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Entrevista

Enegrecer a Justiça é uma agenda irreversível, enfatiza advogada baiana indicada para o TSE

Por Camila São José

Enegrecer a Justiça é uma agenda irreversível, enfatiza advogada baiana indicada para o TSE
Enegrecer a Justiça é uma agenda irreversível, enfatiza advogada baiana indicada

Baiana, natural de Livramento de Nossa Senhora, no Sertão Produtivo, a advogada Vera Lúcia Santana Araújo compõe pela segunda vez a lista tríplice para a vaga de ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e foi defendida por movimentos sociais e de juristas para o lugar de Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal (STF). 

 

Com a carreira construída em Brasília, tendo se mudado para a capital federal aos 18 anos onde se formou em Direito, Araújo defende que “enegrecer” o sistema de Justiça é uma “agenda irreversível”. 

 

Em entrevista ao Bahia Notícias, a advogada pontua a falta de representatividade não apenas no TSE e STF, mas em todo o sistema de Justiça. “Benedito [Gonçalves] entrou no STJ foi no governo Lula e continua sendo o único. Não tem nenhum tribunal, nenhum Tribunal Regional Federal que tenha uma desembargadora federal negra. Só tivemos até hoje a desembargadora federal negra, a desembargadora Neuza [Maria Alves], daí da Bahia, no TRF-1. Você não tem no Ministério Público Federal um único negro no país”, critica. 

 

Integrante da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), Vera Lúcia consolidou a sua carreira no Direito com forte atuação no campo político, especialmente nos quadros do governo federal. 

 

Ao BN, a advogada fala da sua trajetória e sobre a expectativa de poder compor uma bancada histórica no TSE ao lado da ministra substituta Edilene Lôbo - a primeira mulher negra no cargo. “O que significa isso? Se o presidente Lula me nomear para o TSE, ter a possibilidade de compor uma bancada histórica, duas ministras, ainda que substitutas, mas duas ministras substitutas negras do Tribunal Superior Eleitoral pela primeira vez… De novo estarei escrevendo a história”.

 

A senhora é advogada, neta de lavadeira, filha de professora, nascida em Livramento de Nossa Senhora, sudoeste da Bahia, ativista de movimentos sociais, ligada a movimento de mulheres negras e de juristas pela advocacia, tem mais de 40 anos de atuação como jurista, foi para Brasília aos 18 anos para estudar e vive na capital federal desde então. O que dessa sua história de vida e trajetória acadêmica dizem sobre o seu fazer jurídico?

Eu acho que eu estar a longo de todo esse tempo atuando como advogada privada e igualmente atuando na esfera pública, em cargos importantes de função jurídica e também em cargos de gestão, naturalmente que tudo isso me deu um aprendizado que vai para muito além do aprendizado dos livros, dos tempos acadêmicos, na medida dessa articulação entre o saber e o praticar do direito, o operar, a materialização de direitos. Então, a minha história é marcadamente destacada, eu acho, que por esse recorte de uma execução material do que é o direito. Acho que diz muito sobre isso. 

 

Ter essa vivência social, a sua experiência acadêmica diferencia a senhora em algum sentido?

As minhas escolhas se deram sempre muito em torno de projetos políticos coletivos, projetos políticos de formulação, de execução de políticas públicas. Por exemplo, eu fiz um mestrado. Quando eu estava no mestrado de Política Social aqui na UNB [Universidade de Brasília], foi na época da elaboração da Lei Orgânica do Distrito Federal - o Distrito Federal a gente só veio a ter representação política a partir dos anos 90. Resultado: eu fui convidada para trabalhar na assessoria de um parlamentar exatamente pela minha formação jurídica, pela experiência porque eu já tinha sido também do Parlamento, na criação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Ao mesmo tempo dei uma contribuição muito grande, inclusive tendo sido a primeira coordenadora da Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara Legislativa. Então assim, eu sempre fui muito estudiosa, sempre gostei muito de ler, desde Livramento. Durante a faculdade aqui em Brasília, eu fiquei amiga de todas as senhoras que trabalhavam na biblioteca do Ministério da Justiça, porque às vezes eu passava o dia inteiro na biblioteca do MJ estudando e dando concretude a isso dentro do meu trabalho. Então, assim, digamos que eu ia fazendo uma coisa meio que autodidata no sentido de estudar Direito Administrativo e tal, no tempo em que advogava mais como advogada privada. Depois, em 1993 eu fui aprovada na seleção do mestrado da Faculdade de Direito de Florianópolis, Santa Catarina, e era o auge daquele debate sobre direito alternativo, então fazer mestrado em direito alternativo, era um sonho de todo profissional do campo progressista. E aí fui aprovada, a gente tinha toda já uma demanda de organização, à época eu já filiada ao PT, fui fundadora do PT, e para organizar, como eu já fazia a coordenação jurídica das campanhas do PT, mas assim dispensar uma campanha mais robusta que foi a campanha do Cristovam Buarque, quando a gente elegeu o Cristovam primeiro governador do PT do Distrito Federal. Resultado: eu não fui nem para fazer minha matrícula lá no mestrado e aí é um capítulo da minha vida que eu acho que eu fiz a coisa certa, porque eu fui consultora jurídica do gabinete do governador ao longo dos quatro anos e, sabidamente, nenhum mestrado, não para desqualificar a academia, mas enfim o meu aprendizado de Direito, de vida de política, de gestão na consultoria jurídica de um governador do Partido dos Trabalhadores que tinha como presidente, ou seja, o governo central que era do Fernando Henrique [Cardoso] à época - nós éramos um governo de oposição -, era um exercício extremamente desafiador e, por óbvio, a exigir e saber jurídico que desse sustentação, robustez, segurança jurídica às políticas do governo, que realmente foi assim a minha grande escola, foi efetivamente a minha grande escola jurídica. Então eu acabei fazendo sempre essas escolhas de executar o direito, operar com o direito, embora eu goste, já participei, já ajudei na concepção, inclusive, de cursos pontuais com operadores do Sistema de Segurança Pública, que é uma área que naturalmente me atrai muito. A questão dos direitos humanos num país onde o racismo impera, como é aqui no Brasil, por óbvio, que me afeta profundamente. E aí eu adoro elaborar, fazer, participar, compor cursos especiais para formadores, mas esse ano eu me projetei para uma vida acadêmica como professora, então as minhas escolhas acabaram ficando muito marcadas por esse pragmatismo de operação com o direito.

 

Agora falando sobre o STF, a senhora teve seu nome defendido por movimentos sociais e organizações de advogados para ocupar a vaga deixada por Rosa Weber. A indicação de uma mulher negra é uma pauta que vem sendo debatida e cobrada do governo Lula durante meses. A que a senhora atribui esse apoio? 

Quando no ano passado o Supremo Tribunal Federal me incluiu, e aí fui a primeira jurista negra a compor uma lista tríplice do Supremo para o Tribunal Superior Eleitoral, o fato de ser primeira acabou trazendo luzes para a ausência de representatividade negra e especialmente de mulheres negras na composição do sistema de Justiça, com destaque do Poder Judiciário. Isso criou naturalmente a expectativa de que eu pudesse ir para o TSE, que também todo mundo sabia que seria muito difícil dado o contexto político daquela época. Quando nesse ano algumas pessoas começaram a trazer à tona essa reflexão e aí os ministros do Supremo Tribunal, ministra Rosa Weber, ministro Edson Fachin, isso foi ganhando corpo, acho que fez eco junto à sociedade, meu nome surgiu, embora não por uma reivindicação, postulação minha, efetivamente não foi, muito pelo contrário. Mas, assim, digamos que era um nome muito natural em virtude do processo anterior, foi o meu nome que trouxe um pouco o processo. Supremo/TSE foi o que trouxe luzes para isso, então era meio que natural que meu nome emergisse. Inclusive quando o meu nome começou a circular foi por uma nota de um jornalista que sequer tem uma relação, então assim, digamos, foi muito natural para olhares externos e aí depois foi ganhando corpo e a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, que eu integro, entendeu que encampar de verdade essa agenda só faria sentido tendo um nome. Foi muito natural, muito tranquilo de que recaísse sobre mim essa indicação, daí foi que eu efetivamente fui colocada no processo, mas não por uma auto candidatura. 

 

Quero compreender da senhora o que representaria para o Supremo e para a sociedade brasileira 130 anos após a criação do STF ter uma mulher negra entre aqueles 11 ministros ocupando uma cadeira independentemente de ser a senhora ou não?

Primeiro, há que ser um perfil de uma representação democrática, assentada numa construção jurídica construída coletivamente também pelos movimentos sociais, pelos debates sobre o racismo no Brasil. Por quê? Porque a prestação jurisdicional do Brasil, toda ela, em qualquer área que você investigue, estude, tem essa clivagem da seletividade racial fazendo sempre a menor, quer pelo acesso quer pela decisão. E aí eu não digo somente na área criminal, que é a mais evidente, diante de um encarceramento em massa que é da juventude negra. Junto com isso você tem a impunidade dos agentes do Estado, dos avanços policiais que matam os negros e que tem a impunidade, significa que há cumplicidade do sistema de Justiça. Você tem na questão da reparação, por exemplo a reparação por danos morais você faça qualquer pesquisa em qualquer tribunal, vai identificar que para os mesmos casos, mesmo que seja numa relação de consumo, a indenização para as pessoas negras é sempre menor. Nossa moral, nossa dignidade humana vale muito menos do que a do branco, então você levar essa reflexão no operar do direito, no interpretar e aplicar a lei e, especialmente, o Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição Federal que tem a dignidade humana como o princípio fundante da própria República, a diferença que isso vai fazer é incomensurável. É para passar a julgar a favor de  A ou B? Não, não se trata disso. É de efetivamente levar um olhar que obriga o pensar sobre as diversidades, é você levar matrizes e referenciais teóricos também diferenciados. Me recordo que quando do julgamento da lei de cotas das universidades públicas, da constitucionalidade daquela política, que o ministro Joaquim Barbosa ainda estava no tribunal e de o ministro Gilmar Mendes ter declarado naquela sessão que aprioristicamente ele tinha uma posição contrária, mas foi o debate, o olhar trazido, levado, compartilhado pelo ministro Joaquim que é negro, que foi que alterou a percepção dele sobre essa questão. Então, assim, é manifesto e tem como legítima a presença de mulheres nos tribunais, e hoje a gente tem de maneira crescente, mas são sempre mulheres brancas. Por que não se entende que o olhar da mulher negra é diferenciado, até porque são experiências muito diferentes? Então o distanciamento das realidades que a elite branca leva para composição do sistema de Justiça, por óbvio que emprenha a interpretação jurídica a partir dessas experiências. Se você pega em Salvador uma pessoa branca, uma mulher branca que nasceu na Graça, que nunca pegou um ônibus para chegar até Itapuã, que não sabe o que que é a insegurança de uma escola pública, a falta de professor, a própria formação escolar educacional lá, vai fazendo o recorte em que o limite do convívio que essa pessoa tem com a realidade do mundo negro é com a empregada doméstica, é com o secto doméstico, muitas das vezes sem sequer ter uma carteira assinada. Na hora que essa mulher branca ou homem branco, mas aí fazendo o recorte mesmo de gênero, independente de ser magistrada na Justiça do Trabalho ou na Justiça comum ou vá para o Supremo Tribunal Federal, então a absoluta insensibilidade dos gravames que é a carência material, o que é o viver da discriminação racial em que muitas vezes a pessoa não te fala meia palavra e simplesmente te discrimina, marcadamente te discrimina. Todos esses debates você faz levando a sua carga existencial. A imparcialidade do magistrado, da magistrada é um preceito constitucional democrático do ponto de vista pessoal. Quando se fala da imparcialidade da magistratura é para leitura interpretativa e aplicação do direito, não é um desprovimento da existência humana. Quer dizer, o meu pensar sobre qualquer assunto, assim como o seu, de qualquer juiz, juíza, é marcado pelas próprias realidades. 

 

Aliada a essa discussão com recorte de gênero e raça, a senhora acredita também que é preciso pensar numa indicação de uma mulher negra que seja ligada ao campo progressista ou isso não faria diferença?

Faz toda a diferença. Eu não tenho nenhum interesse em ter um negro ou uma negra que não tenha esses compromissos democráticos para sacralizar um sistema racista, como o que a gente vive. Não me interessa ter uma promotora de justiça, e aí é importante acrescentar o seguinte, eu tenho batido nisso: esta pauta é irreversível. E quando eu digo que ela é irreversível, não é se o Lula agora não nomear não vai importar no sentido de que isso não vai arrefecer essa agenda. A agenda do enegrecer o sistema de justiça é irreversível. Agora, não me interessa ter uma desembargadora negra que seja antidemocrática, que nega a existência do racismo e que venha vaticinar uma meritocracia porque de repente ela passou no concurso e não fez uso de cota. Quer dizer, esse pensamento não constrói e não avança. Então, essa pauta que é coletiva, que para mim é uma pauta coletiva, ela se assenta nesse laço, na construção democrática. Acho que a representação legítima tem sim um recorte ideológico, não obrigatoriamente partidário no caso do sistema de Justiça, mas ideológico no sentido deste compromisso, desse patamar. É desse ponto de partida que eu saio, é daí que eu me projeto, então fora desse campo não me interessa. Muito pelo contrário, eu acho que atrasa, inclusive, as pautas da negritude, da existência do povo negro.

 

Foto: Arquivo pessoal

 

Como a senhora acredita que esse debate pode sair da bolha da militância e chegar à massa, à sociedade civil de um modo geral, para que de fato seja compreendido o verdadeiro significado de ter uma mulher negra ocupando uma vaga de ministra do STF?

Eu acho inclusive que isso tem saído um pouco, até porque muitas de nós que têm tido nomes lembrados, projetados para isso, temos origens nas classes populares, somos filhas de trabalhadores, operários - meu pai era garimpeiro -, então isso naturalmente acaba por levar até os grandes rincões, grandes no sentido das quantidades. Nossa Bahia, o fato de eu ser de Livramento fez repercutir no interior do estado. Acaba rompendo a bolha. Eu não conheço nenhuma jurista negra que tenha nascido nas classes abastadas. 

 

Falando sobre a questão do TSE que a senhora, como já adiantou, compõe pela segunda vez essa lista tríplice, inclusive, ao lado de uma outra baiana, Daniela Borges, presidente da OAB e uma mulher branca. Como a senhora recebeu novamente esta indicação e a possibilidade de ser a segunda mulher negra no TSE?

Pela segunda vez o Supremo Tribunal Federal trazer meu nome para essa cena, só reafirma uma responsabilidade com esse meu papel de representatividade nesse ambiente jurídico que é tão marcadamente branco e branco masculino. Isso, assim, digamos, alimenta o ego um pouquinho, mas acima de tudo reforça a minha responsabilidade política, social com o impacto disso. O que significa isso? Se o presidente Lula me nomear para o TSE, ter a possibilidade de compor uma bancada histórica, duas ministras, ainda que substitutas, mas duas ministras substitutas negras do Tribunal Superior Eleitoral pela primeira vez…De novo estarei escrevendo a história. Então, recebi com muito orgulho e com esse peso dessa responsabilidade, o que também ao mesmo tempo elevou a visibilidade do meu nome para essa agenda do próprio Supremo. Se eu tiver que me definir por uma única palavra, me definir como pessoa cidadã, jurídica, mulher negra, ativista profissional do direito, se eu pudesse usar uma: institucionalidade. O fato de não ser de origem dominante, nem da raça nem da classe dominante, me fez ter sempre um senso de institucionalidade desse ambiente que é o meu universo de trabalho, que acaba sendo também o meu universo de convívio social em boa medida, me imbuiu muito essa responsabilidade que eu tinha que ter responsabilidade, de não poder errar, não vacilar, então, assim, ter trabalhado como advogada, jurista na esfera pública em governos em que eu era assumida e declaradamente de oposição. Por exemplo, no governo Fernando Henrique eu fui coordenadora jurídica do Departamento Nacional de Trânsito no momento muito peculiar da implantação do novo código de trânsito. Eu fiquei nessa função por cerca de três anos, eu passei por nove diretores do departamento e cinco ministros da Justiça, porque na época o Denatran era vinculado ao MJ. E eu era filiada ao Partido dos Trabalhadores e todo mundo sabia, eu era dirigente partidária, já fui delegada do PT junto ao próprio TSE. Isso fazia com que eu exigisse de mim níveis muito absurdos de cuidado com o meu trabalho e como chefe eu tinha que responder pelo trabalho de toda a equipe, então isso fez de mim uma profissional sempre muito exigente, muito criteriosa. Com esse senso de institucionalidade muito forte. E também precisamos ter a tranquilidade de saber entrar e sair desses espaços, sem deixar mágoas, sem pisar em ninguém, sem atropelar nenhum processo, respeitar todas as pessoas pelas quais eu passo. Enfim, então estou vivendo com muita tranquilidade esse processo.

 

A senhora falou sobre a construção de uma bancada histórica. É sobre também garantir que esse espaço não seja um espaço único, ocupado por um único negro ou uma única negra sempre?

Essa semana o ministro Benedito Gonçalves, que tinha assento como STJ, venceu o período e assumiu uma ministra branca. Isso significa que a gente vai ter, sei lá, um século mais para ter um ministro negro no STJ até chegar ao ponto de ter assento no Tribunal Superior Eleitoral, vai ser coisa assim sei lá de quantos anos, projetando no futuro. Porque não tem um único. Benedito entrou no STJ foi no governo Lula e continua sendo o único. Não tem nenhum tribunal, nenhum Tribunal Regional Federal que tenha uma desembargadora federal negra. Só tivemos até hoje a desembargadora federal negra, a desembargadora Neuza [Maria Alves], daí da Bahia, no TRF-1. Se você projeta, de pensar em perspectiva, essas projeções são funestas. Você não tem no Ministério Público Federal um único negro no país, um procurador da República negro ou um subprocurador, não temos. Então, assim, tudo deu errado nesse país, tudo deu errado porque esses níveis de desigualdade não podem ser naturalizados. Ou você se investe da vontade política, do compromisso político de dar concretude e materialidade à Constituição Federal, ou ela vai continuar sendo uma letra morta. Tomo até muito cuidado na hora de usar a palavra nação, porque eu acho que a gente nunca constituiu uma nação. Eu não posso pensar que uma nação seja essa expressão de exclusão que é a realidade brasileira. A gente tem o território, a gente tem o povo, a gente não tem exatamente uma unidade nacional, porque senão eu tenho que concluir que a unidade nacional é para exterminar o povo negro. Porque as margens de exclusão, de marginalização, de miserabilidade que nos impõem são muito cruéis, são muito perversas.

 

A senhora fez projeções. Se pudesse idealizar o sistema de Justiça brasileiro ideal para os próximos anos, qual seria? Se puder definir, partindo desse princípio.

Em termos ideais e a utopia existe exatamente para que a gente persiga, para que a gente busque a idealidade, nós somos 56% da população brasileira. Então, por que eu tenho que ser tão sub representada? Tão sub representada que não chega nem no tracinho, aquela coisa da pesquisa. Porque é disso que se trata, não da minha perspectiva e minha prospecção de futuro. 

 

Para finalizar eu queria que a senhora comentasse sobre o trabalho desenvolvido junto à Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

A ABJD é uma entidade muito inovadora. Primeiro, porque ela reúne todos os segmentos das carreiras jurídicas, a partir do estudante. Ela tem essa singularidade pela pluralidade. É a única que reúne de fato todos os segmentos. A gente tem uma organização horizontalizada. E é uma entidade que nasceu exatamente por uma demanda, por uma real necessidade de defesa do Estado democrático de direito, contra o golpe que depôs a presidenta Dilma em 2016. Nós fizemos uma campanha belíssima, a campanha “Moro Mente”, denunciando os crimes da Lava Jato, os abusos e arbítrios da Lava Jato, as ilegalidades da prisão do presidente Lula. Então, é uma entidade naturalmente desvinculada de qualquer partido político, mas que se colocava dentro dessa pauta porque a defesa da liberdade do presidente Lula era a própria defesa do Estado democrático de direito, diante das fragrâncias que víamos naquele processo forjado para prender o Lula e tirá-lo do processo eleitoral, como se consolidou. Quando a gente viu culminando com o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal das ilegalidades cometidas pela ausência da imparcialidade do juiz [Sergio] Moro, ou seja, a parcialidade que o fazer ativo do juiz Moro, em articulação com membros do Ministério Público, da Polícia Federal, para forjar situações, provas para fazer prisões, forçar delações que somente eram aceitas se pudessem implicar e responsabilizar o presidente Lula, a ABJD se tornou uma entidade central nesse debate, nessa articulação de força em defesa da democracia. Então fazer parte desde o nascedouro da ABJD é uma coisa que me envaidece. Muito me orgulha. 

 

Quais os impactos que a senhora acredita que a ABJD deu tanto no mundo jurídico quanto na relação do sistema Justiça com a política?

Eu não chamaria de relação da Justiça com a política. Óbvio, a democracia é intrinsecamente um fazer político. O Estado democrático de direito é o espaço jurídico-político que você dá ao país. O Brasil é um estado democrático de direito, então é o espaço jurídico-político que se confere ao país. Então, assim, a política no sentido do exercício da cidadania, da democracia e da nossa função estatutária, mas não o político com qualquer espécie de recorte partidário, daí a importância é tamanha que, por exemplo, hoje, a gente tem o julgamento de uma ADPF no Supremo Tribunal Federal, a 973, que debate o Estado racista que é o Brasil e a demanda da promoção de políticas de combate a esse racismo, e a ABJD se somou ao processo como amicus curiae. Ou seja é um enraizamento, entrelaçamento com o movimento social negro, com a Coalizão Negra por Direitos, e por sermos juristas não nos limitamos ao universo da organização do sistema de Justiça. Nós somos uma entidade democrática, exatamente, porque postulamos a efetividade do exercício da cidadania, o respeito à dignidade humana. Esse trabalho que a gente tem em questão conjunta com o MST, com as várias organizações progressistas democráticas, o Fórum Social Mundial, Justiça e Democracia, a gente tem um diálogo muito articulado com todas as forças vivas e defensoras do Estado democrático de direito.