer ter uma carteira assinada. Na hora que essa mulher branca ou homem branco, mas aí fazendo o recorte mesmo de gênero, independente de ser magistrada na Justiça do Trabalho ou na Justiça comum ou vá para o Supremo Tribunal Federal, então a absoluta insensibilidade dos gravames que é a carência material, o que é o viver da discriminação racial em que muitas vezes a pessoa não te fala meia palavra e simplesmente te discrimina, marcadamente te discrimina. Todos esses debates você faz levando a sua carga existencial. A imparcialidade do magistrado, da magistrada é um preceito constitucional democrático do ponto de vista pessoal. Quando se fala da imparcialidade da magistratura é para leitura interpretativa e aplicação do direito, não é um desprovimento da existência humana. Quer dizer, o meu pensar sobre qualquer assunto, assim como o seu, de qualquer juiz, juíza, é marcado pelas próprias realidades. 

 

Aliada a essa discussão com recorte de gênero e raça, a senhora acredita também que é preciso pensar numa indicação de uma mulher negra que seja ligada ao campo progressista ou isso não faria diferença?

Faz toda a diferença. Eu não tenho nenhum interesse em ter um negro ou uma negra que não tenha esses compromissos democráticos para sacralizar um sistema racista, como o que a gente vive. Não me interessa ter uma promotora de justiça, e aí é importante acrescentar o seguinte, eu tenho batido nisso: esta pauta é irreversível. E quando eu digo que ela é irreversível, não é se o Lula agora não nomear não vai importar no sentido de que isso não vai arrefecer essa agenda. A agenda do enegrecer o sistema de justiça é irreversível. Agora, não me interessa ter uma desembargadora negra que seja antidemocrática, que nega a existência do racismo e que venha vaticinar uma meritocracia porque de repente ela passou no concurso e não fez uso de cota. Quer dizer, esse pensamento não constrói e não avança. Então, essa pauta que é coletiva, que para mim é uma pauta coletiva, ela se assenta nesse laço, na construção democrática. Acho que a representação legítima tem sim um recorte ideológico, não obrigatoriamente partidário no caso do sistema de Justiça, mas ideológico no sentido deste compromisso, desse patamar. É desse ponto de partida que eu saio, é daí que eu me projeto, então fora desse campo não me interessa. Muito pelo contrário, eu acho que atrasa, inclusive, as pautas da negritude, da existência do povo negro.

 

Foto: Arquivo pessoal

 

Como a senhora acredita que esse debate pode sair da bolha da militância e chegar à massa, à sociedade civil de um modo geral, para que de fato seja compreendido o verdadeiro significado de ter uma mulher negra ocupando uma vaga de ministra do STF?

Eu acho inclusive que isso tem saído um pouco, até porque muitas de nós que têm tido nomes lembrados, projetados para isso, temos origens nas classes populares, somos filhas de trabalhadores, operários - meu pai era garimpeiro -, então isso naturalmente acaba por levar até os grandes rincões, grandes no sentido das quantidades. Nossa Bahia, o fato de eu ser de Livramento fez repercutir no interior do estado. Acaba rompendo a bolha. Eu não conheço nenhuma jurista negra que tenha nascido nas classes abastadas. 

 

Falando sobre a questão do TSE que a senhora, como já adiantou, compõe pela segunda vez essa lista tríplice, inclusive, ao lado de uma outra baiana, Daniela Borges, presidente da OAB e uma mulher branca. Como a senhora recebeu novamente esta indicação e a possibilidade de ser a segunda mulher negra no TSE?

Pela segunda vez o Supremo Tribunal Federal trazer meu nome para essa cena, só reafirma uma responsabilidade com esse meu papel de representatividade nesse ambiente jurídico que é tão marcadamente branco e branco masculino. Isso, assim, digamos, alimenta o ego um pouquinho, mas acima de tudo reforça a minha responsabilidade política, social com o impacto disso. O que significa isso? Se o presidente Lula me nomear para o TSE, ter a possibilidade de compor uma bancada histórica, duas ministras, ainda que substitutas, mas duas ministras substitutas negras do Tribunal Superior Eleitoral pela primeira vez…De novo estarei escrevendo a história. Então, recebi com muito orgulho e com esse peso dessa responsabilidade, o que também ao mesmo tempo elevou a visibilidade do meu nome para essa agenda do próprio Supremo. Se eu tiver que me definir por uma única palavra, me definir como pessoa cidadã, jurídica, mulher negra, ativista profissional do direito, se eu pudesse usar uma: institucionalidade. O fato de não ser de origem dominante, nem da raça nem da classe dominante, me fez ter sempre um senso de institucionalidade desse ambiente que é o meu universo de trabalho, que acaba sendo também o meu universo de convívio social em boa medida, me imbuiu muito essa responsabilidade que eu tinha que ter responsabilidade, de não poder errar, não vacilar, então, assim, ter trabalhado como advogada, jurista na esfera pública em governos em que eu era assumida e declaradamente de oposição. Por exemplo, no governo Fernando Henrique eu fui coordenadora jurídica do Departamento Nacional de Trânsito no momento muito peculiar da implantação do novo código de trânsito. Eu fiquei nessa função por cerca de três anos, eu passei por nove diretores do departamento e cinco ministros da Justiça, porque na época o Denatran era vinculado ao MJ. E eu era filiada ao Partido dos Trabalhadores e todo mundo sabia, eu era dirigente partidária, já fui delegada do PT junto ao próprio TSE. Isso fazia com que eu exigisse de mim níveis muito absurdos de cuidado com o meu trabalho e como chefe eu tinha que responder pelo trabalho de toda a equipe, então isso fez de mim uma profissional sempre muito exigente, muito criteriosa. Com esse senso de institucionalidade muito forte. E também precisamos ter a tranquilidade de saber entrar e sair desses espaços, sem deixar mágoas, sem pisar em ninguém, sem atropelar nenhum processo, respeitar todas as pessoas pelas quais eu passo. Enfim, então estou vivendo com muita tranquilidade esse processo.

 

A senhora falou sobre a construção de uma bancada histórica. É sobre também garantir que esse espaço não seja um espaço único, ocupado por um único negro ou uma única negra sempre?

Essa semana o ministro Benedito Gonçalves, que tinha assento como STJ, venceu o período e assumiu uma ministra branca. Isso significa que a gente vai ter, sei lá, um século mais para ter um ministro negro no STJ até chegar ao ponto de ter assento no Tribunal Superior Eleitoral, vai ser coisa assim sei lá de quantos anos, projetando no futuro. Porque não tem um único. Benedito entrou no STJ foi no governo Lula e continua sendo o único. Não tem nenhum tribunal, nenhum Tribunal Regional Federal que tenha uma desembargadora federal negra. Só tivemos até hoje a desembargadora federal negra, a desembargadora Neuza [Maria Alves], daí da Bahia, no TRF-1. Se você projeta, de pensar em perspectiva, essas projeções são funestas. Você não tem no Ministério Público Federal um único negro no país, um procurador da República negro ou um subprocurador, não temos. Então, assim, tudo deu errado nesse país, tudo deu errado porque esses níveis de desigualdade não podem ser naturalizados. Ou você se investe da vontade política, do compromisso político de dar concretude e materialidade à Constituição Federal, ou ela vai continuar sendo uma letra morta. Tomo até muito cuidado na hora de usar a palavra nação, porque eu acho que a gente nunca constituiu uma nação. Eu não posso pensar que uma nação seja essa expressão de exclusão que é a realidade brasileira. A gente tem o território, a gente tem o povo, a gente não tem exatamente uma unidade nacional, porque senão eu tenho que concluir que a unidade nacional é para exterminar o povo negro. Porque as margens de exclusão, de marginalização, de miserabilidade que nos impõem são muito cruéis, são muito perversas.

 

A senhora fez projeções. Se pudesse idealizar o sistema de Justiça brasileiro ideal para os próximos anos, qual seria? Se puder definir, partindo desse princípio.

Em termos ideais e a utopia existe exatamente para que a gente persiga, para que a gente busque a idealidade, nós somos 56% da população brasileira. Então, por que eu tenho que ser tão sub representada? Tão sub representada que não chega nem no tracinho, aquela coisa da pesquisa. Porque é disso que se trata, não da minha perspectiva e minha prospecção de futuro. 

 

Para finalizar eu queria que a senhora comentasse sobre o trabalho desenvolvido junto à Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

A ABJD é uma entidade muito inovadora. Primeiro, porque ela reúne todos os segmentos das carreiras jurídicas, a partir do estudante. Ela tem essa singularidade pela pluralidade. É a única que reúne de fato todos os segmentos. A gente tem uma organização horizontalizada. E é uma entidade que nasceu exatamente por uma demanda, por uma real necessidade de defesa do Estado democrático de direito, contra o golpe que depôs a presidenta Dilma em 2016. Nós fizemos uma campanha belíssima, a campanha “Moro Mente”, denunciando os crimes da Lava Jato, os abusos e arbítrios da Lava Jato, as ilegalidades da prisão do presidente Lula. Então, é uma entidade naturalmente desvinculada de qualquer partido político, mas que se colocava dentro dessa pauta porque a defesa da liberdade do presidente Lula era a própria defesa do Estado democrático de direito, diante das fragrâncias que víamos naquele processo forjado para prender o Lula e tirá-lo do processo eleitoral, como se consolidou. Quando a gente viu culminando com o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal das ilegalidades cometidas pela ausência da imparcialidade do juiz [Sergio] Moro, ou seja, a parcialidade que o fazer ativo do juiz Moro, em articulação com membros do Ministério Público, da Polícia Federal, para forjar situações, provas para fazer prisões, forçar delações que somente eram aceitas se pudessem implicar e responsabilizar o presidente Lula, a ABJD se tornou uma entidade central nesse debate, nessa articulação de força em defesa da democracia. Então fazer parte desde o nascedouro da ABJD é uma coisa que me envaidece. Muito me orgulha. 

 

Quais os impactos que a senhora acredita que a ABJD deu tanto no mundo jurídico quanto na relação do sistema Justiça com a política?

Eu não chamaria de relação da Justiça com a política. Óbvio, a democracia é intrinsecamente um fazer político. O Estado democrático de direito é o espaço jurídico-político que você dá ao país. O Brasil é um estado democrático de direito, então é o espaço jurídico-político que se confere ao país. Então, assim, a política no sentido do exercício da cidadania, da democracia e da nossa função estatutária, mas não o político com qualquer espécie de recorte partidário, daí a importância é tamanha que, por exemplo, hoje, a gente tem o julgamento de uma ADPF no Supremo Tribunal Federal, a 973, que debate o Estado racista que é o Brasil e a demanda da promoção de políticas de combate a esse racismo, e a ABJD se somou ao processo como amicus curiae. Ou seja é um enraizamento, entrelaçamento com o movimento social negro, com a Coalizão Negra por Direitos, e por sermos juristas não nos limitamos ao universo da organização do sistema de Justiça. Nós somos uma entidade democrática, exatamente, porque postulamos a efetividade do exercício da cidadania, o respeito à dignidade humana. Esse trabalho que a gente tem em questão conjunta com o MST, com as várias organizações progressistas democráticas, o Fórum Social Mundial, Justiça e Democracia, a gente tem um diálogo muito articulado com todas as forças vivas e defensoras do Estado democrático de direito. 

“É o momento do MPT mostrar o seu serviço e a sua utilidade”, defende novo procurador-chefe
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

Procurador do trabalho desde 2010, Maurício Brito assumiu o posto de procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho da Bahia (MPT-BA) em 1º de outubro e foi empossado no cargo no dia 18. Ele exercerá o mandato de dois anos (2023-2025) à frente do órgão, e em conversa com o Bahia Notícias detalha alguns dos planos e desafios da sua gestão. 

 

Uma das metas é reforçar e ampliar a equipe durante o seu biênio. Segundo Brito, cinco novos procuradores deverão ser convocados, já a seleção de outros servidores dependerá da definição da nova chefia da Procuradoria-Geral da República (PGR). "Com relação a procuradores, temos uma boa notícia. Foi uma lei aprovada, ano passado, que criou o cargo 70, 100, no Brasil e teremos cinco novos, no biênio, na minha gestão”, indica. 

 

Ainda no âmbito institucional, a ideia, a partir do reforço da equipe, é intensificar a atuação no interior do estado. Atualmente, o MPT-BA possui promotorias em oito municípios: Salvador, Barreiras, Eunápolis, Feira de Santana, Itabuna, Juazeiro, Santo Antônio de Jesus e Vitória da Conquista. 

 

 

Uma outra prioridade, de acordo com Maurício Brito, é a atuação na área da segurança pública: com a garantia dos direitos trabalhistas para os agentes do setor e a ressocialização de pessoas presas e egressos do sistema prisional por meio do trabalho. 

 

Conforme Brito, existem muitos “pontos sensíveis” comuns entre o MPT-BA e a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA). “Desde as condições de trabalho internas, nas delegacias, a estrutura da própria delegacia, imobiliário…A gente tem a saúde mental do policial. As pessoas veem o policial ali, muitas vezes, como um heroi ou até como um vilão, e a gente vê como trabalhador”, comenta. 

 

“E a questão do sistema prisional, que talvez hoje seja uma das grandes atuações que nós temos no MPT, a gente busca que presos e egressos do sistema prisional tenham trabalho. A gente quer a cidadania dessas pessoas para o trabalho”.

 

 

No cenário em que a Bahia lidera no Nordeste a lista suja dos empregadores do Ministério do Trabalho e Emprego e onde mais de 360 pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão foram resgatadas, somente no primeiro semestre deste ano, a atuação para a erradicação da escravidão contemporânea seguirá sendo prioridade. 

 

Neste terceiro bloco, Maurício Brito, fala das atuações do MPT e do planejamento para os próximos dois anos. 

 

 

Quando se fala em escravidão contemporânea, os trabalhadores e trabalhadoras domésticas figuram entre as principais pessoas afetadas. Mas o que configura o trabalho análogo à escravidão no ambiente doméstico? Quais os direitos e deveres envolvidos nesta relação? Por quais motivos ainda é difícil se fazer cumprir a legislação trabalhista em vigor desde 2015?

 

Esses e outros questionamentos, o procurador-chefe do MPT-BA responde neste quarto bloco. “É uma atuação que tomou corpo rapidamente no último biênio no Ministério Público do Trabalho. A gente acha que ainda vai continuar crescendo, porque a partir do momento que se houve a apuração de um e a repercussão na mídia, outras pessoas, outros casos foram aparecendo”. 

 

 

 

Ao se fazer um recorte de perfil dos trabalhadores resgatados e vitimados por essas condições degradantes de trabalho, percebe-se que a maioria são pessoas negras e de baixa renda. 

 

No entanto, Brito ressalta que “a questão racial perpassa por todos os debates no mundo do trabalho, não apenas a questão de trabalho escravo”. 

 

A fala do procurador-chefe endossa uma ação recente do MPT-BA, com o acordo judicial de R$ 20 milhões fechado com o Atakarejo Distribuidor de Alimentos e Bebidas em reparação à morte de Yan Barros e Bruno Barros, de 19 e 29 anos – dois homens negros –, após furto de carne na unidade de Amaralina, em Salvador. O valor será pago ao Fundo de Promoção do Trabalho Decente (Funtrad), do Estado da Bahia, para custear, preferencialmente, iniciativas relacionadas ao combate do racismo estrutural.  

 

 

Neste último bloco, Maurício Brito pontua os principais obstáculos enfrentados pelo Ministério Público do Trabalho diante das novas relações trabalhistas. A pandemia de Covid-19 antecipou e concretizou quadros, a exemplo do teletrabalho e dos aplicativos. Dados divulgados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam que o país1,5 milhão de trabalhadores de aplicativo. “O mundo do trabalho mudou e nós também precisamos mudar. Infelizmente, a mudança da legislação não ocorre tão rápido quanto muda o mundo do trabalho”, diz. 

 

Paralelo a isso, em 2023 a reforma trabalhista completa seis anos e em torno da legislação há um debate para revisão de alguns pontos.

 

 

Aposentadoria foi calculada errada? Saiba como identificar erros do INSS e pedir a revisão
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) costuma cometer erros nos cálculos de aposentadorias e, com isso, diversos trabalhadores podem ter o valor do seu benefício reduzido ou até mesmo negado. Mas quais são os principais erros? Como identificá-los? Como cobrar essa correção?

 

Essas e outras perguntas o advogado Eddie Parish, presidente da Comissão de Direito Previdenciário da seccional baiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA) e sócio do Parish & Zenandro Advogados, escritório especializado em causas contra o INSS, responde em entrevista ao Bahia Notícias. 

 

Neste primeiro bloco, Parish aponta para os erros mais comuns cometidos pelo INSS. Tudo começa pelas informações contidas no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS). O CNIS reúne todos os dados sobre vínculos empregatícios, remunerações e contribuições previdenciárias da vida profissional de qualquer trabalhador. Neste ponto, como destaca o advogado, os erros têm sido provocados, principalmente, pela automatização do sistema previdenciário nacional. 

 

“Existem muitas falhas no CNIS. Por quê? Porque a empresa sonegou, pagou errado ou porque não registrou o trabalhador”, detalha. “E aí o CNIS começa a ter vários buracos. Então, esse documento eletrônico que deveria ter toda a sua vida laboral, ele tem falhas, porque ele é alimentado por um cruzamento de dados”. 

 

Entre esses erros estão a desconsideração de período de trabalho contido na carteira, dos valores corretos dos salários, a não soma dos salários de quem trabalhou em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, e até a não identificação da melhor regra para aposentadoria. 

 

 

 

No segundo bloco, o advogado destaca outro erro comumente cometido pelo INSS: a desconsideração de períodos especiais trabalhados em condições nocivas à saúde. Reconhecer este ponto pode acrescer no tempo de contribuição dos trabalhadores que foram expostos à condições de risco, como produtos químicos. 

 

“É o tempo em que o trabalhador exerce sua função sob condições especiais, ou seja, que estejam expostos a agentes nocivos que agridem a sua saúde”, reforça. 

 

 

Sabendo quais podem ser os erros, no terceiro bloco Eddie Parish orienta como identificar os equívocos no cálculo da aposentadoria, seja trabalhador autônomo ou de carteira assinada. O advogado também aponta para a necessidade de os trabalhadores manterem toda a sua vida profissional documentada e arquivada, seja digital ou fisicamente.

 

 

 

Para finalizar, no quarto e último bloco, o especialista alerta para o prazo de revisão do cálculo e a importância do planejamento previdenciário para quem ainda não se aposentou. 

 

“A gente carece de educação previdenciária. Se você perguntar aos jovens o que é o INSS, como é que faz, acho que a grande maioria nem sabe; sabe que é algo do governo, sabe que paga uma aposentadoria, mas acha que não vai precisar daquilo. Então, é sempre importante a gente estar trazendo as dúvidas ainda que repetidas para que a gente possa de formiguinha em formiguinha ir trazendo a educação previdenciária para todo mundo, para que as pessoas possam entender a importância desse órgão”, pontua.

 

 

Diversificar o judiciário pode impactar nos julgamentos de casos de violência de gênero, aponta diretora da Tamo Juntas
Foto: Gabriel Lopes / Bahia Notícias

De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública no ano passado, 245.713 casos de violência doméstica foram registrados no Brasil. O aumento dos números reforça a necessidade em torno do debate da violência de gênero. E como o poder judiciário tem papel nessa discussão?

 

A advogada e diretora da Tamo Juntas, Letícia Ferreira, conversou com o Bahia Notícias sobre os avanços, obstáculos e desafios no combate à violência doméstica e familiar. A ONG, fundada em Salvador em 2016, atua diretamente na proteção a mulheres vítimas de violência e com ações preventivas, numa perspectiva multidisciplinar. 

 

Sobre o sistema de Justiça, Ferreira comenta a instituição do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, a derrubada da legítima defesa da honra e a urgência de ter um judiciário mais diversificado, com a presença de mais mulheres, pessoas negras e outras representações. Para a advogada, a pluralidade nos membros dos órgãos que compõem a Justiça brasileira também podem refletir nos julgamentos dos casos de violência contra mulher. 

 

Mesmo com a intensificação de campanhas e abordagens sobre o tema, os índices de violência contra a mulher no Brasil apresentaram alta em 2022, como apontou o Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública divulgado em junho deste ano – principalmente os casos de estupro e feminicídio. Nos casos de violência doméstica, foram 245.713 registrados no último ano. Como acredita que o sistema de justiça pode trabalhar em conjunto com as forças de segurança, o executivo e legislativo para reverter este cenário?

 

Eu acho que é importante a gente pensar em estruturas que visem uma rede de atendimento de proteção para além somente da responsabilização criminal. O que nós temos incidido muito é que essa rede de proteção pode evitar feminicídios, pode fazer com que a violência cesse no estágio menos letal do que o que ela tem acontecido. Geralmente a rede de Justiça, a rede de segurança pública criminal vai atuar muito após o crime ocorrer, então a gente já tem um dano que a gente tem que dar suporte a essa vítima e a gente entende também os limites dessa responsabilização criminal, e do quanto isso não é reverberado de fato em uma diminuição dos crimes, das ocorrências de feminicídio. Eu particularmente acredito que além do sistema de Justiça e da segurança pública que agem após o crime, deve haver um reforço e uma prioridade no fortalecimento dessa rede de atenção, dessa rede de proteção que envolve assistência social, políticas de enfrentamento à violência preventivas, educação, mídia e comunicação, envolve também a ação de segurança pública e do Executivo sobre outras incidências que a gente percebe que incidem nesse aumento que é a liberação de armas. Quando a gente tem uma maior flexibilização na questão do porte de armas e na compra de armas, até dos clubes de tiro que estão bastante populares agora no Brasil, a gente está vendo um crescimento [dos casos de violência]. Outra situação que eu acho que a segurança pública e o próprio sistema de Justiça devem incidir mais fortemente é sobre a criação de grupos de ódio, grupos misóginos, esses ‘red pills’, como isso tem fomentado mais violência. Acreditamos que isso também é um ponto de incidência, que a gente possa atuar especialmente na prevenção e de forma integrada, compreendendo que não adianta somente penalizar e criminalizar esse agressor, que isso não tem tido uma função de diminuição dos crimes. Hoje a gente tem a Lei do Feminicídio, a Lei Maria da Penha já há 17 anos consolidada e a gente não consegue ver essa diminuição, e principalmente nos últimos anos tem visto um aumento. 

 

Dentro dessa lógica punitivista, se cobra muito a punição do agressor, mas a gente vê um índice de reincidência muito alto. Como assegurar a redução desses números de reincidência? Como vocês, atuantes nesta área, têm debatido o tema? 

 

Eu acho que a gente tem que trabalhar com ações preventivas, ações educativas, trabalhar numa perspectiva geracional da sociedade. Devemos incluir esse debate em escolas, no trabalho, nos diversos ambientes, e também desmistificar o que é a violência de gênero e a violência contra as mulheres, que ainda está muito centralizada na violência física e na ocorrência entre parceiros, ex-companheiros – que sim, representam hoje a maioria, mas a gente ainda tem muita violência invisibilizada. Muitas formas de violência acontecem e elas estão naturalizadas.

 

Patrimonial, psicológica…

 

É, patrimonial, psicológica. Estão naturalizadas nas relações familiares, nas relações afetivas e acabam não vindo à tona, e acabam só vindo à tona num momento mais gravoso, quando tem um feminicídio, uma tentativa de feminicídio. Então, eu acredito que também é importante que o sistema de Justiça reflita sobre a condução desses processos criminais, de como as vítimas se sentem nesses processos. Porque existe também uma centralidade nessa preocupação muitas vezes de condenação, e uma precarização de outras redes que dão suporte às famílias, à vítima. Tem uma série de consequências sociais da violência de gênero, no mercado de trabalho, que não têm a devida repercussão e que acabam revitimizando mulheres, e que também acabam perpetuando violências, a reincidência. A gente vai falar reincidência no Direito quando já tem uma condenação. Infelizmente, atualmente, a gente tem hoje ainda uma dificuldade da própria condenação porque os inquéritos são muito demorados, quando eles chegam no judiciário para se tornar uma ação penal muitas vezes quando as ações são crimes de ameaça, por exemplo, já estão prescritos e o Estado já não pode mais punir esses agressores. Então, até o próprio sistema de punição é falho pela precarização dessa rede de proteção.

 

Foto: Gabriel Lopes / Bahia Notícias

 

Acha que esse debate passa também por uma revisão do Código Penal? Seria necessário pensar isso ou não?

 

Eu não acredito. Eu tento deslocar o meu debate para outras formas de enfrentamento à violência, acho que no Brasil nós temos vários instrumentos repressivos e que, infelizmente, as reformas do Código Penal caminham sempre para o aumento dessa repressão, dessa função repressiva do Direito e eu não acredito que isso tenha surtido efeito, principalmente nessa seara. Acho que as prisões por descumprimento de medida protetiva são importantes, porque garantem a integridade física e psicológica da mulher, e de fato isso tem conseguido ter o efeito, digamos, mais simbólico da própria medida protetiva, reverbera melhor para que esse agressor cumpra a medida protetiva, sob o risco de ser preso em caso de descumprimento. Mas, eu acredito que o enfrentamento à violência contra a mulher vai passar muito mais por um trabalho em rede, por fortalecimento de serviços de proteção e de apoio, prevenção, educação, informações corretas e de acesso às políticas públicas do que a gente focar somente na função repressiva. E isso, eu acho que é amplo no Brasil. A gente sempre foca na repressão, no aumento de pena. O que a gente tem aí? Um superencarceramento que caminha também ao lado com uma violência que tem também crescido. Eu acredito que essa ineficácia vem justamente por essa centralidade na questão repressiva do direito sem se atentar que, principalmente, situações de violações de direitos humanos devem focar em prevenção, educação, informação, acesso e políticas sociais integradas. Então, que essa mulher possa recorrer ao sistema de Justiça, mas que junto com essa denúncia, essa ocorrência com a medida protetiva, ela também possa ter política pública de acesso a emprego e renda, de moradia e habitação, de acesso à informação. Acho que essas demandas precisam ser compreendidas em conjunto para que consigamos fazer um enfrentamento intersetorial, e em rede. O enfrentamento somente repressivo é falho e ineficaz. 

 

Segundo levantamento feito pelo Elas no Congresso, projeto da revista Az Mina, no Congresso há quase 20 projetos de lei em tramitação que propõem a suspensão do porte, a proibição da aquisição e apreensão de arma de fogo de pessoas com denúncia de violência doméstica ou contra a mulher; e projetos que entendem que a solução para a violência de gênero é armar as mulheres. Acredita que este é um caminho possível ou se trata apenas de mais uma lógica punitivista sem pensar nessa rede de apoio?

 

A lógica de privatização da vingança. Seria assim uma transferência desse poder punitivo até para um poder de vingança privada. Isso é um retrocesso civilizatório, porque quando você tem o Estado para mediar essas relações, que tem o poder repressor para fazer isso e o poder legislativo e a sociedade caminham para armar a população para se defender, nós estamos aí assinando um pacto anticivilizatório praticamente. As armas de fogo representam, isso também algumas pesquisas já trazem, um aumento da violência doméstica, um aumento das ocorrências letais de violência. Então, que nem as vítimas nem os agressores possam ter o acesso flexível a armas, porque o que tem se mostrado é que de fato isso piora as ocorrências letais que são aquelas que não existem mais possibilidade de fazer qualquer enfrentamento. Aí, só nos resta de fato punir os agressores, prender. 

 

Sobre a questão de julgamento, o CNJ já instituiu o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. No entanto, ainda existem relatos de má conduta de magistrados. Teve o caso de Mariana Ferrer e recentemente um juiz foi acusado de constrangimento durante audiência sobre assédio sexual, em Juazeiro do Norte. O que tem mudado na prática com a aplicação deste protocolo, tanto no processo judicial quanto no julgamento?

 

Eu acho que até o fato da gente ter conhecimento dessas situações é um sinal importante de mudança. A sociedade perceber que pode sim questionar a postura do judiciário, que o judiciário deve estar pautado pelo respeito, assim [pela] absoluta dignidade das pessoas que estão ali. A gente tem instrumentos de pressionar o judiciário e esses agentes da Justiça a se comportarem de forma condizente com respeito, integral dignidade das vítimas, que excluam situações vexatórias, constrangedoras. Acho que esse protocolo é um instrumento de algo que tem sido denunciado e que tem sido muito abafado. Porque a gente tem no sistema judicial, um sistema muito corporativo e que é muito difícil que você consiga fazer mudanças estruturais, um poder ainda majoritariamente masculino, branco, com pessoas com privilégios de classe, então você tem esses valores reverberados no sistema de Justiça porque são essas pessoas que tão ali conduzindo audiências, fazendo sentenças. Também acho que esse protocolo é uma mudança importante e ele é fruto dessas denúncias. Como o próprio CNJ que já é um órgão que foi um avanço no poder judiciário, porque ele proporciona que o poder judiciário tenha algum tipo de controle, que ele não só se autorregule, mas que também tenha uma regulação externa que é tão importante e necessária porque implica diretamente na vida das pessoas. Então o protocolo de gênero é um avanço, mas a gente ainda tem o desafio que ele seja cumprido integralmente. Acho que atualmente teve um avanço muito importante na defesa de direitos das mulheres que foi a proibição da tese de legítima defesa da honra. 

 

Esse é um outro ponto que eu ia entrar, a tese de legítima defesa da honra derrubada pelo STF no início do mês de agosto.

 

Isso assim, é um avanço histórico, importantíssimo, sabendo quantos feminicídios já saíram impunes historicamente no Brasil, quantos assassinatos de mulheres, quantas mulheres foram assassinadas e os seus algozes não tiveram qualquer resposta criminal com base na legítima defesa da honra. Como se a honra desse agressor fosse mais importante do que o valor da vida. Isso foi sendo combatido, denunciado já desde a década de 60, de 70 pelo movimento de mulheres e finalmente agora a gente tem uma previsão definitiva do STF quanto à legítima defesa da honra. Isso para nós é uma vitória.

 

Foto: Gabriel Lopes / Bahia Notícias

 

É um impacto bem grande… 

 

É um impacto muito grande, principalmente, no tribunal do júri onde são julgados os crimes contra a vida. Os feminicídios mais assassinatos de mulheres são julgados nessa via do Tribunal do Júri e ainda, infelizmente, a tese de legítima defesa da honra era muitas vezes aventada como uma autorização para que homens matassem mulheres em nome da sua própria honra. Isso era uma objetificação de mulheres, um desprezo pela vida das mulheres e que estava ali em muitos julgamentos sob o argumento da defesa plena. Então, a gente começa a ter uma baliza, uma régua melhor que vai considerar mulheres como sujeitos de direito, porque a gente tem esse processo político no sistema de Justiça que é que o sistema compreenda e atue na defesa de mulheres como sujeitos de direitos em iguais condições aos homens, e que essas desigualdades possam ser suplantadas. Mas para isso a gente precisa de ações, precisa do protocolo de gênero, proibir a legítima defesa da honra, precisa que os crimes de violência de gênero tenham prioridade de julgamento, de tramitação e que principalmente essas mulheres não sejam revitimizadas no sistema de Justiça porque isso afasta muitas mulheres. Quando uma mulher vê na televisão a Mariana Ferrer, aquela audiência, quantas vezes ela vai pensar antes de denunciar a violência sexual que ela sofre? É muito importante que a gente garanta um sistema de Justiça, um sistema de segurança pública, de proteção a mulheres que não revitimize e que considere que elas são sujeitos de direitos e iguais, em condições equânimes e que possam assim ter seus direitos protegidos e garantidos. Porque ainda é uma batalha, não está não colocada, não está posto.

 

Você chegou a pontuar o perfil das vítimas. A maioria delas é de mulheres negras, de baixa renda e pouca escolaridade. Do outro lado, no sistema judiciário temos a predominância entre juízes, defensores públicos, promotores, procuradores, desembargadores de homens, brancos e até com uma linha mais conservadora. Acredita que isto impacta no acolhimento das vítimas e, consequentemente, no julgamento dos casos de violência de gênero, doméstica e feminicídios?

 

Certamente. Eu acho que isso tem um impacto sim, ainda que a gente tenha o valor da imparcialidade para o judiciário, nós percebemos o quanto é difícil o enfrentamento diário nos processos, nas audiências. Aí a gente vai ver historicamente mesmo, institucionalmente, somente em 2022 a gente consegue instituir um protocolo de gênero, somente em 2023 a gente derruba uma tese de legítima defesa da honra que já foi legitimada por muitos juízes e pelo sistema judiciário ao longo do tempo. Então a gente tem um enfrentamento, inclusive uma luta recente do movimento de mulheres, do movimento de mulheres negras e do movimento negro, é que tenha uma mulher negra no STF e que elas possam também estar em diversos espaços e instâncias de poder do sistema de Justiça. A gente percebe que quanto maior a hierarquia do sistema de Justiça, quanto maior o posto hierárquico mais branco, mais rico, mais masculino se torna o sistema de Justiça. A gente tem já muitas mulheres, acho que até a maioria como advogadas, por exemplo, nas categorias de juízas de primeiro grau, já temos uma inserção, mas a gente percebe que quando o posto sobe você vai tendo uma menor representação até que ela se torna muito mínima. Isso sem dúvida impacta, impacta principalmente nessas ações que têm repercussão institucional, então num protocolo de gênero, numa derrubada de tese da legítima defesa da honra, quando a gente leva, por exemplo, a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos para o STF. Quem está lá decidindo por nós? Quem é que pode falar sobre tantas mulheres que são vítimas? Que morrem em razão de abortos legais e inseguros no Brasil e não tem garantido isso? Muitas vezes não tem garantido nem o direito ao aborto legal, que é um direito também das mulheres garantido desde 1940. É um debate que muitas vezes essas pessoas que dependem do sistema público não vão conseguir travar, porque não têm condição de travar – seja pela proteção da sua vida, seja pela garantia de um direito que está estabelecido. Então, quando a gente começa a ter mais mulheres, mais negros e negras, mais pessoas que têm pertencimento da classe popular e conseguem entrar na hierarquia do judiciário, eu acho que maiores são as possibilidades da gente pluralizar, diversificar e trazer mais elementos para ações institucionais do sistema de Justiça. A gente não pode focar em decisões pontuais, mas numa mudança estrutural mesmo desse sistema que historicamente tem servido não para garantir direitos de forma equânime, mas tem servido para garantir e manter privilégios, e manter uma impunidade e ser insatisfatório na proteção e garantias de direitos humanos. É isso que a gente tem debatido, o sistema de Justiça precisa ser mais eficaz na proteção e garantia dos direitos humanos, não pode se ausentar, essa é a sua grande missão. A gente vai ver um sistema que super encarcera a população jovem negra periférica e ao mesmo tempo não tem impunes situações flagrantes de violação de direitos. Eu acredito que quanto mais a gente pluralizar, diversificar e trazer representatividade nesse judiciário mais possibilidade a gente tem de mudar esse quadro no Brasil.

 

A gente pontuou muitos problemas, mas é possível ter um raio-X positivo desde a sanção da Lei Maria da Penha, que se tornou uma grande referência, em 2006?

 

Acho que a gente tem sempre muitos problemas a apontar, mas é sempre bom apontar coisas positivas. A Lei Maria da Penha tem 17 anos, é um marco político, medidas protetivas têm sido concedidas, a gente tem avanços nesse sentido de poderem ser concedidas em prazo menor, no relato da mulher e da manifestação do temor pela vida delas já serem suficiente para conceder a medida protetiva, da desnecessidade atual de ter uma ocorrência policial pra ter uma medida protetiva, na implantação de centros de referência, de delegacias especializadas. As delegacias são desde a década de 80, mas a gente atualmente teve uma legislação que traz a obrigatoriedade dessas delegacias funcionarem 24 horas – uma luta para efetivar –, mas é um instrumento que a gente tem para cobrar isso. Então tem avanços sim no enfrentamento violência doméstica e familiar, se a gente pensar que antes da Lei Maria da Penha, muitas dessas agressões iam parar no Juizado e as sentenças eram cesta básica. E a Lei Maria da Penha veio para proibir, veio pra proibir que um agressor pague cesta básica como pena. A importância que esse tema tem tomado, os instrumentos que a gente tem avançado, ainda temos muito a avançar, principalmente nesse campo da prevenção, da educação, do enfrentamento nesse campo integrado, de diversas políticas públicas integradas e atuando nesse sentido, não só a segurança pública e o sistema de justiça criminal, mas uma integração que a Lei Maria da Penha propõe. Então, isso já é um avanço muito importante. Mesmo que os números agora tragam uma realidade preocupante que é do aumento, principalmente após pandemia, eu acho que isso também é contextual, é conjuntural do que a gente teve na pandemia, um desmonte dos serviços públicos. A gente teve um desmonte grave, uma redução imensa no orçamento desse serviço, da manutenção desse serviço e sem orçamento público que priorize o enfrentamento à violência doméstica. Nós não temos ações. Porque a sociedade civil se mobiliza, se organiza, a Tamo Juntas é um reflexo, é uma organização que faz isso, faz controle social, incidência, acolhe também mulheres, mas nós não somos o Estado. É o poder público que precisa providenciar centros de referência, assistência multidisciplinar a mulheres, abrigamentos especializados, que seja também núcleos reflexivos para agressores se for esse caso, enfim várias medidas, ações educativas, medidas que precisam ser priorizadas pelo orçamento público. Nós temos política pública, avanço e por que os números não avançam? Porque a gente teve uma queda de investimento nessas áreas muito grave, e esses serviços com a queda de orçamento, de investimento vão fechando, precarizando. A psicóloga tem uma lista de espera, porque só tem uma psicóloga, só tem uma Deam para atender vários municípios, a polícia não consegue ter uma estrutura para absorver as denúncias. A gente tem na Bahia 17 delegacias especializadas e temos 417 municípios. Temos três abrigos para mulheres em situação de violência, e 417 municípios. Temos pouquíssimas várias especializadas de violência doméstica. Então, essa falta de investimento reverbera nesses números. 

 

E para encerrar, no sentido de uma orientação mesmo, gostaria que dissesse porquê é importante essas mulheres buscarem os órgãos de justiça e como tem sido o tralho da Tamo Juntas nesses sete anos de atuação.

 

Nossas ações sempre estão aliadas em eixos da educação popular em direitos humanos, de dialogar com essas mulheres, de fazer rodas de conversas, materiais informativos, parcerias, justamente para não naturalizar as violências, despertar a identificação da violência. A gente sabe que identificar precocemente a violência é definitivo para evitar mortes. Nós queremos ter essa ação preventiva, oferecer o acolhimento sem essa perspectiva da revitimização, observando que é importante ter um acolhimento que seja empático, que seja na nossa perspectiva também feminista, acreditando que a violência nunca é culpa da mulher, nunca é responsabilidade da mulher. Desmistificando esse lugar, porque essa mulher precisa de proteção e apoio, e não de julgamento, não de sofrimento. A gente tem atuado nessa perspectiva de prestar assessoria individualizada para mulheres em situação de violência e vulnerabilidade social, mas também de fazer um projeto de diálogo, de conversa, de acolhimento, multidisciplinar, nossa organização é multidisciplinar. A gente entende também que a atuação no sistema de Justiça é muito limitada, de que a gente precisa ter um suporte sócio jurídico, psicossocial pra essa mulher, fazer com que essa mulher acesse políticas públicas e atravessar com ela um pouco essa trajetória que é de superar a violência.

“Um dos maiores gargalos é a quantidade de membros”, aponta novo presidente da Ampeb sobre atuação do MP
Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

Presidente eleito e empossado da Associação do Ministério Público do Estado da Bahia (Ampeb), para o biênio 2023-2025, o promotor Marcelo Miranda mira na interiorização das ações e defesa dos direitos dos aposentados como suas principais bandeiras de gestão.  A Ampeb atualmente possui, segundo Miranda, cerca de 730 associados, sendo 540 membros da ativa mais aposentados e pensionistas. 

 

“Nesses dois anos, que nós estamos iniciando, vou dar uma ênfase muito grande aos colegas que estão no interior para que eles também se sintam amparados e da mesma forma os colegas aposentados”, pontua em entrevista ao Bahia Notícias.

 

Sobre o trabalho “na ponta”, dos procuradores e promotores, Marcelo Miranda afirma que um dos maiores “gargalos” é a quantidade de membros do Ministério Público. “Nós temos mais de 200 promotorias vagas”, sinaliza.

 

Marcelo Miranda ocupava o cargo de vice-presidente da instituição no último biênio e nesta entrevista também opina sobre a realização de concurso público, relacionamento com a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e a instituição do juiz das garantias, ainda em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). 

 

O senhor compunha a última gestão, enquanto vice-presidente. O que, dessa vivência, pretende aplicar agora? E problemas, também, que não foram resolvidos que deseja solucionar?

 

A última gestão fez um trabalho muito bom no quis diz respeito à reestruturação da Ampeb, profissionalização, trabalho interno de organização, inclusive com a contratação de empresas de consultoria, de orientação realmente, de fazer com que a Ampeb se torne mais profissional. Então, a atual gestão vai dar continuidade, vai implementar todas as sugestões que foram colhidas através dessa empresa. Nós vamos profissionalizar a atuação. Isso implicará necessariamente numa melhor prestação de serviço aos nossos associados. Então, a gente vai poder otimizar os nossos esforços para poder justamente trazermos um serviço de maior qualidade. 

 

Profissionalização em sentido?

 

Por exemplo, aos associados, nós temos lá pessoal de odontologia e de fisioterapia. Na hora de você fazer o agendamento, isso aí, nós temos um público enorme da capital do interior, era feito de uma forma mais amadora. Nós vamos agora colocar sistemas que vão fazer de uma forma mais rápida, mais segura e fazendo inclusive, por exemplo, a estimativa de tempo que o profissional gasta com cada serviço que é agendado para que a gente possa utilizar o espaço com o maior número possível de associados sendo atendidos. Através da consultoria a gente conseguiu identificar que havia sim possibilidade de otimizar esse serviço, é um dos exemplos. Outra situação também no que diz respeito a parte financeira, de entender e programar os recursos que nós temos para utilizar com os nossos associados. A gente sempre fez isso de uma forma muito amadora, digamos assim, porque na verdade somos promotores de justiça que estão à frente de uma gestão e o conhecimento disso realmente não é nosso domínio. Agora que nós estamos com o resultado disso, vamos implementar. É praticamente uma continuidade de uma gestão onde vai haver melhorias como esta, por exemplo. 

 

Em relação às condições de trabalho, enquanto presidente da Ampeb, como avalia esse cenário hoje na Bahia, principalmente no que diz respeito à valorização dos promotores e procuradores de justiça? Quais seriam os principais gargalos para atuação? 

 

Nós temos uma preocupação muito grande com essa situação, inclusive quando tomei posse foi um dos pontos que eu fiz questão de abordar, porque temos diversos problemas no que diz respeito ao promotor e ao procurador de justiça que estão na ponta, que são aqueles que no exercício das funções, os que aparecem para a sociedade. Então, veja você, um dos maiores gargalos que nós temos hoje é a quantidade de membros. Nós temos mais de 200 promotorias vagas. Então, assim, quem está fazendo esse serviço? Você às vezes é de uma comunidade ‘xis’, que está lá no interior e não tem um promotor titular na cidade, mas tem um serviço do Ministério Público que é feito lá. É feito por quem? Por um colega que está lotado em outro [município]. Então, você vê uma sobrecarga de trabalho de alguém, colegas que não conseguem tirar férias, que estão de plantão nos finais de semana, dobrando e muitos acabam adoecendo. Esse é um trabalho que a Ampeb vai fazer com um pouco mais de atenção, para que, ao lado da Procuradoria Geral, a gente consiga levar membros para estes locais que estão desabrigados, digamos assim, e vamos também lutar por melhorias do serviço desse pessoal, seja através de equipamentos…Hoje a gente teve realmente uma revolução na área de informática, tem possibilidade de um promotor não estar na cidade, mas estar atendendo normalmente dentro da cidade, de forma remota, atendendo advogados, a própria comunidade, participando de audiências, despachando sem precisar estar ali. E a gente precisa buscar de forma criativa como suprir esse gargalo que é um dos principais ao meu modo de ver. 

 

Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

 

E esse preenchimento de vagas, a realização de concurso público, já existe essa conversa com o governo estadual?

 

Existe sim. É sempre uma demanda recorrente dos colegas e da própria associação para que haja concursos públicos para preenchimento dessas vagas. O que acontece é que você esbarra sempre em uma limitação orçamentária. Daí é uma negociação com o legislativo, com o poder executivo para que a gente consiga realmente preencher o Ministério Público com as vagas que existem, que consiga prestar um serviço de melhor qualidade. O Ministério Público sempre buscou prestar um serviço de excelência para a sociedade e encontra esse gargalo muitas vezes não compreendido. Por que o Ministério Público não atuou aqui ou ali? Porque não tem, muitas vezes, o membro naquele local. A gente pode melhorar? Pode. De que forma? Nesse sentido sempre, preenchendo esses locais. 

 

O senhor tem esse número de quantos promotores tem hoje? Qual seria esse número ideal? 

 

O número ideal vai além. Hoje em atividade não tem um número preciso, sempre está oscilando, então em torno, digamos, de 500 e tantos da ativa, com 200 vagas, vai a 700. Teria 700 e poucos da ativa, isso, para dizer assim, para gente trabalhar de uma forma normal, dentro da normalidade. Mas, óbvio, que se for o ideal teria que ter um pouco mais. Por exemplo, organizações criminosas, quando se trata de segurança pública na Bahia, hoje tem uma questão de organização criminosa, nós temos dois promotores trabalhando em Salvador e região metropolitana inteira cuidando disso, ou seja, é uma demanda enorme, sobrecarrega esses profissionais. Para estar ali preenchido com dois já está numa situação de normalidade, mas é o ideal? Não, a gente teria que ter mais membros. A gente tem que usar de criatividade, porque sabemos que o orçamento não comportaria ir para o número ideal, mas tem que usar de criatividade para que possa trabalhar de uma forma que produza um serviço de qualidade. 

 

Agora falando sobre um julgamento que está no STF, a questão do juiz das garantias. Qual a opinião do senhor nesse sentido e de que forma acredita que a aprovação ou não pode impactar na atuação do Ministério Público? 

 

Na verdade, assim, há uma dificuldade de ordem prática na aprovação disso. É o ideal? É. Para que a pessoa leiga entenda, o juiz que está na produção da prova, em resumo seria assim, ele não pode participar da decisão da ação que vai tramitar para que ele não esteja de alguma forma contaminado com aquela ideia das provas que foram produzidas antes de uma ação tramitada. Hoje você vai no interior, tem vários lugares que não têm um juiz titular sequer para decidir as duas situações. Como não tem promotor para as duas situações. Então, trabalha com juízes substitutos, promotores substitutos. Pense que agora começar a ter que precisar de dois substitutos inevitavelmente, um para atuar de um jeito, outro do outro. Só que na teoria é muito bonito, na prática nós vamos enfrentar uma dificuldade enorme, talvez processos mais lentos por ausência de profissional para despachar. Essa é uma realidade que nós estamos observando que possivelmente acontecerá. 

 

Mas diretamente na atuação do Ministério Público, acha que pode interferir de que modo?

 

O Ministério Público demanda muito do judiciário. Então assim, vamos sofrer tanto como o resto da comunidade, porque vamos fazer os requerimentos e ter que aguardar o momento de termos aquilo que nós precisamos. Exemplo: o Ministério Público vai fazer uma operação e precisa de mandados de busca e apreensão na mão, precisa que o juiz autorize. Cada vez mais o judiciário restringe a possibilidade exatamente de um flagrante. Encontrar alguém com quilos e mais quilos de droga, e você vê os tribunais superiores anulando, praticamente exige um mandado de busca e apreensão. Você requer e quem vai despachar? “Ah, o juiz que julga não é o juiz que despacha, se ele despachar a ação fica parada esperando outro”. Ou seja, isso vai impactar inevitavelmente no Ministério Público. Quando se fala em meio ambiente, meio ambiente exige muitas medidas também judiciais, da mesma forma a produção de prova. 

 

O Ministério Público atua bastante nessa área criminal, mas nas outras questões ligadas aos direitos humanos, como é que o senhor tem avaliado essa atuação? 

 

A atuação do Ministério Público na área de direitos humanos tem sido bem expressiva, inclusive com as próprias associações. Veja que o Estatuto da Vítima, por exemplo, que se discute muito, teve uma participação muito grande do Ministério Público recentemente. Temos criados dentro do próprio Ministério Público centros de apoio que cuidam de direitos humanos, aí cuida de situações envolvendo a mulher, grupo LGBTQIA+, idosos, crianças, situações de vulneráveis de um modo geral, tecnicamente falando. Eles são todos abarcados. O Ministério Público vai muito além da parte criminal. A parte criminal, digamos assim, é a mais expressiva, é a mais antiga atribuição, mas quando você abre a Constituição o leque de possibilidade de atuação no Ministério Público é muito grande. Eu, quando passei no concurso e sentei numa mesa com os colegas, amigos próximos, todo mundo parabenizou, mas, pronto, o que um promotor faz mesmo? A maior dificuldade é dizer o que faz um promotor de justiça, porque você pensa em um problema tem que ter um promotor de justiça ali por força da Constituição. Se envolve improbidade, meio ambiente, criança, idoso, pessoa com deficiência, área de família, criminal, tudo tem atuação do Ministério Público. Então, assim, a atribuição é vasta, é grande. 

 

Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

 

A Ampeb é filiada à Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, a Conamp. Como tem sido esse diálogo, relação? O que vocês têm proposto para a melhoria das condições de trabalho, da atuação do MP-BA? 

 

A Associação Nacional é formada por todos os membros que compõem as diversas associações do Ministério Público. A Ampeb, por exemplo, tem assento no conselho deliberativo da Conamp. Através de sua presidência ali representando os interesses dos associados na Bahia e está lá deliberando como todos os outros. Então assim, sempre nós vamos ter voz, ter poder de orientação e decisão. A gente contribui com todas as discussões que estão tramitando em Brasília, seja no poder judiciário nas altas instâncias, seja no Congresso Nacional, o Ministério Público, através de suas associações, também está lá acompanhando toda essa legislação que pertence ao dia a dia do promotor para que não haja retrocessos, para que não impliquem no serviço de pior qualidade. A gente busca sempre que a legislação, quando seja alterada, garanta os direitos que já vinham sendo preservados. 

 

Mas na prática como é que está o diálogo hoje, quais os principais temas têm sido debatidos entre Ampeb e Conamp? 

 

Temos temas de diversas ordens, um, por exemplo, de implicação direta na Bahia. Na Bahia, por conta daquela escassez, que eu lhe falei, de promotores, qual foi a solução doméstica que se resolveu? Foi a criação de cargos de assessores, assessores de promotoria. Então, o que acontece? A criação dessa lei é objeto de uma Adin [ação direta de inconstitucionalidade] no Supremo. Então, o que acontece é um diálogo que nós temos com a Conamp, com o Supremo Tribunal Federal para buscar a melhor modulação para que possam ser corrigidas as eventuais falhas. O diálogo é muito profícuo, nós temos um trato excelente com a Conamp. A Conamp tem uma deferência muito grande com a Bahia e a Bahia tem sido bem respeitada, seja no âmbito da Conamp, do Conselho Nacional do Ministério Público, dentro do próprio Conselho Nacional de Justiça, onde um dos membros daqui da Bahia é conselheiro do CNJ. Então, assim, temos um trânsito e um diálogo profícuo com todas as entidades que estão em Brasília.

 

Nesse momento de formação de listas para composição de vários órgãos do judiciário, vacância de cadeiras, muito se fala na questão da diversidade, de ter pessoas negras, indígenas, mulheres nestes espaços. Como enxerga essa possibilidade? Qual seria o primeiro passo para essa mudança? 

 

A Ampeb, sempre que esses temas são chamados, está ao lado desse tipo de discussão. É óbvio que nós defendemos. Somos uma entidade que defende os espaços democráticos. Eu acho que enquanto as mulheres não ocuparem o espaço devido delas, não serão ouvidas como deveriam. Elas estarão chamando e o processo vai de uma forma bem lenta, mas quando você ocupa espaço de poder e está lá falando dos seus direitos, é óbvio que vai ter muito mais avanços. E ao lado disso, tem que garantir também no judiciário isso, porque o judiciário em última instância é o que vai dizer se aquela lei vale ou não, se ela afronta ou não a Constituição. É sempre importante ter representações no judiciário dentro do próprio Ministério. No Ministério Público, por exemplo, a procuradora-geral de Justiça é uma mulher, a corregedora-geral é uma mulher.Os órgãos superiores do Ministério Público na Bahia são chefiados por mulheres. Aqui na Bahia tem mais mulheres em cargos de membros, de promotores, do que homens. Então veja, as mulheres já no Ministério Público ocupam um espaço de destaque e não por outra razão nós sempre defendemos isso. LGBTQIA+, também temos um espaço muito grande dentro do Ministério Público, nós temos colegas que são  LGBTQIA+ e estão ali defendendo, temos um centro de apoio, núcleos que defendem esse direito de forma bem contundente e atuante. 

 

E qual vai ser a sua principal bandeira, como pode definir como será o seu biênio, a sua gestão? 

 

No que diz respeito a várias ações que já vêm sendo feitas, foram reconhecidas pela classe, não à toa tive uma votação expressiva e não houve sequer quem resolvesse, digamos assim, abrir uma concorrência. Porque, o que foi feito: foi montada uma chapa de pessoas realmente sem vinculação política. Nesse sentido, eu penso em fazer um pouco diferente do que já vinha sendo feito para dar uma tônica: irmos ao interior. Porque a Ampeb fica muito concentrada, porque há muito mais promotores e procuradores aqui na capital, e no interior a gente faz um esforço que é muito difícil de alcançar, porque nós temos um estado gigantesco. Então, nesses dois anos que nós estamos iniciando vou dar uma ênfase muito grande aos colegas que estão no interior, para que eles também se sintam amparados e da mesma forma os colegas aposentados. Quando o colega se aposenta, perde diversas garantias que um membro da ativa possui, especialmente, no que diz respeito ao âmbito financeiro. Nós vamos cuidar para que as paridades sejam mantidas e o colega não fique muitas vezes na ativa por mais tempo do que precisaria, somente para manter algumas garantias que dele são subtraídas. 

“É sobre o presidente quebrar esse padrão de branquitude  e masculinidade”, crava promotora sobre diversidade no judiciário
Foto: Stella Ribeiro

Citada na pela Educafro entre 10 juristas negros para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) e nomeada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na edição Lei & Justiça, a promotora do Ministério Público da Bahia (MP-BA), Lívia Vaz, aponta a necessidade de uma composição diversificada no sistema judiciário. Essa diversidade, conforme a jurista, engloba gênero, raça e regionalidade. 

 

Para Vaz, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem a oportunidade de em seu terceiro mandato “quebrar” o “padrão de branquitude e masculinidade” com as indicações para os tribunais superiores. Com a indicação do advogado Cristiano Zanin para o lugar de Ricardo Lewandowski no STF, a expectativa é que Lula indique uma mulher negra para a cadeira da presidente Rosa Weber, que ficará vaga em outubro. 

 

Lívia Vaz é coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (GEDHDIS) do MP-BA, doutora em Ciências Jurídico- Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e autora dos livros "A Justiça é uma mulher negra" (Coleção Juristas Negras) e "Cotas Raciais" (Coleção Feminismos Plurais).

 

A senhora foi citada pelo Educafro como sugestão para ocupar uma vaga no STF. Pretende mesmo pleitear essa cadeira? 

Não é um espaço que se pleiteie, que alguém se coloque como candidato ou candidata. É uma escolha exclusiva do presidente da República, segundo a própria Constituição Federal de 1988. Entende? Então, não é um fato que alguém deva pleitear. Agora, por óbvio, que é algo que eu venho defendendo há muito tempo, que é a diversidade no sistema de Justiça. Nós temos um sistema de Justiça no Brasil ainda majoritariamente branco e masculino, e isso traz impactos diretos na forma como nós construímos justiça, na própria forma como as pessoas acessam a Justiça. Você coloca uma coisa toda feita na justiça também. Então é muito importante que nós tenhamos diversidade não apenas na nossa sociedade, nossa sociedade é muito diversa e não está espelhada nos poderes públicos. Então, em um estado democrático de direito é preciso que essa diversidade seja espalhada em prol dos homens, não apenas no governo, no Poder Executivo, mas também no Legislativo - é outras dificuldade que a gente tem, são poucas pessoas negras no Congresso Nacional, nas Casas Legislativas de um modo geral no Brasil, e no sistema de justiça me parece o pior desses espaços em termos de diversidade.

 

Mas para ser indicada à vaga é preciso demonstrar certo interesse em ocupá-la. A senhora tem interesse em ocupar essa cadeira?

O cargo no STF é um grande desafio e eu entendo como uma missão. Por óbvio que se houver…eu entendo até com uma uma escolha dessa perspectiva como uma convocação. Uma convocação a debatermos um novo sistema de Justiça, a construirmos um novo sistema de Justiça que reflita, minimamente, a diversidade da população brasileira. Então, nós precisamos de diversidade em todos os poderes: Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. No Judiciário, mais necessário diante das adversidades que nós temos hoje mesmo em Salvador, mesmo na Bahia. E a gente precisa que esses dados sejam apurados. A gente tem pesquisa do CNJ, Conselho Nacional de Justiça, que vai dar conta de que pessoas negras na magistratura brasileira, no Poder Judiciário, são apenas 12,8% no Brasil. Quando a população negra representa 56% da população brasileira. Quando falamos em mulheres negras, o resultado é pior ainda porque mulheres negras não chegam a 6% da magistratura no Brasil. Então, é fundamental nessa interseccionalidade. Precisamos de diversidade de raça, de gênero, Precisamos de diversidade também de regional. O STF é um espaço que se concentra no sul e sudeste do país. Então, nós tivemos até o momento três mulheres, as três brancas, do eixo sul-sudeste compondo aquela Corte, que é a mais alta Corte de Justiça do Brasil. Tivemos três homens negros e os três de Minas Gerais. Nunca tivemos pessoas negras do Nordeste ou mulheres do Nordeste. Então essas essas interseções são importantes. 

 

Já que estamos falando dessa diversidade, mesmo tendo esse apelo social pela indicação de uma mulher negra e até o apoio de alguns ministros do governo, a cadeira de Ricardo Lewandowski ficou com Cristiano Zanin. Como a senhora avalia essa indicação? Acredita que de fato o presidente Lula pode indicar uma mulher negra para o cargo com a aposentadoria de Rosa Weber?

Eu penso o seguinte, não é sobre apenas termos uma mulher negra hoje, Lívia Santana Vaz ou qualquer outra jurista, temos muitas juristas negras competentíssimas que atendem requisitos constitucionais, isso é importante falar. Mas não é só sobre isso, é sobre o presidente da República ser também, historicamente, o primeiro presidente da República a quebrar com esse padrão de branquitude e de masculinidade no sistema de Justiça. Então, não é só sobre as pessoas que vão ingressar no sistema de Justiça, mas é sobre toda a simbologia de abertura de caminhos que se dá a partir disso. Então quais são os requisitos constitucionais? Importante dizer isso, é uma escolha do presidente da República, está dito na Constituição, a pessoa a ser nomeada deve ter entre 35 e 65 anos de idade, ter reputação ilibada e notório saber jurídico. Então, a escolha que o presidente venha a tomar tem que respeitar essas preposições e depois tem a sabatina no Senado Federal. Esse é o caminho percorrido. Os outros tribunais têm uma forma diferente de escolha dos seus membros. Existem sim candidaturas. A pessoa se candidata, forma-se uma lista sêxtupla, depois uma lista tríplice e dentro da lista tríplice o chefe do executivo escolhe, entre as três pessoas, quem vai realmente para a Corte. No STF é diferente. A Suprema Corte é diferente. Mas sim, o presidente tem essa oportunidade de demonstrar de fato que o governo pretende expandir a diversidade para toda a composição dos poderes públicos, mas também para as suas práticas institucionais, para suas políticas públicas. A gente tem essas duas vagas esse ano, mas até o final do governo Lula é bem possível, bem plausível que haja outras vagas também para o Supremo Tribunal Federal. Então o que o movimento de juristas negras inclusive tem pleiteado não é uma jurista negra, não é a próxima vaga para uma jurista negra, é juristas negras no STF e nos tribunais superiores porque tem instâncias em que mulheres negras não estão representadas. 

 

É que paralelo ao STF tem as vagas do STJ…

STJ, o TSE agora que nomeou novos membros. Os tribunais federais também, regionais federais estão com vagas aí sendo abertas ao longo do ano e ao longo do próprio mandato do presidente Lula também terão novas vagas. Então é sobre isso, não é só sobre o STF. Mas toda a composição do sistema de Justiça, que não tem diversidade. 

 

A senhora já citou a questão das mulheres, que atualmente temos duas mulheres brancas no STF. Para senhora qual seria o impacto direto no funcionamento do sistema de Justiça, até na relação com a sociedade, de ter essa diversidade representada nos atores que fazem parte desses órgãos? 

Primeiro, as pessoas precisam se enxergar. O Estado não é um em si mesmo, o direito não é um em si mesmo. A Justiça, o sistema de justiça também não é um em si mesmo. Ele precisa refletir não só a diversidade em termos de aparência das pessoas, não é só sobre isso, mas das vivências das pessoas. As pessoas levam para o seu cotidiano, para a sua atuação funcional, para a construção do sistema de Justiça as suas vivências na condição de mulheres, na condição de mulheres negras, na condição de mulheres negra nordestinas e essas vivências são importantes. Até eu costumo dizer que nós temos hoje um sistema de Justiça, que ainda produz visões unilaterais do que seja justiça, do que seja igualdade, do que seja liberdade. Porque são majoritariamente, hegemonicamente, homens brancos decidindo sobre os destinos de pessoas negras que não acessam direitos fundamentais com igualdade de oportunidade. E são pessoas que estão julgadas, que muitas vezes não têm oportunidade de acessar os seus direitos por outras pessoas que por estarem nesse lugar de privilégio, que é o lugar do privilégio da branquitude, sequer conhece a realidade das pessoas que estão sendo julgadas. Então, eu costumo dizer que as pessoas que compõem o sistema de Justiça, seja na Defensoria Pública, no Ministério Público, no poder judiciário são servidores públicos, são servidoras públicas. Como é que você serve a um público, como é que garante direitos a um público que você não conhece? Você desconhece completamente a realidade daquelas pessoas, as dificuldades, as demandas, os obstáculos para acessar direitos. Então, é preciso que minimamente enquanto essas pessoas não conseguem estar conosco compondo esses temas, que isso é importante, a presença é importante, e não apenas de uma ou duas, mas a presença realmente é tendente a uma proporcionalidade é importante, mas enquanto isso não acontece é fundamental que sistema de Justiça possa escutar as pessoas, possa escutar os movimentos sociais, possa compreender essas demanda para que esse julgamento não seja um julgamento alheio à realidade da população brasileira.

 

E quais mecanismos a senhora acredita que é possível para que se escute? Como é possível o sistema judiciário refletir a sociedade e essa maioria populacional? Qual é o primeiro passo para isso? 

São vários passos. Nós temos a composição, como eu estou dizendo, é fundamental para que essas experiências e vivências estejam também por dentro fazendo a diferença. É importante que os movimentos sociais sejam escutados. Alguns órgãos do sistema judiciário têm feito isso já, o CNJ, o CNMP por vezes fazem reuniões, encontros envolvendo os movimentos sociais para ouvir essas demandas que vêm dos movimentos sociais, ouvir suas realidades, para que isso impacte na política institucional também. Então, essa escuta é importante também. E a concretização dos instrumentos internacionais que o Brasil se compromete a cumprir, mas que muitas vezes não são de fato concretizados em nosso país. A gente precisa de um estado brasileiro, precisa que as políticas públicas de igualdade racial sejam políticas de Estado e essas políticas de que o Estado não são aplicadas aleatoriamente, elas são aplicadas e concretizadas com base na Constituição Federal, nos compromissos internacionais no Brasil inseridos nessa Constituição. Então, essa constituição faz uma base democrática, não há como a gente pensar numa democracia efetiva sem concretizar a igualdade.

 

Nesse campo, recentemente o CNJ tem feito algumas ações. Aprovou a resolução de adotar perspectiva de gênero nos julgamentos, criou uma comissão para equidade de gênero e também está em andamento um censo para traçar o perfil das pessoas que atuam na Justiça brasileira. Aliada a essa necessidade de representatividade dos membros que compõe o poder judiciário, como é que a senhora avalia a atuação da Justiça nessa temática racial e de gênero? Quais perspectivas pode fazer, se é que é possível fazer, para o futuro? 

É, era até algo que eu ia dizer sobre como trazer a perspectiva da diversidade para dentro do sistema de Justiça. Esses órgãos têm se ocupado de trabalhar, refletir, construir uma perspectiva, julgamento com perspectiva de gênero. Eu penso que um julgamento com perspectiva de raça, não só o julgamento, mas também a atuação ministerial, a atuação da Defensoria Pública extrajudicial com perspectiva de raça e gênero e classe, na verdade a gente tem que buscar um olhar, uma perspectiva interseccional para essas construções, é fundamental. Então, um elemento que nós temos que trabalhar é o letramento racial e antirracista do sistema de Justiça. Não adianta nós termos julgamento com perspectivas de gênero e raça, por meio de resoluções, se na prática, na ponta o sistema de Justiça permanece de olhos vendados para essas questões, as pessoas que atuam diretamente no sistema de Justiça. E eu digo isso com base no caso Simone Diniz, que foi um caso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo relatório é de 2006, e nesse relatório a Comissão Interamericana de Direitos Humanos vai dizer que o sistema de Justiça brasileiro é institucionalmente racista. Porque, embora a legislação antirracista tenha evoluído, esse sistema de Justiça aplica essa legislação. Se torna condescendente com a prática de racismo, por exemplo. Então, é muito importante que haja de fato esse letramento antirracista dos membros do sistema de justiça, aliado às outras questões que eu falei de composição, de respeito à Constituição, enfim. 

 

Acredita que já é possível vislumbrar algum avanço nesse sentido, principalmente aqui na Bahia, a senhora que atua junto ao Ministério Público. Já tem percebido algum avanço nesse sentido? 

Há avanços. A Lei Maria da Penha impulsionou a reorganização do sistema de Justiça, com a criação de Varas especializadas, faz com que juízes, juízas, promotores, promotores, defensores, defensoras, a advocacia em si, se debrucem sobre o assunto para que essa legislação consiga realmente ser concretizada. E o mesmo digo em relação à questão racial, nós evoluímos sim, evoluímos. Eu tenho dito que as cotas raciais são um pequeno, porém firme passo rumo a essa justiça racial. E isso tem impactos também na própria composição do sistema de Justiça, porque hoje no Brasil todos os órgãos do sistema de Justiça possuem concursos públicos com cotas raciais. Então, esse sistema de cotas traz essa diversidade ou pretende pelo menos trazer essa diversidade para o sistema de Justiça, e quando nós fazemos a diversidade não são apenas corpos negros, indígenas, quilombolas que estão ocupando aquele espaço, são vivências, são outras experiências, são outras perspectivas de vida que vão também ali sendo absorvidas por esse órgão que recebe essas pessoas. Agora, essa política pública precisa ser monitorada. Nós ainda temos muitos casos de pessoas brancas, socialmente brancas, que ingressam nas vagas reservadas para pessoas negras e trazem jurisdicionalidade dessa política pública, que não consegue alcançar seu objetivo, seja um incremento da presença negra nesses espaços - negra aqui falando das cotas raciais especificamente para pessoas negras, embora a gente tenha aí perspectiva de ampliação também. 

 

Embora o judiciário lide diretamente com lei, execute, mas diretamente não constrói essas leis. Como é que essa relação acredita que pode ser melhorada entre o Judiciário e o Legislativo, no sentido de construção dessas leis e ampliação de direitos mesmo?

O Ministério Público impulsiona políticas públicas. A partir do momento que ele fiscaliza a concretização ou não da própria legislação, do próprio direito, ele está ali sim funcionando políticas públicas. Então não é raro que o Ministério Público se articule no Brasil afora, e na Bahia não é diferente, com o Legislativo, com membros do Legislativo para propor, impulsionar, trazer sugestões de projetos de lei que venham a concretizar melhor a constituição, as outras leis já vigentes. Então, é um trabalho de articulação interinstitucional, claro que respeitando as competências de atribuições de cada órgão, é fundamental. O fato de cada órgão ter suas competências não impede que tenhamos aí essa articulação respeitando seus princípios dos freios e contrapesos. Você tem sua competência, mas também a Constituição traz aí essa forma de controle sempre, nenhum órgão é absoluto e ele pode agir de maneira arbitrária virando as costas para a Constituição, o que visa a Constituição. Então há mecanismos de controle e isso vai ser exercitado também de maneira mais eficiente quando a gente traz uma perspectiva de atuação em articulação interinstitucional. Afinal de conta, nesses órgãos deveriam estar todos voltados para o mesmo objetivo, que é de concretizar o estado democrático de direito, concretizar a nossa democracia, a igualdade, realizar de fato a Constituição brasileira.

“O grande desafio da legislação trabalhista brasileira é a reforma na estrutura sindical”, aponta especialista
Foto: Bahia Notícias

Próximo a mais um 1º de maio, data em que é celebrado o Dia do Trabalhador, em um cenário de retomada econômica e busca de geração de postos de trabalho formais, o cenário trabalhista no Brasil e na Bahia ainda enfrenta diversas barreiras também na garantia de direitos.

 

Neste primeiro bloco, o advogado especializado em direito trabalhista, Thiago Dória, traça um panorama da legislação do trabalho no país. Na visão de Dória, é preciso pensar também na simplificação das normas para assegurar o cumprimento de direitos básicos e a extinção da informalidade nas relações entre empregado e empregador.

 

“Talvez a gente precisasse entender aonde é que a gente pode simplificar, não é só no direito do trabalho, não, em tudo no Brasil aonde é que a gente pode simplificar normas para que essa nossa cultura de informalidade não nos levasse a situações ruins. Isso em todos os aspectos”, pontua. 

 

Estudo feito pela Confederação Sindical Internacional, que analisou dados de 148 países, revela que o Brasil está entre as 10 nações onde os direitos trabalhistas mais são violados. “Empregadores gostam de flexibilizar as normas com empregados e geram problemas para si”, destaca. 

 

“Os próprios atores da relação trabalhista descumprem as normas, às vezes por vontade, às vezes por ignorância, pragmatismo e isso é ruim porque gera na gente aquela sensação da lei que pega e da lei que não pega, do ambiente de trabalho que tudo é respeito e nada é respeitado. Enfim, o desafio é grande”, complementa ao indicar que para os empregadores é muito mais “barato” cumprir as normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) do que infringi-las. 

 

 

No segundo bloco, Thiago Dória analisa as relações de trabalho consolidadas durante a pandemia e neste período pós-pandemia. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), uma em cada quatro pessoas poderia trabalhar de forma remota no Brasil. 

 

“A gente não inventou nada na pandemia, mas a gente destampou muitas caixas. Então veja que a gente não teve nenhuma grande inovação tecnológica na pandemia, mas a gente passou a usar toda a tecnologia que a gente já tinha à nossa disposição de uma maneira muito mais intensa. Do mesmo jeito que o que o direito do trabalho flexibilizou na pandemia foi muito pouco”, avalia.

 

Mais do que o teletrabalho, Dória alerta para o aumento da “pejotização” nas relações trabalhistas, com a contratação de trabalhadores via contrato de microempreendedor individual (MEI). “A pessoa não pode ter a opção de escolher o regime que ela quer, se o vínculo tem os elementos do vínculo de emprego. Principalmente, porque o risco dessa deturpação é toda do empresário”, sinaliza.

 

O advogado também aponta os desafios no debate sobre a chamada “uberização do trabalho”, com o exercício de profissões por meio de plataformas digitais. 

 

 

No terceiro bloco, a pauta é a reforma trabalhista, que em 2023 completa seis anos. O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, tem defendido a necessidade de revisão e afirmado que a reforma foi uma tragédia para a formalização dos empregos. 

 

Ao discordar da afirmação de que a reforma trabalhista trouxe apenas prejuízos, Thiago Dória diz que é preciso perceber que a mudança trouxe pontos positivos e negativos. “As pessoas demonizam a reforma, porque ter um inimigo é muito bom. É multifatorial esse sistema”, fala. “Então, você tem coisas que são importantes na reforma e tem coisas que são muito ruins”, endossa.

 

Para o advogado, o governo federal não deve aprovar uma revogação, já que o mundo e, consequentemente, as relações trabalhistas mudaram muito nos últimos tempos. “O grande desafio nesse cenário macro da legislação trabalhista brasileira que precisa ser enfrentado, e que o governo Lula tem uma combinação de atores bem importante para fazer isso, é a reforma na estrutura sindical brasileira”, defende.

 

 

No quarto e último bloco, Thiago Dória apresenta os pontos que caracterizam o trabalho análogo à escravidão. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, somente até março deste ano foram resgatados mais de 900 trabalhadores em situação análoga à escravidão, número recorde de vítimas resgatadas em relação aos últimos 15 anos. O número de empregadores flagrados nessa situação ultrapassa os 280.

 

Além disso, o advogado faz projeções para o cenário das relações trabalhistas. 

 

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A Lei Complementar 87/96 foi alterada em atendimento a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para eliminar a incidência do ICMS nas transferências interestaduais entre estabelecimentos da mesma empresa, com vigência a partir de 1º de janeiro de 2024. Ressalte-se que a autonomia dos estabelecimentos foi mantida para outros fins. Ou seja, cada estabelecimento é automono, exceto em relação às operações de transferências.

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