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Relatório mostra eficácia das audiências de custódia, mas aponta sérias deficiências

Por Bruno Luiz

Relatório mostra eficácia das audiências de custódia, mas aponta sérias deficiências
Núcleo de Prisão em Flagrante, onde ocorrem as audiências | Foto: Ascom/TJ-BA

Criado como medida para auxiliar a resolver o problema da superpopulação carcerária no sistema prisional brasileiro, o instituto das audiências de custódia tem obtido sucesso no seu objetivo em Salvador. Entretanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido quando o assunto é aprimorar a iniciativa. A conclusão é de um relatório feito pelo Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Ibadpp) sobre as audiências de custódia na capital baiana. Apresentado no mês passado, o estudo feito por meio de um acordo de cooperação técnica entre o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e o Ibadpp traçou um panorama sobre a aplicação do instrumento no Núcleo de Prisão em Flagrantes (NPF), em Salvador. É lá que pessoas presas em flagrante têm o seu destino definido. Após uma audiência, o juiz vai definir se ela terá a prisão preventiva decretada, indo direto para o cárcere, ou se poderá responder ao processo em liberdade. Caso o magistrado não decida por nenhuma das duas soluções, pode decretar também o cumprimento das chamadas medidas cautelares. Com elas, o preso não ficará na cadeia, mas também pode ser proibido de frequentar determinados locais, ser colocado em prisão domiciliar ou outras sanções. Para chegar ao documento que fez o raio-X sobre as audiências de custódia na capital baiana, os participantes do estudo, que reuniu desde professores a alunos de Direito, analisaram 590 decisões, proferidas em 433 audiências diferentes. Os casos estudados foram referentes aos meses de janeiro, junho e dezembro de 2016, um período posterior à primeira audiência feita na capital, em setembro de 2015. Após o exame das determinações judiciais, a pesquisa concluiu que, em 49% dos casos (286), o juiz acabou não decretando a prisão, e sim o cumprimento das medidas. Já em outros 48% (285 casos), houve conversão da prisão em flagrante em preventiva. O que chama atenção, entretanto, é que, apesar de soltar mais que prender, em muitos poucos casos o magistrado optou pela liberdade plena do preso, ou seja, para que ele respondesse o processo sem ter que cumprir nenhuma sanção. De acordo com o levantamento, em apenas 1% (4 casos) houve decisão nesse sentido. Em outros 2% (14 casos), ocorreu relaxamento da prisão. No quesito tornar a prisão em flagrante em temporária, houve apenas um caso. Para a professora Daniela Portugal, que coordenou a primeira fase da pesquisa, o fato de o juiz optar pelas medidas cautelares ao invés da liberdade plena mostra que elas não estão sendo usadas como alternativas à prisão, e sim como alternativas à liberdade. “O problema é que nosso Judiciário não aceita que aquele sujeito fique simplesmente livre. Ele se submete a essa pressão da sociedade pela não liberdade, pela punição. Aí se cria essa aberração jurídica que é a banalização da decretação da medida cautelar, que, em alguns casos, são gravosas que nem a prisão”, criticou, em entrevista ao Bahia Notícias. Já de acordo com Camila Hernandes, membro do Ibadpp que coordenou a fase final do estudo, há um fator ainda mais grave em relação às cautelares. Segundo ela, a pesquisa mostrou que a maioria das decisões judiciais não trazem fundamentos cabíveis para a decretação dessas medidas. “Uma das coisas que nós verificamos em relação às audiências é que houve um avanço importante de aumento da liberdade provisória. Porém, elas quase sempre estão condicionadas a alguma medida cautelar e não há uma fundamentação concreta quanto se aplicar a medida cautelar. Precisa se mostrar qual a necessidade da medida, para que ela não seja automática”, ponderou Hernandes. Apesar do aumento da liberdade provisória apontado pela especialista, o relatório mostrou que ainda é alto o número de casos em que a prisão em flagrante se torna preventiva. Para Portugal, isso demonstra que esta alternativa tem se tornado regra em crimes alvos de apuração da pesquisa, como tráfico de drogas, roubo e furto. “O tráfico de entorpecentes é marcado por uma atuação repressiva mais dura, quando, em tese, estamos diante de um crime que até admitiria substituição por pena alternativa”, avaliou. O relatório ainda trouxe um perfil mais minucioso dos crimes que mais chegam às audiências de custódia. O levantamento mostrou que, dos 590 casos analisados, em 280 (47%) as prisões em flagrantes ocorreram por tráfico de entorpecentes. Em segundo lugar, aparece o delito de roubo majorado, com 172 ocorrências (29%), seguido de roubo simples, 67 casos (11%), e furto qualificado, responsável por 47 autos de prisão em flagrante. Ainda de acordo com o relatório, é possível traçar também um recorte de gênero para essas prisões. Em 555 decisões, os conduzidos foram do sexo masculino, o que corresponde a 94% do universo total da pesquisa.  Assim, somente 35 decisões (6%) estavam relacionadas a mulheres. Para Portugal, apesar de o levantamento não trazer um perfil socioeconômico e racial detalhado dos presos, a predominância dos delitos de roubo, furto e tráfico de drogas nos autos analisados revelam que a Justiça segue um viés de cor e raça para encarcerar. “A atuação do nosso sistema penal não é neutra. Já sabemos quais vão ser os sujeitos abordados pela polícia, alvos de investigação. O perfil das pessoas que praticam os crimes de tráfico e roubo não é o perfil do empresário que vai ser processado por fraude tributária. No caso de tráfico, eu não poderia nem dizer que só pessoas mais pobres cometem esse crime, porque nós poderíamos chegar facilmente ao Congresso. Mas a criminalização não se dá pela criminalização da conduta. Ele se dá pela aperfeiçoamento da atuação do estado frente a certos grupos. A atuação do estado não se dá no Congresso, mas sim pela preferência por um certo perfil”, revelou a professora de Direito Penal. No entanto, mesmo com esses problemas apontados pela pesquisa, Camila Hernandes pondera os resultados positivos e a importância das audiências de custódia. “Discutimos muito ainda se devem existir as audiências no Brasil e essa discussão precisa ser superada. Temos uma das maiores populações carcerárias do mundo. Precisamos discutir uma alternativa para redução desse problema. Nesse sentido, a audiência de custódia é essencial como esse instrumento. O que precisamos discutir é propostas de aprimoração desse instrumento. Precisamos pensar nisso com o TJ-BA, com o MP, com a OAB, entre outros órgãos”, defendeu. Para Portugal, a iniciativa é louvável, mas o problema do Direito Penal brasileiro não será resolvido com ela. “O saldo [das audiências] é positivo porque permite uma celeridade maior por parte do magistrado em relação a como prosseguir com essa prisão, permite também a investigação de atos de abuso e tortura pela autoridade policial. Além disso, vamos ter a possibilidade de diminuição dos casos de encarceramento cautelar desnecessários”, destacou. “Mas estamos diante de um sistema falido. Tentar melhorá-lo é complexo. O problema do direito penal é mais profundo. Está na forma estrtutural com a qual o nosso sistema de Justiça endurece diante de determinados agentes e age diferente conforme o sujeito processado”, criticou.