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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Mulher ser presidente da OAB não deveria chamar a atenção, diz Daniela Borges

Por Cláudia Cardozo

Mulher ser presidente da OAB não deveria chamar a atenção, diz Daniela Borges
Fotos: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

Após 90 anos, a Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia (OAB-BA) teve Daniela Borges como a primeira presidente da instituição. Ao Bahia Notícias, ela revelou que seu trabalho é uma tarefa desafiadora, mas se sente representando muitas mulheres.

 

“E isso vem de um trabalho dos últimos anos, de tantas mulheres que vieram construindo isso, e de homens aliados também. Eu digo sempre: as mulheres são protagonistas dessa história, das suas próprias lutas”, afirmou. 

 

Segundo Daniela, essa representatividade feminina é importante e homens precisam ser agregados no processo de transformação para que seja possível construir uma sociedade mais igualitária. Ela ainda ressalta que o fato de ter uma mulher à frente da seccional não deveria ser uma coisa para chamar atenção, e sim algo natural, mas esse fato é algo que marca devido todas as seccionais do Brasil terem homens no comando durante 90 anos.

 

Como estão sendo esses primeiros meses de gestão?

Muitos desafios, mas acho que a gente já está demonstrando a nossa capacidade de realizar e fazer muita coisa mesmo em tão pouco tempo. Eu primeiro tenho um trabalho mesmo de estruturar, né? A gestão, as comissões, nosso Tribunal de Ética, as posses, né? Em cem dias nós estivemos em 32 subseções. Isso é um valor para essa gestão, esse compromisso de avançar ainda mais na atuação da seccional junto à advocacia do interior e entender a importância, de encontrar a advogado do interior, olhando nos olhos, apertando a mão. A gente passou esses primeiros 100 dias com esse compromisso, de estar no interior participando da posse dos presidentes das subseções e, ao mesmo tempo, cuidando de todo o resto, de todas as atividades diárias e cotidianas da OAB e também de enfrentamentos. 

 

No primeiro momento, tivemos tratativas muito importantes com os poderes - Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria - temos dialogado com os atores do sistema de Justiça e temos assistido a mudança na mesa diretora do TJ-BA, com o novo presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, também com perspectivas da gente contribuir, cooperar ainda mais pros desafios do tribunal que são estruturantes. Temos feito um trabalho de diagnóstico, um trabalho apontando os problemas, realizando audiências públicas, pois nós temos um problema seríssimo hoje em Salvador nas varas de família. Já fizemos duas audiências públicas, inclusive já com alguns resultados do que encaminhamos para a Corregedoria e na defesa das prerrogativas. Eu digo sempre que o nosso desafio é pegar o bastão e correr ou fazer o máximo, o melhor possível, para daqui a três anos passarmos com mais avanços ainda. Hoje, já temos um sistema de defesa de prerrogativas estruturado fruto, com base no trabalho feito nos últimos anos por Fabrício, por Luiz, Viana, mas temos projetos para estruturar ainda mais a nossa capacidade de defesa das prerrogativas da advocacia. 

 

Em entrevista ao Bahia Notícias, Fabrício Castro afirmou que sua gestão seria nova, totalmente diferente do que já havia sido feito. O que sua gestão traz de novidade?

Primeiro, eu acho que tem o valor da representatividade e diversidade dessa gestão, dentro de uma perspectiva de gênero, de raça, porque a gente tem cotas, e a OAB da Bahia cumpriu mais do que os 30% exigidos nas eleições. A gente criou uma coordenação de diversidade e inclusão para pensarmos isso de maneira transversal em gestão. Não queremos discutir representatividade e inclusão e diversidade apenas de maneira estanque. Mas em todas as ações da OAB. Criamos essa coordenação para pensar também essa diversidade quando eu falo, por exemplo, do interior, para fortalecer a presença da advocacia do interior representada no conselho. A jovem advocacia, por exemplo, vive as diferentes realidades da profissão. Hoje, tem o advogado associado que vive desafios muito próprios do ser associado, como a gente tem um advogado empregado, a gente tem um advogado que montou o seu próprio escritório e é um pequeno escritório. Eu digo que a nossa proposta, o nosso trabalho é para atuar em todas as frentes, a gente recebeu já algumas associações, por exemplo, de procuradores de advogados públicos. Advocacia pública tem suas particularidades. Então a gente tem essa forma, esse olhar, né? Para esse diverso, para esse plural.  E eu acho que tem uma outra coisa também que eu sempre digo que são as nossas metodologias de resolver o problema, no caso concreto, mas é preciso pensar na estrutura, no macro. O que a gente pode fazer pra que aquilo não aconteça mais? Então, o advogado teve um problema de violação de prerrogativa, vamos chegar juntos, se tiver que entrar com uma denúncia em relação a crimes de abuso de autoridade, vamos lá, vamos resolver. Mas qual foi o problema? Foi algo estrutural, e o que que nós  podemos fazer para que, ao final desses três anos tenhamos transformações? A gente não tem a caneta, mas a gente tem força. A gente pode usar essa força, essa energia para mudar de estruturas. 

 

O TJ-BA poderia titularizar logo os juízes empossados recentemente para convocar mais magistrados?

Na  verdade, existe uma série de estudos sobre isso, e um deles, que pode demandar de alteração legislativa. Não é uma coisa impossível, no sentido de se permitir a nomeação de magistrados, servidores e oficiais de Justiça. A questão toda é que a titularização faz com que o magistrado tenha direito à assessores, e quando se faz isso, aumenta o custo da folha naturalmente, e isso diminui a disponibilidade de receita para novas nomeações. E isso é um olhar para a questão. É complexo. E além disso, o Estado da Bahia tem adotado uma postura conservadora em relação ao orçamento, que pode, por um aspecto ser passível de elogio, que o estado está preocupado em não gastar mais do que o que arrecada. E a previsão de receita é conservadora. Mas o Estado tem arrecadado mais do que o previsto. Quando ele prevê a arrecadação como menor, ele joga o limite de gastos do TJ-BA para baixo. Tenho visto que o TJ tem feito um estudo sobre isso, de uma forma técnica, cuidadosa. Me parece que terá algum encaminhamento dentro dessas possibilidades. E tem algumas liminares que estão saindo para a nomeação. O TJ vem nomeando alguns magistrados e servidores, frutos dessas ações.

 

Sobre os números de produtividade, o CNJ precisa rever esses dados? O TJ-BA precisa rever os mutirões de sentenças e baixas?

Não é nem os mutirões em si. Acho que o problema maior é quando se observa uma energia sendo gasta para fazer movimentação no processo simplesmente para gerar um número. O processo está concluso para sentença, ele deixa de ser concluso, para gerar uma movimentação, para não passar ali do prazo. Isto não está correto. O processo está concluso. E isso dificulta até a ida do advogado à Corregedoria para reclamar, pois tem o prazo médio de 100 dias parados. Essa energia poderia ser utilizada para analisar pedidos urgentes, por exemplo. Essa questão da urgência é algo muito sério.

 

Recentemente, fizemos audiências públicas sobre as Varas de Família. Esses pedidos são muito urgentes. Eu fico tocada porque é uma área na qual a solução do conflito ser rápida e é muito importante, porque quando o processo se prolonga, você vai perpetuando o conflito, multiplicando, agravando a situação das pessoas da família. Você tem uma série de entraves. Discutimos sobre a importância de ter um plantão ou algo que se dê um tratamento especial a aos pedidos de urgência dentro das varas de família. Temos muitos problemas estruturais e o que me preocupa, às vezes, é ver algumas varas, alguns magistrados que fazem o movimento de querer fechar as portas. Está muito difícil, o volume está muito grande, está faltando magistrado, está faltando servidor, então vamos diminuir o número de ação, vamos diminuir o número de ações…isso é muito sério, porque a Justiça é um serviço público essencial. A gente não pode trabalhar dentro dessa perspectiva, de inibir as pessoas a entrarem com ações. Outro exemplo disso é na área do consumidor.  Estamos vendo isso nos Juizados e Turmas Recursais, em que estamos com um problema seríssimo, porque está se negando o direito da advocacia à sustentação oral. Estão, na verdade, esse direito da advocacia de fazer sustentações orais e é interessante observar que os danos morais ínfimos é, de maneira generalizada, e como ele vem sendo feito numa lógica de desestimular as pessoas a entrarem com ações. Na verdade, termina-se não garantindo a efetividade do direito do consumidor. Agora, nós temos magistrados condenando por litigância de má, tem magistrados aplicando multas que indicam que são situações de querer se fechar as portas.

 

Qual o posicionamento sobre as sessões em formato híbrido?

 Esse pra mim hoje é o tema do momento. Vamos discutir isso em uma audiência pública com a advocacia. Uma parte da advocacia e da magistratura gosta muito da audiência virtual e quer que essa audiência virtual permaneça. Mas permanecer como? Por outro lado, há inúmeras situações em que isso pode levar a um prejuízo ao amplo direito de defesa e contraditório. E quem é que pode avaliar? Me preocupa muito, mas estamos analisando, pois é o advogado que garante a ampla defesa e o contraditório e cabe ao juiz julgar. Para mim, essa audiência virtual poderia ser pactuada previamente entre as partes do processo. Acho que ela pode ficar, mas dentro de um contexto em que o advogado entenda que não há um prejuízo contraditório. Porque se houver audiência virtual, ela não pode vir imposta pelo Poder Judiciário. Quando a gente fala da importância do advogado escolher é porque ele vai analisar de acordo com as necessidades daquele caso. Eu acho que existem audiências que são tão simples, audiência de conciliação, nenhuma das partes tem interesse em conciliar, então tem inúmeras situações que a gente de fato percebe que não há prejuízo nenhum. Agora existem situações em que é possível que isso aconteça. Então a área trabalhista é um excelente exemplo para isso. Né? A gente tem a prova testemunhal como algo muito importante. Se os advogados entenderem que não há prejuízo ao trabalho deles, ampla defesa e o contraditório é diferente disso ser imposto por juiz.

 

Levou 90 anos para a OAB da Bahia ter a primeira mulher como presidente. Como você tem sentido isso?

É muito difícil.  É importante dizer isso porque senão fica parecendo que é fácil, né? Não é, tem sido bastante desafiador. Eu fico muito feliz de que isso, apesar de ter demorado 90 anos, mas ao mesmo tempo assim, feliz por isso ter vindo dentro de uma construção. Construção de outras mulheres, de um grupo que já vinha afirmando isso como valor. Isso pra mim torna mais especial, no sentido assim, poxa isso é o resultado de um trabalho, isso é resultado de afirmação de um valor, de uma construção. Eu me sinto representando muitas, pois em números absolutos, as mulheres já são a maioria da advocacia na Bahia no Brasil também. E isso vem de um trabalho dos últimos anos, de tantas mulheres que vieram construindo isso, e de homens aliados também. Eu digo sempre: as mulheres são protagonistas dessa história, das suas próprias lutas.Mas é muito importante que a gente agregue os homens dentro desse processo, porque não conseguiremos construir uma sociedade mais igualitária se os homens também não estiverem inseridos nesses processos de transformação. Isso não deveria ser uma coisa para chamar atenção,  mas chama por quê? Porque em todas as seccionais do Brasil durante 90 anos, sempre foram homens presidentes e vice homens ou uma mulher presidente e um vice homem, em dez casos até triênio passado. Então realmente marca, né? A gente tem a primeira seccional com três mulheres na diretoria. 

 

Às vezes, uma mulher vira para mim e pergunta como eu consigo. Eu mudei a frase para não parecer que é tudo perfeito, que dou conta de tudo. A gente idealiza que as mulheres podem ser uma mulher maravilha e dar conta de tudo, maravilhoso. Então, aquela mulher que não alcança aquele ideal, ela se sente uma impostora. Eu me questiono como é que eu posso contribuir para essa pressão não aumentar. Nem sempre eu dou conta de tudo, eu tenho uma grande rede de apoio sem a qual não conseguiria, desde família, até funcionários, pessoas que trabalham comigo e mesmo assim está difícil. Mas é possível, e, ao mesmo tempo me faz seguir, me remete sempre para essa responsabilidade de poder estando nesse espaço, garantir condições para que outras mulheres estejam. Porque eu tenho certeza, que muitas mulheres no meio do caminho desistem por causa desses obstáculos. Eu presidi a Comissão Nacional da Advogada, eu tive vários depoimentos de advogadas que relataram que abriram mão de promoções, que às vezes deixaram de advogar quando se tornaram mães… E você pensa assim: não, a maternidade é uma escolha. Claro, nem toda mulher vai escolher ser mãe e toda mulher tem o direito, mas quando ela escolhe, de repente, se torna algo que também dificulta a realização profissional.

 

A OAB tem que ser exemplo para a sociedade no sentido da paridade de cotas por gênero? O Legislativo precisa garantir 30% das vagas e não 30% das candidaturas para mulheres?

Eu como presidente da OAB da Bahia não teria tido a força que eu tive se ao defender a paridade de gênero como algo obrigatório nas eleições da OAB, se a Bahia não tivesse paridade. Porque ninguém podia dizer que eu não tinha feito o dever de casa, né? Eu chegava e dizia: olha, eu estou defendendo o que eu já pratico. Então, a OAB hoje, ela tem condições de chegar em qualquer espaço e falar sobre a representatividade feminina, especialmente na política. Isso é muito importante porque eu digo sempre hoje na OAB que antes, éramos grupo de pressão. Nós agora nos tornamos grupo de decisão. A gente participa do processo de decisão. É diferente. E quando a gente olha o Congresso Nacional, que tem uma representatividade feminina de apenas 15%, e que o Brasil é o penúltimo país na América Latina em presença de mulheres no Poder Legislativo, isso é um absurdo. E isso é um absurdo porque estamos falando das leis que afetam as nossas vidas e que são elaboradas sem a nossa força. Eu dou aula, sou professora de Direito Tributário e advogo na área tributária e é uma área que as pessoas falam que há neutralidade de gênero, e eu tenho um estudo justamente com um grupo de pesquisa na Ufba falando sobre tributação e desigualdades, mostrando que mesmo na tributação você tem diferenças. O olhar na declaração de imposto de renda tem algumas questões de dedução, pensão alimentícia que você vê que foram homens que participaram do processo de elaboração daquelas leis. Quando você tem alíquotas elevadas sobre produtos consumidos prioritariamente por mulheres, como a tributação dos absorventes - tipo um produto essencialíssimo para mulher num país onde se tem a pobreza menstrual. Não há neutralidade. Daí a importância das mulheres estarem nos espaços participando do processo de decisão e de elaboração dessas leis que afetam suas vidas.