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Tributo em Pauta: Os tropeços do TJ-BA nas decisões sobre ITIV de patrimoniais

Por Anderson Pereira

Tributo em Pauta: Os tropeços do TJ-BA nas decisões sobre ITIV de patrimoniais
Foto: Arquivo pessoal

A análise das decisões proferidas recentemente pela Corte baiana revela um equívoco no exame da imunidade da incorporação de bens para realização de capital social, principalmente no que diz respeito à aplicação do Tema 796 de Repercussão Geral, fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020.

 

As chamadas “holdings patrimoniais” são pessoas jurídicas constituídas para viabilizar uma melhor administração do patrimônio dos seus sócios, a princípio, sem prejuízo de outras finalidades que pretendam colocar em prática dentro do que admite a legislação. Para tanto, as cotas que representam seu capital social são subscritas com bens imóveis e não com dinheiro, como também pode acontecer.

 

Teoricamente, esta operação deveria gozar da imunidade prevista no art. 156, § 2º, inciso I da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Porém, na prática, sempre foi comum encontrar obstáculos nas legislações municipais, que os instituem muitas vezes de forma questionável, já que não encontram respaldo no ordenamento jurídico.

 

O Município de Salvador, por exemplo, possui dispositivo que indica a impossibilidade do exame da atividade preponderante quando a pessoa jurídica possui menos de 3 anos de constituída (art. 115-A, § 6º, da Lei Municipal nº 7.186/2006), o que acaba implicando na negativa do reconhecimento do direito sem que se possa encontrar essa limitação no texto do dispositivo constitucional que estabelece a imunidade ou no Código Tributário Nacional (CTN), como decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ/BA) na apelação nº 0558719-41.2016.8.05.0001. O Município de São Paulo possui idêntica previsão no § 3º, do art. 4º, da Lei Municipal nº 11.154/1991.

 

A rigor, a preponderância deve ser examinada de acordo com a atividade que gerou receita nos dois anos anteriores e posteriores à incorporação dos bens, nas pessoas jurídicas pré-existentes (art. 37, § 1º do CTN) ou, nos 3 anos seguintes à incorporação, no caso daquelas recém-constituídas (art. 37, § 2º do CTN). Mas o seu tempo de existência não impede que goze da imunidade. É o município que deve fiscalizar, após este período, se for o caso, e exigir o tributo devido, em caso de constatar irregularidade.

 

No dia-a-dia, todavia, há casos em que a imunidade é rejeitada apenas em função das atividades previstas no contrato social, quando vinculadas ao ramo imobiliário, e até mesmo pela presunção de que atividades como a “administração de bens próprios” pressupõe a de compra e venda dos mesmos, apesar da condição legal apenas indicar a proporção superior a 50% da receita em determinada atividade como forma de caracterizá-la preponderante ou não, o que impõe reconhecer que a mera indicação de uma atividade econômica no objeto social, por si só, não constitui impedimento se esta não for exercida com preponderância.

 

O Poder Judiciário vinha controlando os exageros e ilegalidades dos municípios, acertadamente. Entretanto, há algum tempo uma nova tese ganhou corpo nos municípios: a de que a imunidade constitucional só alcançaria o valor do imóvel indicado no contrato social ou alteração para fins de integralização, incidindo o imposto sobre a diferença entre este montante para aquele arbitrado pela administração como valor venal para fins do Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos (ITIV).

 

Em meio à discussão, o STF julgou o RE 796.376/SC, com repercussão geral reconhecida, e firmou o Tema 796, sintetizado da seguinte forma: "A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”.

 

Equivocadamente, alguns Tribunais de Justiça passaram a adotar este raciocínio nos processos em curso sem os devidos cuidados, infelizmente. O TJ/BA também incorreu neste equívoco ao aplicar o tema nos autos nº. 8001737-17.2017.8.05.0154, 0502933-58.2017.8.05.0039, 8001177-61.2019.8.05.0039, 8041741-02.2019.8.05.0001 e 8008665-67.2019.8.05.0039, pelo menos.

 

Nestes casos, é possível apontar ao menos dois problemas, em nossa opinião. O primeiro é o desrespeito ao princípio da legalidade, já que não se pode exigir tributo sem lei que o institua. Numa pesquisa rápida e não exaustiva, é possível identificar que, na Bahia, somente Salvador (§ 5º do art. 115-A, da Lei Municipal nº. 7.186/2006), Camaçari (§ 2º do art. 107 da Lei Municipal nº. 1.039/2009) e Lauro de Freitas (§ 2º do art. 108 da Lei Municipal nº. 1.572/2015) prevêem a tributação de eventual excedente. Os Códigos Tributários de Feira de Santana (Lei Complementar Municipal nº 03/2000), de Barreiras (Lei Municipal nº 1.293/2018), de Vitória da Conquista (Lei Municipal nº 1.259/2004), de Mata do São João (Lei Municipal nº 280/2006) e de Luís Eduardo Magalhães (Lei Municipal nº 387/2009), por sua vez, não possuem dispositivo neste sentido.

 

Claro que é factível a defesa de que a previsão legal de incidência do ITIV sobre a transmissão imobiliária seria suficiente para atingir o excedente, representado pela parte não coberta pelo manto da imunidade tributária. Mas essa é uma discussão para outra oportunidade.

 

O outro problema, aparentemente mais grave, é que as decisões acima relacionadas ignoraram a total distinção da situação decidida pelo STF em relação àquela comumente discutida quando se trata de constituição de patrimoniais ou na mera realização de capital com bens dos sócios. O caso que motivou o Tema 796 reflete, na origem, hipótese onde a pessoa jurídica possuía capital social de apenas R$ 24.000,00 integralizados por 17 imóveis de valor total declarado de R$ 802.724,00, estabelecendo ainda expressamente no contrato que o excedente seria destinado para reserva de capital, na forma do art. 182, § 1º, alínea "a" da Lei nº 6.404/76.

 

É verdade que a redação final da tese não é clara a este ponto como deveria. Mas a sua aplicação demanda exame dos pressupostos para sua fixação até mesmo para evitar o vício de ausência de fundamentação previsto no inciso V do § 1º do art. 489 do Código de Processo Civil (CPC), por deixar de demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta aos fundamentos do paradigma invocado. Nem mesmo a aplicação dos precedentes de observância obrigatória exime os juízes e tribunais de respeitarem essa regra, conforme previsão expressa do § 1º do art. 927 do CPC.

 

Ao ler o acórdão do STF, por exemplo, é possível perceber que o relator, Min. Marco Aurélio, entendeu que a reserva de capital também integra a finalidade da imunidade de facilitar o trânsito jurídico de bens para viabilizar investimentos. Porém, prevaleceu a divergência capitaneada pelo Min. Alexandre de Moraes, que também teceu observações consideráveis sobre outro aspecto do dispositivo constitucional, o qual, embora mencionado apenas de forma lateral naquele momento (obter dictum, em juridiquês), sugere uma linha argumentativa com alta probabilidade de emergir como nova controvérsia a dirimir.

 

Segundo o voto vencedor, o inciso I do § 2º do art. 156 da CF/88 conteria duas hipóteses de imunidade. A primeira, incondicionada, abarcando toda operação de incorporação, independentemente até da atividade econômica exercida com preponderância; a segunda seria aquela marcada pela condição imposta às empresas do ramo imobiliário, mas somente aplicável às hipóteses de fusão, cisão, incorporação ou extinção de pessoa jurídica, o que não é o caso das incorporações na criação de patrimoniais.

 

Se a decisão do STF está correta ou errada não vem ao caso neste momento. Só não pode servir de fundamento genérico para todas as situações em que se discute a imunidade do ITIV para a realização de capital social, sobretudo porque uma coisa é o excedente que o próprio sócio indica a existência no contrato social e estabelece sua alocação na reserva de capital, outra bem distinta é a hipótese em que o município alegar que o montante integralizado é inferior ao valor por ele presumido.

 

Há pouco tempo, Leandro esclareceu neste espaço os reflexos de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o ITIV (veja aqui), confirmando a irregularidade do seu arbitramento com base em um valor venal presumido em detrimento do valor declarado na operação realizada, sem observar as hipóteses e o procedimento estabelecidos no art. 148 do CTN (omissão ou suspeita sobre declarações, esclarecimentos e/ou documentos apresentados pelo contribuinte).

 

O mesmo raciocínio deve ser aplicado aqui, salvo melhor juízo, quando não há diferença entre o valor atribuído ao imóvel no documento de constituição ou alteração da pessoa jurídica em relação às cotas que se pretende integralizar. Se o município entender que há alguma omissão ou irregularidade em face do valor do bem, deve apontá-la em procedimento no qual o contribuinte também possa se defender, e não negar o direito ou condicionar a transferência ao recolhimento da diferença que entende existente em relação ao montante que indica como adequado.

 

Essa distinção entre os casos, lamentavelmente não observada pelo TJ/BA, é indispensável porque as decisões do STJ e do STF não são contraditórias justamente porque se reportam a situações que não se confundem. Afinal, se o município deve observar o valor declarado do negócio, em regra, para cobrança do ITIV, e não qualquer outro arbitrado unilateralmente, como fixou o STJ, o Tema 796 do STF não se aplica a essas operações, se referindo apenas às hipóteses onde o excedente sobre o qual incide é expressamente declarado pelo próprio contribuinte e não presumido pela administração tributária.

 

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) tem observado que o Tema 796 não se aplica a todos os casos, como no acórdão proferido ao julgar a apelação interposta nos autos nº 1002758-52.2018.8.26.0438, e nas decisões de apreciação de adequação da fundamentação de seus acórdãos ao tema da repercussão geral, nos agravos de instrumento nº 1003113-56.2019.8.26.0073 e 2250422-29.2021.8.26.0000, quando manteve o posicionamento em razão da distinção do caso concreto. 

 

A nós, resta torcer para que o TJ/BA corrija o rumo o quanto antes.

 

*Anderson Pereira é advogado tributarista licenciado, professor de Direito Tributário e conselheiro do Conselho de Fazenda do Estado da Bahia e do Conselho Municipal de Tributos de Salvador