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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Procuradora Rosângela de Lacerda - PEC das Domésticas

Por Niassa Jamena

Procuradora Rosângela de Lacerda - PEC das Domésticas
Procuradora do Trabalho do MPT da 5ª Região, Rosângela de Lacerda conversou com o Bahia Notícias sobre as mudanças efetivas e sociais que ocorrerão caso a Proposta de Emenda a Constituição (PEC) das Domésticas seja aprovada pelo Congresso. Segundo Rosângela, a nova regulamentação do trabalho doméstico vai reparar, se não de maneira total, em grande parte as décadas de defasagem das garantias fundamentais sofridas por esses trabalhadores. Através do ponto de vista jurídico e cultural, a procuradora diz que a aprovação do texto será um passo importante na história do Brasil. "Como toda profissão, o emprego doméstico vai evoluir. Isso é inexorável. A gente não pode querer deter o trem da história, e nem andar na contramão", ponderou.
 
 
Bahia Notícias: Quais são os direitos que a PEC assegura ao trabalhador doméstico?
 
Rosângela de Lacerda: A PEC assegura a empregadas domésticas o pagamento de horas extraordinárias, de FGTS e Seguro Desemprego, entre outros. Então, dessa forma, toda essa problemática que envolve o trabalho doméstico vai ser, senão erradicada, pelo menos minimizada.
 
BN: Por que só agora está sendo proposta uma emenda para garantir os direitos das domésticas? O trabalhador doméstico só tem 9 dos 34 direitos trabalhistas garantidos...
 
RL: Essa discussão é antiga. Vem desde 1988, quando o texto da Constituição estava sendo elaborado. O problema é que naquele momento ainda não havia uma conscientização como a que existe hoje com relação à necessidade dessas garantias fundamentais, porque  os direitos trabalhistas nada mais são do que direitos fundamentais da pessoa humana. Por conta disso, não havia uma força política que fosse forte o suficiente para fazer com que aqueles constituintes incluíssem esses direitos no texto Constitucional. Além disso, havia um preconceito muito grande. O que se dizia era: “bom, se nós implementarmos todos esses direitos, nós vamos ter uma restrição do mercado de emprego das empregadas domésticas”. Ou seja, nós vamos ter muitas trabalhadoras que vão ser dispensadas porque os empregadores não terão condições de arcar com esses encargos sociais. Isso é uma grande falácia. Todo esse discurso de flexibilização de direitos sociais, de diminuição desses direitos trabalhistas, eles não aumentam o número de vagas de empregos. Isso já está estatisticamente comprovado. Quem hoje tem uma empregada doméstica não vai despedi-la, porque vai ter que pagar FGTS ou porque vai haver um controle de jornada. Isso para mim é um argumento extremamente ideológico, não é fundamentado em dados estatísticos e nem econômicos.
 
BN: Você acha que vai ficar mais difícil para o brasileiro ter uma empregada doméstica daqui para frente, caso a PEC seja aprovada?
 
RL: O Brasil é um dos países que mais têm empregados domésticos, e isso é uma questão cultural nossa. Vem da época da escravidão, em que nós tínhamos as mucamas e se considerava que o trabalho doméstico era um serviço de menor importância, portanto, delegado a pessoas com menor nível de escolaridade e menor nível intelectual. O que se observa hoje em dia é que em outros países, como os europeus, os Estados Unidos, as pessoas não têm essa cultura de ter empregadas domésticas. As próprias famílias se adaptam, dividem as suas tarefas. E é isso que eu acho que vai acontecer: como toda profissão, o emprego doméstico vai evoluir. Isso é inexorável. A gente não pode querer deter o trem da história, e nem andar na contramão. Vai ocorrer uma adaptação das famílias. Talvez distribuindo essas tarefas por outros membros da família, utilizando máquinas, ou até utilizando serviços de diaristas para um serviço maior. Disso eu não tenho a menor dúvida. Porque mais caro vai ficar, com certeza.
 

BN: Qual o cenário atual vivenciado pelas empregadas domésticas no Brasil?
 
RL: O cenário que nós vemos hoje em dia é muito chocante. A maioria das empregadas domésticas é, sequer, registrada. Elas têm jornadas extensas, que a gente até poderia chamar de trabalho escravo. Na verdade, não é trabalho escravo, porque não existe uma coação física ou moral, mas, pela extensão daquele trabalho, nós poderíamos chamar de trabalho degradante. Em outros países do mundo, isso é inadmissível, mas aqui você ainda tem vários exemplos como esse. Fora o fato de não ter o seguro desemprego obrigatório, já que não é recolhido FGTS obrigatoriamente. Isso torna as empregadas domésticas extremamente vulneráveis socialmente, porque na medida em que elas perdem aquele emprego, elas precisam sobreviver. Então elas se submetem a determinadas condições extremamente degradantes por conta dessa necessidade.
 
BN: Com a aprovação da PEC, como vai ser feita a fiscalização dessas relações de trabalho e das novas normas, já que é difícil fiscalizar o ambiente doméstico?
 
RL: Eu costumo dizer que direito é prova. Não adianta você ter determinado direito se você não consegue prová-lo. O fato é que o ônus de prova, como a gente chama, é do trabalhador. É um encargo, é um ônus que ele deve suportar. Ou seja, ele tem que conseguir uma prova testemunhal de que trabalhava além das 8 horas diárias. Nas empresas que têm mais de dez empregados existe a obrigatoriedade de haver um ponto, seja manual, por escrito, ou de qualquer tipo... mas, tem que haver controle de jornada. Nessas empresas, em geral, quem deve provar a jornada é o empregador, exatamente porque é ele quem tem essa obrigação legal. Já nas pequenas empresas, que têm menos do que dez empregados, quem tem que fazer a prova da jornada é o próprio trabalhador. E a mesma coisa vai acontecer com o empregado doméstico. ‘Ah, essa prova é muito difícil’. Tem ali uma vizinha, um amigo nessas horas não vai ajudar, tem o porteiro do prédio, o zelador, enfim, o próprio contexto daquele fato é que vai dizer onde você pode conseguir aquela prova, que vai ser testemunhal.
 
BN: A PEC regulamenta, ou tem algum ponto especifico que garanta direitos aos trabalhadores que dormem nos serviços ou que viajam com os contratantes?
 
RL: A PEC não traz nenhum ponto especifico. Mas dormir na residência em que você trabalha não quer dizer, necessariamente, que você tem que estar disponível naquele período todo. O que deve haver é uma conscientização do próprio empregador para que ele, quando encerrar o expediente daquela pessoa, não peça mais que ela realize aquele serviço. A gente sabe que essa é uma realidade que acontece muito. Na realidade, a fiscalização, como você mesmo falou, é mais difícil. Mas não é impossível.
 

 
BN: Você considera que há grandes chances de a PEC ser aprovada no Senado?
 
RL: Eu acho que sim. Eu acho que o nível de escolaridade, tanto no Brasil, quanto no mundo, aumentou. Principalmente o nível de escolaridade das mulheres. Anteriormente você tinha uma grande quantidade de domesticas que sequer eram alfabetizadas, hoje, você tem, pelo menos, os níveis rudimentares de educação. Isso facilita e ajuda muito. Fora que, a própria evolução social já demonstra que aquela pessoa não pode continuar pensando exatamente como pensava décadas atrás.  Os próprios meios de comunicação já são enfáticos com relação a isso. A própria escola, a convivência e as conversas com os amigos já facilitam isso. Eu acho que existe uma grande mobilização social.
 
BN: Você acredita que existe algum entrave que impeça a aprovação da lei?
 
RL: Sempre que se propõe alguma mudança, haverá resistência, qualquer que seja ela. Porque as pessoas têm uma certa acomodação com o que já está pacificado, estabelecido. Mas eu acredito que não vai ter mais força suficiente para impedir essa mudança. O momento político agora é diferente do que se teve, por exemplo, no final da década de 1980 e inicio da década de 1990, em que você tinha propostas liberais que grassavam a nossa economia, nossa sociedade. Hoje em dia já não se tem mais essa visão, que é voltada apenas para o lucro ou para o econômico. Hoje em dia se visualiza muito mais a dignidade da pessoa humana.
 
BN: Como os trabalhadores que sofrem algum tipo de restrição dos seus direitos poderão denunciar os abusos sofridos? Como foi dito, a atividade é desenvolvida, em sua maioria por mulheres e mulheres negras. Elas são mais suscetíveis ao assédio e discriminação, não é?
 
RL: A discriminação pode ser denunciada no sindicato da categoria. Eu acho extremamente importante que as domésticas se conscientizem de que existe um sindicato que pode defender os seus interesses. Você também pode fazer a denúncia aqui no próprio Ministério Público do Trabalho. Nós sempre abrimos procedimentos para essa questão do assédio moral, da discriminação, tanto de trabalhadores domésticos, quanto de outros trabalhadores. A gente faz essa investigação e pode fazer denúncias na própria Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), que é o órgão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que também fiscaliza e pode averiguar esse tipo de situação. Mas para você ter uma ideia, no tocante a discriminação, essa PEC é importante porque a profissão de doméstica sempre foi muito estigmatizada. Para você ter uma ideia, as pessoas com as quais eu convivo, sempre disseram que ‘mesmo que eu ganhe a mesma coisa, eu prefiro trabalhar de outra coisa a ser empregada doméstica’. Ou seja, é a questão da visibilidade social, da autoestima da pessoa, é como se ele fosse um empregado de segunda categoria em relação aos outros. A PEC vem justamente dizer ‘não, são empregados iguais aos outros, com os mesmos direitos e não há mais porque haver essa distinção pelo preconceito social’.