Setembro Amarelo: Entenda como a psicologia atua no acolhimento a vítimas de crimes violentos na Justiça
Por Eduarda Pinto
A dimensão psicológica da dor é uma área cinzenta e ainda pouco explorada nos estudos das ciências sociais aplicadas. Na área do Direito e Justiça, o olhar estritamente factual afasta os processos judiciais do seu próprio sujeito, a vítima que sofre e/ou denuncia crimes violentos. No mês do Setembro Amarelo, em que às temáticas relacionadas a garantia da saúde mental e acolhimento psicológico são destacadas nas campanhas de saúde, o Bahia Notícias investigou os usos da psicologia jurídica e os mecanismos de acolhimento às vítimas de crimes violentos no âmbito da Justiça.
A reportagem conversou com profissionais que atuam nessas instâncias diariamente para compreender de que forma as pessoas mais vulneráveis, vítimas de crimes com grande impacto psicológico, são tratadas e amparadas no judiciário baiano.
ACOLHIMENTO INICIAL
Em conexão direta com a sociedade civil, o psicólogo Tadeu Ferreet, da Coordenadoria da Mulher, relata o trabalho realizado pela Casa da Mulher Brasileira no acolhimento primário das vítimas.
A Casa da Mulher Brasileira é fruto de um projeto nacional, vinculado ao “Programa Mulher Viver Sem Violência” do governo Dilma Rousseff, que funciona como um centro de acolhimento às mulheres vítimas de violência, onde elas podem encontrar a Delegacia Especializada, o Juizado Especial, o Núcleo da Promotoria e da Defensoria Pública em um só lugar. Em Salvador, a Casa fica localizada na Avenida Tancredo Neves, no bairro do Caminho das Árvores.
Em entrevista, Tadeu conta que a maioria das mulheres chega à Casa da Mulher já possuem conhecimento sobre o funcionamento dela, e todas passam por um núcleo de atendimento psicossocial. “Elas entram na casa através do psicossocial. A primeira vez que a mulher chega na Casa da Mulher Brasileira, ela obrigatoriamente passa pelo serviço do psicossocial e através do psicossocial, que faz uma triagem, ele encaminha essa mulher para a DEAM [Delegacia Especial de Atendimento a Mulher], ou para o Tribunal de Justiça, ou para o Ministério [Público] ou para a Defensoria [Pública]”, explica.
O atendimento do Tribunal de Justiça na Casa acolhe as mulheres que já possuem processos relacionados a medidas protetivas ou violências diversas, assim como fornece informações aquelas que desejam acionar a Justiça. “A gente faz esse trabalho para o acompanhamento dos processos que elas já tenham ou para dar as informações necessárias, caso elas procurem a Casa da Mulher Brasileira através do Tribunal de Justiça para dar entrada ou solicitar uma medida protetiva”, sucinta.
Ferreet conta que “o perfil da mulher que chega para a unidade do Tribunal de Justiça que funciona dentro da Casa é de mulheres pretas, com a faixa etária de 20 a 40 anos, muitas vezes mães solos, desempregadas, num nível de vulnerabilidade social, econômico e cultural muito grande”.
O psicólogo, professor e palestrante detalha que o acolhimento psicológico no âmbito da Coordenadoria na Casa da Mulher funciona como um processo inicial de escuta e “estabilização” da vítima, para que ela possa dar seguimento os processos burocráticos.
“Quando eu estou lá eu recebo essa mulher, faço a escuta em um ambiente seguro, seguindo as normas do nosso Conselho de Ética. Então, a gente faz a escuta, faz o acolhimento e caso necessário, mesmo que essa mulher já esteja mais tranquila, mais calma e tenha a resposta daquilo que ela precisava, a gente faz o encaminhamento dela para uma sequência de inserções terapêuticas através do Centro de Referência Loreta Valadares, que funciona também dentro da Casa da Mulher Brasileira”, esclarece Ferreet.
“Mas o nosso atendimento ele é pontual, para que a gente entenda, compreenda e encaminhe. Se for necessário, a gente faz relatório”. Ele relata que os relatórios são padronizados e utilizados como registros em casos de adesão ou suspensão de medidas protetivas, por exemplo.
Responsável pelo atendimento inicial e “pontual” de acolhimento, Tadeu reforça a necessidade da continuidade dos atendimentos, especialmente para vítimas de crimes violentos. “Dentro desse processo, essa mulher tem a possibilidade de voltar para o mercado de trabalho, de fazer curso de qualificação, de fazer cadastro de vagas de emprego, ela tem possibilidade de participar de rodas de conversa, de grupos de mulheres que passaram pela mesma situação. Então, aos poucos, essa dignidade, esse empoderamento, ele vai sendo apresentado a essas mulheres”, conclui.
ASSISTÊNCIA SOCIAL E PSICOLÓGICA
O atendimento psicológico continuado pode ser realizado pelo Centro de Acolhimento Loreta Valadares, dentro da própria Casa da Mulher Brasileira, mas, para aquelas vítimas que já possuem um processo judicial em andamento, o Centro Especializado de Atenção às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais (CEAV), também vinculado ao Tribunal de Justiça da Bahia, realiza um atendimento contínuo a essas vítimas.
O Bahia Notícias entrevistou a psicóloga Cristina Goulart, responsável pela equipe de atendimento psicológico, e a juíza Maria Fausta Cajahyba, titular da 5ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Salvador e coordenadora do CEAV. Na gestão do Centro, Fausta ressalta que parte das varas do Tribunal possuem, em si mesmas, centros de acolhimento às vítimas. A atuação do CEAV é um canal especializado de atendimento, acolhimento e orientação às vítimas diretas e indiretas de crimes e atos infracionais.
“Ele é específico para qualquer tipo de vítima, seja vítima de crime e de ato infracional. A diferença é que ato infracional é quando o ato análogo a crime é praticado por adolescente. Mas para o atendimento podem ser as vítimas diretas, que são atendidas, e as vítimas indiretas, as pessoas impactadas pelo ato, como mãe, pai da vítima, pessoas que estão próximas. No caso de vítimas de homicídio, [a vítima atendida] é a família, vítima de desaparecimento também é a família. Então são as vítimas indiretas, além das vítimas propriamente ditas”, explica a magistrada.
Inaugurado oficialmente em 2023, o Centro Especializado de Atenção às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais (CEAV) funciona na Travessa Marcelino, no bairro da Liberdade. O Centro pode acessado por qualquer pessoa vítima de um processo ou procedimento, seja na delegacia ou na esfera judicial.
A juíza Fausta Cajahyba explica ainda que o trabalho do CEAV também possui um viés social, e não apenas terapêutico. Para o atendimento dessas vítimas, a coordenadora explica que “os casos podem ser encaminhados pelo juiz, ou a pedido das partes, a pedido do Ministério Público, mas o processo continua tramitando na vara.”
“É encaminhada a situação da vítima, porque isso não é um atendimento processual, é um atendimento de assistência e apoio. Quando o juiz encaminha uma vítima para lá, ela vai, se apresenta, diz que responde ao processo tal, com ofício e ela vai dizer a situação dela e a depender, ela pode ser encaminhada”, diz. Fausta cita um caso de agressão física, por exemplo. Neste caso, o CEAV aciona uma rede de apoio envolvendo hospital públicos, oferece informações sobre os direitos da vítima e a encaminha para o apoio psicológico. O mesmo vale para acesso a programas assistenciais, a exemplo dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), ou previdenciários.
ACOLHIMENTO CONTINUADO
Já no que diz respeito ao atendimento psicológico e terapêutico, o CEAV realiza o direcionamento das vítimas ao Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Disputas (Cejusc), onde atua a psicóloga Cristina Goulart, que coordena um grupo de profissionais da psicologia na unidade.
“Somos um grupo de psicólogas que atendemos as pessoas que passam por pela Justiça Restaurativa, que são usuários da Justiça, que procuram a Justiça e estão em situação então de e buscando métodos compositivos da Justiça Restaurativa”, contextualiza.
Ela, que é coordenadora do curso de Psicologia da Faculdade Visconde de Cairu, explica que os atendimentos no Cejusc funcionam como um atendimento mais próximo e contínuo com a vítima. “O atendimento que a gente faz é para dar um suporte para esse novo momento que ela tá vivendo, crítico, de estar sendo vítima de uma situação de violência, e geralmente ela precisa de suporte para passar por esse momento, refletir e decidir o que ela vai querer da vida dela, o que ela busca e o que ela precisa fazer”, detalha Cristina.
A coordenadora da equipe explica que o atendimento funciona como um acompanhamento terapêutico convencional, com sessões semanais, quinzenais ou mensais, sempre garantindo um acompanhamento contínuo que pode ser individualizado ou com atividades em grupo.
A especialista explica que além do atendimento no Centro, a equipe pode dar suporte as vítimas no momento dos processos judiciais. “A gente dá um suporte também, muitas vezes, a mulheres que vão para a audiência, mas ela não querem ver o ex-companheiro. Então, hoje a maioria das juízas tem a sensibilidade de colocá-la numa outra sala, enquanto faz audiência com o suspeito e depois faz com ela, e muitas vezes [a juíza] pede para que a gente esteja presente para dar o suporte para ela, porque ela fica muito nervosa, com muito medo”, relata.
Ao BN, a psicóloga do Cejusc indica que, atualmente, cerca de 20 profissionais atuam na rede multidisciplinar da unidade. Segundo ela, considerando o formato dos atendimentos, os pacientes acolhidos podem dar continuidade ao acompanhamento psicológico mesmo após o final do processo judicial, assim como também possuem a liberdade para abandonar o projeto quando quiserem.
“A gente respeita muito a demanda da pessoa, a demanda da vítima”, afirma Cristina. Ela conta que existem diferentes perfis de pacientes. “Tem umas [vítimas] que entram, mas só querem é um acolhimento mesmo, ficamos um tempo lá, se está se sentindo mais segura, e bem, está retomando a vida e para ela já finalizou o processo. Tem outras que chegam a ficar às vezes 2 anos em atendimento”, relata.
Além dos trabalhos com as vítimas, o Cejusc ainda realiza atendimentos educativos aos suspeitos, a exemplo de homens acusados ou condenados por crimes contra a mulher. O Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Disputas funciona no mesmo prédio que o CEAV, na Travessa Marcelino, em Salvador.
ANÁLISE VERSUS ACOLHIMENTO
Diferentemente dos profissionais que realizam acolhimento a vítimas de violência no âmbito do judiciário, outros profissionais da psicologia atuam na dimensão técnica e analítica dos processos judiciais. Para conversar sobre isso, o Bahia Notícias conversou com a psicóloga perita judicial e especialista em Análise Funcional do Comportamento, Normanda Vidal.
A profissional, que atua em uma clínica especializada, é uma das psicólogas habilitadas pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). “Eu trabalho com a psicologia forense. Esse trabalho ele é feito por meio de perícia, quando nomeada pelo juiz, a gente faz experiências psicológicas e entrega laudos e estudos psicossociais para o juiz a pedido”, explica. “A depender da demanda e fora do sistema judicial, eu trabalho como psicóloga, assistente técnica jurídica, contratada por uma das partes para fazer produção de quesitos, pareceres técnicos, laudos psicológicos, relatórios, no enfoque judicial”, conclui.
A especialista ressalta a complexidade e a sensibilidade do tema no âmbito do judiciário: “A própria Justiça ainda está tateando, engatinhando nessa questão da percepção, análise e julgamento da violência psicológica. O que eu vejo na realidade é que tem medidas protetivas lançadas para proteger a mulher dessas violências psicológicas, porém, nas varas de violência, especificamente, a gente encontra uma adesão ao processo psicológico”, indica.
“Mas na hora de prestar uma avaliação, no âmbito do processo, que configure esse estudo de nexo causal, ou seja, como esse trauma, esse foi causado ou foi piorado por uma violência psicológica entre parceiros, no caso, a gente não percebe que tem esse estudo muito bem estruturado, sendo utilizado da maneira como deveria”, completa Normanda.
No caso dos processos judicias, a psicóloga detalha o funcionamento das suas frentes de atuação: “O juiz pode solicitar um estudo social, em caráter oficial e nesse caso eu agirei como uma psicóloga perita do juízo. Só psicólogos cadastrados no sistema do TJ-BA, estão aptos para serem nomeados pelos magistrados. Também pode ocorrer de uma das partes solicitar essa assistência técnica psicológica jurídica”.
Especialista em “casos de difícil manejo”, ou seja, casos clínicos de difícil diagnóstico ou acompanhamento como transtornos de personalidade e entre outros, a profissional destaca que a lisura do processo, quando contratados em regime particular por uma das partes de um processo, é garantida por meio das cláusulas de contrato.
A psicóloga cita, como exemplo, uma disputa judicial entre duas partes com relação a uma acusação de abuso sexual infantil. Em uma situação sensível como esta, Normanda defende a clareza no processo. Ela conta que já levou mais de dez meses investigando certos casos. “O que as pessoas precisam entender é que o psicólogo, assistente técnico, ele não é advogado do cliente. O advogado, o cliente já tem. O assistente técnico psicólogo não está ali para defender o cliente, para ser torcida organizada do cliente, para ser amigo do cliente. A gente está fazendo ali um processo avaliativo técnico, criterioso, sistemático, que precisa invariavelmente estar pautado pelo Código de Ética do psicólogo que nos garante autonomia e nos obriga a imparcialidade dos resultados”, destaca.
Realizando um trabalho diferente dos colegas citados anteriormente, Normanda ressalta a importância de um processo cuidadoso de análise técnica psicológica: “Eu tenho um protocolo que foi se refinando nos últimos anos. São protocolos muito criteriosos, muito aprofundados, que tem várias etapas para entregar vários tipos de documentos para esse cliente posteriormente. A gente faz um processo longo porque chegam muito processos sensíveis para mim. Tem casos que eu levo 10 meses investigando a vida das pessoas, virando a vida delas do avesso para saber se aquela denúncia ela se confia, firma ou ela se refuta”, conclui.
A inserção da psicologia no processo judicial é, para a juíza Fausta Cajahyba, uma tentativa da Justiça de se aproximar das vítimas dos processos. “Hoje em dia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que é o órgão administrativo máximo do judiciário, tem se preocupado com essa atenção à vítima, coisa que não existia”, contextualiza.
“Existia uma política pública para atenção e apoio às vítimas de crime de ato infracional, mas agora existem equipamentos para isso, porque hoje está-se dando mais voz à vítima, mais atenção à vítima. O sistema de justiça era muito preocupado em apenas punir o culpado, a vítima era ouvida somente para dar informação, para descobrir quem era o autor [do crime ou ato infracional]. Hoje a vítima está tendo voz, seja pelos movimentos da Justiça Restaurativa, seja pela própria preocupação do dos tribunais e do Poder Judiciário, mas principalmente, porque isso é uma obrigação ética, uma obrigação humana”, completa.