Governança e Desenvolvimento: Governança das estatais - uma questão de cidadania
Muitas vezes, no nosso país, caímos no erro de acreditar que aquilo que é público pertence ao governo, aos políticos ou, pior, a ninguém. E, na verdade, público é o bem que pertence ao povo, a todos nós. É nosso patrimônio. E esse conceito vale para uma escola, um hospital, um parque… e vale para as empresas estatais.
A simples propriedade coletiva já justifica a necessidade de transparência, regras e controles na administração das estatais, pautados em ética e propósito, com o objetivo de gerar valor para a sociedade e garantir o cumprimento do objetivo que justificou a sua criação. Em outras palavras, é importante aplicar nas estatais as melhores práticas de governança e os princípios empregados pela iniciativa privada: integridade, sustentabilidade, equidade, responsabilização e transparência.
Para que serve uma estatal
Estatal, basicamente, é a empresa cujo controle é exercido por um ente político-administrativo (União, estado ou município) e cuja propriedade pelo Estado se justifique pelo atendimento ao objetivo descrito na lei que a criou.
A “lógica” das estatais é diferente das companhias privadas. Por exemplo, algumas não precisam necessariamente dar lucro. Não estou defendendo que tenham prejuízo, mas sua função, nesses casos, é prestar serviços essenciais e atender a uma política pública, como levar energia a regiões remotas, o que justificou a criação da Eletrobras em 1962; financiar o desenvolvimento ou garantir acesso ao sistema bancário em locais onde o setor privado não chega, como ocorre com o Banco do Nordeste e a Caixa Econômica Federal. Quando deixa de existir a justificativa que motivou sua criação, como a própria evolução do setor com o avanço da iniciativa privada, o Estado pode decidir por sua privatização, como aconteceu com a Eletrobras.
Há estatais no mundo todo. As maiores operam nos setores bancário, energético, industrial e de serviços públicos. Um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta que, entre 2000 e 2023, o número de estatais entre as 500 maiores empresas do mundo em termos de receita aumentou de 34 para 126. Esses grupos tinham US$ 53,5 trilhões em ativos e mais de US$ 12 trilhões de receita em 2023.
A realidade é que as estatais estão entre as maiores companhias do planeta e têm um papel importante no crescimento e desenvolvimento econômico sustentável. Ao mesmo tempo, despertam “tentações” que vão desde o “cabide de empregos” até escândalos de corrupção.
Governança pela lei
Todos esses fatores levaram à necessidade de disciplinar a governança das estatais no Brasil. O primeiro grande passo veio por meio da Lei das Estatais, de 2016, que ajudou a profissionalizar a gestão, reduzir a interferência política e melhorar o controle sobre o uso dos recursos.
Os resultados apareceram: entre 2015 e 2021, as estatais saíram de um prejuízo de R$ 32 bilhões para um lucro de R$ 187 bilhões. Além disso, o índice que mede a qualidade da governança dessas empresas quase dobrou, apontando, inclusive, para uma gestão mais eficiente.
Mais tarde, em 2023, o Supremo Tribunal Federal confirmou a validade das regras que impedem indicações de políticos sem preparo para cargos de direção nessas companhias, conferindo mais proteção contra o uso indevido de cargos públicos e mais foco na eficiência e na ética.
Novas diretrizes
As estatais podem e devem ir além nas suas regras e controles. O documento público do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - “Boas Práticas de Governança Corporativa para Empresas Estatais” - oferece orientações essenciais para fortalecer a gestão da administração pública indireta.
Entre elas, destaca-se o papel do Conselho de Administração, que deve atuar com autonomia, independência e responsabilidade estratégica e ter uma composição diversa e qualificada. A remuneração precisa ser transparente e compatível com o mercado e o cargo.
Outras medidas incluem a instalação do conselho fiscal e do comitê de auditoria, que devem atuar com independência e receber as informações necessárias para exercerem suas funções; programas robustos de integridade; gestão de riscos; controles internos; auditorias internas e externas; operação em condições de concorrência justa e com tratamento equitativo aos acionistas, inclusive minoritários; transparência na divulgação de informações; e relacionamento ético com a sociedade civil, promovendo responsabilidade socioambiental e canais de denúncia.
As estatais são nossas. Elas foram criadas para nos servir, e não para atender a interesses políticos. A adoção de boas regras de governança garante que elas cumpram essa missão com seriedade, eficiência e respeito ao que é de todos. A governança, nesse caso, é uma questão de cidadania.
Roberta Carneiro é advogada especializada em Sistema de Integridade/Compliance, Governança Corporativa, Ética Empresarial, Diversidade & Inclusão (D&I) e sustentabilidade. Conselheira certificada em CCoAud+ IBGC. Sócia-fundadora da Consultoria Eticar. Atua como Conselheira de Administração, exercendo a função de membro independente, em Comitê de Auditoria, Comitê de Ética, Comitê de Risco, Comitê de Governança e Comitê ESG. Coordenadora da Comissão de Ética e Integridade do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) 2023-2024. Coordenadora-geral do IBGC Capítulo Bahia. Mestre em Direito, pós-graduada em Direito Público, com especializações em Compliance e Criminal Compliance. Especialista em Materialidade conforme as normas e padrões GRI 2021, IFRS e ODS, certificada internacionalmente pela Global Reporting Initiative (GRI) para Relato de Sustentabilidade.