Ao menos 500 baianos serão afetados se ONG deixar de fabricar medicação de cannabis
Por Gabriela Icó
Cerca de 14 mil pacientes que sofrem com enfermidades como epilepsia, alzheimer, parkinson e autismo podem ter o atual modo de tratamento das doenças interrompido. Na última sexta-feira (26), o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) suspendeu a liminar que dava direito à Associação Brasileira de Apoio Cannabis e Esperança (Abrace) a cultivar a folha cannabis sativa para produção de óleo medicinal. A ONG produz e oferece para todo o Brasil o medicamento a preço menor que o de mercado.
Pacientes de outras instituições também fazem uso do óleo produzido pela Abrace Esperança. É o caso da Associação Para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil (Cannab), de Salvador. O fundador e presidente da entidade, Leandro Stelitano, dimensiona ao Bahia Notícias qual será o impacto da decisão para os baianos.
Segundo o presidente da Cannab, cerca de 500 associados fazem uso medicinal do óleo de cannabis produzido pela Abrace na Bahia. "Essa decisão irresponsável irá afetar os pacientes que podem sofrer com a interrupção do seu tratamento", argumenta. Ele aponta que há responsáveis por pacientes sem condições financeiras de comprar o produto com o custo do mercado nacional ou fora do país.
A Abrace oferece o medicamento por valores que variam entre R$ 100 e R$ 300. O valor representa de 4% a 10% do valor de mercado de, por exemplo, dois medicamentos internacionais aprovados pela Agência Nacional de Vigiância Sanitária (Anvisa) que, segundo o presidente da Cannab, custam entre R$ 2.500 e R$ 3.000. Outra alternativa é comprar a medicação fora do Brasil.
A ONG tem permissão para cultivar cannabis desde 2017, sujeita ao cumprimento de medidas que, segundo a Anvisa, foram alteradas e desobedecidas. De acordo com o TRF-5, seriam a Autorização Especial e a Autorização de Funcionamento, que deveriam ser providenciadas pela Abrace junto à Agência.
Segundo o TRF-5, o mérito da ação está previsto para ser analisado no dia 18 deste mês, durante a sessão da Terceira Turma de Julgamento. Até lá, os efeitos da liminar concedida à ONG em primeira instância ficarão suspensos. A decisão do Tribunal aconteceu após a Anvisa sinalizar que a Abrace não estava cumprindo normas técnicas.
"Esses requisitos não estão sendo observados pela Associação, o que obrigou a Anvisa, após infrutíferas tentativas administrativas de sanar os problemas, a informar a situação ao Tribunal Regional Federal da Quinta Região. A medida é necessária para evitar um risco sanitário que possa levar ao agravamento da saúde dos pacientes", diz a agência reguladora em comunicado.
A entidade é a única associação no país com autorização judicial para cultivo e distribuição de medicamentos à base da erva. O processo é feito na sede da entidade, localizada na Paraíba. O desembargador federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Cid Marconi, representantes da Anvisa e do Ministério Público Estadual (MP-PB) visitaram o local na última quarta-feira (3), para colher informações técnicas sobre o cultivo e processo de produção do óleo de cannabis. Uma decisão do magistrado estava prevista para até esta sexta-feira (5).
A situação gerou mobilização nacional por parte de voluntários da Abrace e de entidades associadas, artistas como a cantora Rita Lee e a atriz Cláudia Rodrigues, políticos como a deputada federal do PSOL Sâmia Bomfim e internautas por meio da hastag #abracenaopodeparar.
APROVAÇÃO E REDUÇÃO DE CUSTOS
Stelitano explicou ao Bahia Notícias que é preciso autorização de todas as instituições para o cultivo medicinal da cannabis. Para ele, o custo das medicações seria reduzido caso houvesse ampla produção nacional.
Ele destaca que as associações buscam regulamentação do cultivo no país através do Projeto de Lei 399/15 que, segundo ele, já devia ter sido colocado em votação pelo Congresso. "Essa lentidão faz com que o Brasil seja o último país da América do Sul a ter uma regulamentação da Cannabis para fins medicinais. Na regulação atual aprovada pela Anvisa, só beneficia quem tem poder aquisitivo, pois temos dois óleos importados sendo vendidos nas farmácias: um pelo valor de R$ 2.500 e o outro por R$ 2.200 um frasco de 30 ml", critica.
CUIDADO OU PRECONCEITO?
A liberação da cannabis medicinal enfrenta uma série de preconceitos que afetam o avanço das discussões. Em outubro de 2019, o então diretor-presidente da Anvisa, William Dib, disse que não desistiria da proposta de liberar o aval ao plantio de Cannabis medicinal por empresas mesmo após duras críticas.
Por causa do posicionamento, entrou em rota de colisão com o governo de Jair Bolsonaro. O então ministro da Cidadania, Osmar Terra, chegou a dizer que Dib "não entendia nada" sobre a discussão da liberação da maconha para tratamentos. "Essa conversa de que vai ter um lugar controlado para fazer pesquisa é conversa fiada. Qualquer permissão que tu der para plantio de substâncias que são proibidas abre a porta para a legalização", disse Terra ao O Globo.
No início de dezembro, a Anvisa acabou autorizando a venda de remédios à base de maconha em farmácias, mas proibiu o plantio - exatamente o que seria essencial para tornar o medicamento mais barato e acessível. Dias depois, Dib foi substituído pelo bolsonarista Antônio Barra Torres, que havia votado contra a autorização do plantio.
Na época, Stelitano avaliou a liberação como “um passo importante”, mas “paliativo”. “A única diferença agora é a empresa pode importar a matéria prima e manipular o produto aqui no Brasil. Então você vai ter uma diminuição no custo do produto importado. Mas mesmo assim o que nós estamos buscando e que inclusive teve votação agora de tarde na Anvisa e não foi aprovado é que produção e o cultivo local”, disse ele no fim de 2019.