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Entrevista

Famílias que se sentem acolhidas são de 5 a 7 vezes mais favoráveis à doação de órgãos

Por Renata Farias

Famílias que se sentem acolhidas são de 5 a 7 vezes mais favoráveis à doação de órgãos
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

Levantamento divulgado em agosto de 2017 pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) mostrou que 62% das famílias baianas não permitem a doação de órgãos dos parentes. Esse índice reforça a informação de que a recusa familiar é o principal entrave para aumento das doações no Brasil. No entanto, os números têm apresentado melhora: a recusa para doação de múltiplos órgãos caiu para 58%, segundo dados da Secretaria Estadual da Saúde (Sesab).

 

Em entrevista ao Bahia Notícias, a coordenadora estadual do sistema de transplantes, Rita de Cássia Pedrosa, explicou que a posição das famílias está diretamente associada ao acolhimento recebido nas unidades de saúde. Por isso, o estado tem investido em capacitações nesse sentido. “Quando a família se sente acolhida no processo de entrada no hospital e culmina na morte encefálica do paciente, ela é de cinco a sete vezes mais favorável à doação de órgãos do que uma família que teve um acolhimento ruim. Tudo começa na entrada do hospital”, afirmou. A profissional acrescentou que essa preocupação não deve estar relacionada apenas a médicos, enfermeiros e assistentes sociais. É importante que toda a equipe dos hospitais compreenda a importância do trabalho de acolhimento.

 

Para Rita de Cássia, o principal fator que leva à recusa da família é o desconhecimento do conceito de morte encefálica. “É muito difícil explicar que a pessoa está com o coração batendo, mas não tem mais vida”, ponderou. A médica ainda pontuou que a questão religiosa aparece apenas como uma forma de esconder medos ou angústias relacionados à doação dos órgãos. No entanto, suas pesquisas mostram que não há empecilhos religiosos. “Durante esses 30 anos de estrada, eu não encontrei nenhuma religião que fosse contra a doação, nem os Testemunhas de Jeová, porque eles não aceitam a transfusão de sangue. Quando se retira um órgão, ele vai ser perfundido para ir para o outro paciente. Na perfusão, é retirado todo o sangue”.

 

A coordenadora também falou sobre a importância de conversar com a família sobre o desejo de doar os próprios órgãos, já que não há como garantir legalmente, e sobre a fila de transplantes na Bahia. 

 

Um levantamento da ABTO mostrou, no fim do ano passado, que 62% das famílias baianas não permitem a doação de órgãos dos parentes (veja aqui). Esse é o terceiro mais alto índice do Nordeste. A recusa da família é realmente o principal entrave para doação de órgãos? Quais outros fatores influenciam?

Esse é um dos fatores, e eu tenho uma notícia boa para dar. De 62%, a gente caiu para 58% para múltiplos órgãos, aqueles que precisam ser retirados em caso de morte encefálica, com o paciente ainda ligado a aparelhos. Em relação a córnea, esse índice está em 50%, então melhorou. Isso aconteceu às custas de um trabalho intenso, árduo e muito sério. Me convidaram recentemente para uma palestra no interior sobre acolhimento e entrevista familiar, que é o ponto nevrálgico em relação às negativas. O acolhimento às vezes não é feito, mas é extremamente necessário. Quando a família se sente acolhida no processo de entrada no hospital e culmina na morte encefálica do paciente, ela é de cinco a sete vezes mais favorável à doação de órgãos do que uma família que teve um acolhimento ruim. Tudo começa na entrada do hospital. Eu sempre falo para as pessoas que não adianta sermos excelentes acolhedores se a entrada nas unidades de saúde não é bem feita. A gente tem que treinar todo esse pessoal, não só médico, enfermeiro, assistente social ou psicólogo. A gente fala para toda a equipe do hospital que é preciso entender que a família deve se sentir acolhida. A gente tem muita morte por trauma, diferente dos países de primeiro mundo, onde a maior causa é o acidente vascular cerebral (AVC). O Brasil realmente bate recorde de traumas, e são normalmente pacientes jovens. A família não espera esse diagnóstico de morte encefálica e, se isso foi falado antes, existe de cinco a sete vezes maior propensão à doação. Voltando ao foco da pergunta, a negativa ainda é um entrave, mas nosso trabalho está sendo muito bem feito. Além de ter a queda, a gente recebe elogios das famílias. Em algumas doações, a família acaba de perder o que tinha de mais importante e agradece pelo acolhimento, pela chance de salvar alguém.

 

Para além dessa questão do acolhimento, o que torna esse índice tão alto? As famílias se recusam por algum medo com relação ao destino dos órgãos, a alguma questão religiosa?

Acho que o principal fator é o desconhecimento do que é morte encefálica. É muito difícil explicar que a pessoa está com o coração batendo, mas não tem mais vida. A gente liga a vida ao coração, mas ela está ligada ao cérebro. O coração bate por automatismo, mas o cérebro é o que comanda a vida. A primeira dúvida é se a pessoa está mesmo morta, pela dificuldade de entender a morte encefálica. Tanto que a doação de córnea diminuiu mais ainda a negativa, já que não precisa estar dentro da UTI. A retirada das córneas pode ser feita até seis horas depois da morte. Uma questão também é a mutilação, as pessoas perguntam muito sobre isso. Na realidade, a lei no Brasil é rigorosa demais, é uma das leis mais rigorosas do mundo. Aqui, para ter uma doação, a gente precisa de dois exames clínicos realizados por dois médicos diferentes e de um exame complementar. Nos Estados Unidos, por exemplo, a gente não precisa disso. A morte é clínica, nós ainda temos o diagnóstico para não ter essa dúvida. Quando às questões religiosas, eu preciso explicar. Durante esses 30 anos de estrada, eu não encontrei nenhuma religião que fosse contra a doação, nem os Testemunhas de Jeová, porque eles não aceitam a transfusão de sangue. Quando se retira um órgão, ele vai ser perfundido para ir para o outro paciente. Na perfusão, é retirado todo o sangue. A religião é, às vezes, um fator atrás do qual a família esconde os medos e angústias, mas não é um empecilho para se doar.

 

 

A senhora falou sobre a melhora que a Bahia registrou do ano passado até agora. De que forma é possível melhorar ainda mais esses números?

Eu acho que é um conjunto. As campanhas são momentâneas, efêmeras. Você coloca um artista para falar e aquilo depois cai no esquecimento. Se todo dia se fala em doação, se todo dia o tema é debatido com a família, o assunto fica mais vivo. É manter a chama acesa. Os programas do governo, inclusive da Bahia, são muito bons. Nós temos investido na educação. Eu conheci toda a Bahia só nessa tentativa de dissipar essas dúvidas. Seria muita hipocrisia eu estar há 30 anos em um processo e não acreditar nele. É preciso que as pessoas que trabalham no processo acreditem que morte encefálica é morte. E nosso foco é acolher bem. Se a pessoa é bem acolhida, com certeza vai querer dar um retorno.

 

Existe alguma forma legal de garantir o desejo de doar os órgãos?

A garantia é a fala. O que eu tenho percebido nos últimos anos é que o que um ente querido deixou verbalizado é o que vale. Muitas vezes, a família nem é a favor, mas a pessoa falou em vida que é um doador. A família quer, a todo custo, que a vontade seja respeitada. A gente teve uma doação de uma morte trágica aqui na Bahia. Era um rapaz jovem que, brincando com a mãe, falou "se algum dia eu morrer, pode tirar tudo". Aquilo ficou para a mãe como um desejo do coração dele. Não existe garantia, papel assinado ou deixar em cartório. Havia a carteira de identidade carimbada, mas essa lei da doação presumida foi um tiro no pé. Na carteira de identidade, muitas vezes nem perguntavam se a pessoa era doadora, apenas batia o carimbo que não. Alguns dos nossos colegas trabalhavam com doação e tinham a negativa na carteira de identidade. Falar com a família é fundamental.

 

Como funciona a doação no caso de doadores vivos? Só pode acontecer entre familiares ou é possível doar para um amigo, por exemplo?

O programa de transplantes no Brasil é 99% custeado pelo SUS, então é realmente muito bom. Antigamente, o SUS até permitia doações de não-aparentados, mas foi revogada essa lei. Hoje em dia, a gente só pode ter doação de parentes de primeiro e segundo grau, além de cônjuge. Caso um amigo queira doar ou alguém que se sensibilize, é preciso uma ordem judicial. Ainda assim, o mais importante é a compatibilidade. Não adianta um amigo querer doar se ele não for compatível. E a compatibilidade não é só com o sangue, é a compatibilidade que a gente chama de ABO, a carga genética. Normalmente, essas doações são permitidas pelo SUS quando se trata de parentes ou cônjuges. O ideal é que a gente procure doadores na família, porque a compatibilidade é maior. Os órgãos que podem ser doados em vida são rins, fragmentos do fígado e do pulmão. Esses transplantes de fragmentos do fígado e do pulmão não são realizados na Bahia, porque raros são os lugares que fazem. 

 

Fora esses dois que a senhora já falou, a Bahia tem capacidade para fazer qualquer transplante?

O que não é feito aqui é apenas no caso de transplantes intervivos, com fragmentos de órgãos de familiar. Além do pâncreas, porque esse não é um transplante que é unanimidade. No caso de doador falecido. Eu trabalhei em um serviço, em Minas Gerais, no qual foi realizado transplante de muitos pâncreas, e o índice de insucesso foi alto. Não é uma unanimidade que o pâncreas isolado seja realizado. Não que não seja feito. Por enquanto, apenas esses não temos aqui.

 

 

O SUS cobre transplante de pâncreas, mesmo sem o consenso de que funciona?

Cobre. O transplante de pâncreas é realizado há muitos anos. O caso que contei de Minas Gerais não era um experimento, era um transplante pago. Existem controvérsias no seguinte sentido: o paciente é diabético e precisa de um transplante de pâncreas. Só que ele pode acabar com uma lesão renal. O ideal é que se faça o transplante duplo, de pâncreas e rim. Nem todo mundo faz o pâncreas isolado. Tem vertentes que acreditam que o melhor é fazer o pâncreas junto ao rim. Na maioria dos pacientes diabéticos, acontece uma insuficiência renal. Ele passa pelo transplante de pâncreas, mas continua em diálise. 

 

Com relação à fila de transplante, qual é a burocracia pela qual um paciente passa a partir do diagnóstico de que precisa de um transplante?

Todo paciente que tem uma insuficiência de algum órgão é acompanhado por um especialista. O médico responsável vai ver se o paciente preenche os critérios para entrar na lista de transplante. Não adianta ser um renal crônico e não ter indicação para fazer o transplante. No caso de algumas patologias, que são poucas, não vale a pena fazer um transplante porque pode recidivar a doença de base. Ainda assim, a maioria dos pacientes pode ser transplantada. O que inviabiliza, às vezes, é a idade do paciente, o resultado do estudo dos vasos... Isso no caso do rim. É uma doença silenciosa que, quando aparece, o paciente já precisa de diálise. No caso do coração, pulmão e fígado, os pacientes já chegam muito graves. Isso pode fazer ele perder a condição. Se você observar, as filas de fígado, pulmão e coração são pequenas. Isso não significa que não tenham pacientes, só que eles morrem antes. Eles chegam muito graves até os médicos, então na espera eles morrem. A grande questão da insuficiência cardíaca no Brasil é a doença de chagas. O paciente muitas vezes não tem sintoma, então, quando ele procura o médico, está com aquele coração enorme e não tem tempo para operar por estar muito grave. No caso do fígado, ele pode ter uma hepatite fulminante. Eu já vi muitos pacientes morrerem antes da cirurgia, depois de encontrar um órgão compatível. Nós temos hoje em torno de 900 pacientes esperando por um rim na Bahia. A fila de córnea reduziu de 1,3 mil para 700. A gente teve uma campanha que foi bombástica, vários artistas aderiram. Em uma palestra que participei, uma moça contou que não teve assepsia com a lente de contato e teve uma úlcera da córnea. Igual a ela tem várias. A lista de córnea diminuiu pela metade, e a negativa também diminuiu, está em torno de 50%. Voltando à pergunta, o paciente é listado quando o médico dá o diagnóstico de uma falência de órgãos. Essa lista é gerenciada pelo Sistema Nacional de Transplantes, pelo qual nós somos monitorados. O paciente tem um registro para acompanhar o nome dele na lista. A gente não pode dizer que é uma fila, com primeiro e segundo lugar, porque alguns órgãos não são por tempo de espera. Tem pacientes que se listam no fígado hoje e amanhã aparece um compatível. Já para córnea é uma fila mesmo.

 

A última pergunta era justamente sobre a situação da fila na Bahia. A senhora acha que é necessário acrescentar mais alguma informação?

Acho que é importante falar que a fila tem alta rotatividade. Ao mesmo tempo que hoje tem 900, entram e saem outros. A gente tem um objetivo, que é zerar a fila de córneas. Não é ter ninguém, mas fazer com que o paciente seja contemplado em 30 dias. Essa fila já chegou a dois anos e, atualmente, está em torno de um ano de espera. Espero que isso reduza ainda esse ano, porque tenho outros interiores para visitar e, no caso da córnea, é mais simples o procedimento. No caso do coração, temos um ou dois listados; fígado são seis na fila; e medula óssea é gerenciada pelo Redome [Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea] e pelo Inca [Instituto Nacional do Câncer]. A gente está muito animado em relação a isso. A gente está capacitando os médicos. No fim do ano, saiu uma resolução sobre a não-obrigatoriedade de um neurologista para diagnóstico (veja aqui). A gente está fazendo curso de capacitação para que os intensivistas possam fazer o diagnóstico. Estamos agora no Setembro Verde, então eu queria lembrar que o mais importante é avisar à família quando for doador e discutir isso.