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Entrevista

Parte da elite acha que o Judiciário virou uma rodoviária, critica chefe da Defensoria na Bahia

Por Cláudia Cardozo

Parte da elite acha que o Judiciário virou uma rodoviária, critica chefe da Defensoria na Bahia
Fotos: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

Na última semana, a Defensoria Pública obteve uma vitória importante no Supremo Tribunal Federal: continuar requisitando documentos em favor da população mais vulnerável. Em entrevista ao Bahia Notícias, o defensor público geral do Estado, Rafson Ximenes, afirmou que o caso chegou ao STF para tentar restringir o acesso da população mais pobre ao Judiciário.

 

“O Supremo Tribunal Federal entendeu que esse instrumento não tinha nenhuma razão de ser retirado do texto legal”, declarou. “Agora, para além desse caso específico, o que eu percebo bastante - e isso eu posso afirmar -  é que a presença da Defensoria Pública, a chegada da Defensoria Pública, traz benefício para população, mas também tira as coisas do lugar que elas estavam sempre acostumadas, porque as pessoas acostumaram com a ideia de que pessoas em situação de pobreza não têm voz. O que elas não podem falar, que elas não podem ter acesso à justiça, que elas não podem defender o direito delas. Mais ou menos como aconteceu alguns anos atrás quando começou a se dizer que o aeroporto está virando rodoviária. É como se dissesse agora que a Justiça está virando uma rodoviária”, criticou.

 

Ainda na entrevista, o defensor-geral da Bahia, aborda a necessidade de estruturação da Defensoria, de mais defensores, de aumento no orçamento da instituição e da preservação e melhoria das políticas de cotas raciais.

 

O que representa essa vitória no Supremo Tribunal Federal (STF) para a Defensoria Pública, sobre a prerrogativa de requisição?

Sobre a requisição, tem algumas coisas que temos que colocar para ficarem bem claras para a população entender. Primeiro: eu não diria que foi uma vitória na Defensoria Pública, foi uma vitória da população brasileira. Principalmente de quem tem menos recursos financeiros. E a requisição não era exatamente um poder. Ela é uma prerrogativa e é principalmente um instrumento. Como é que funciona isso para as pessoas entenderem o que estamos falando: uma pessoa em situação de pobreza está com problema de saúde e não está conseguindo fazer um tratamento, não está conseguindo fazer uma cirurgia, não está conseguindo fazer um um procedimento. Como ela não consegue, ela procura a Defensoria Pública para judicialmente conseguir esse resultado. Nesse momento, normalmente essas pessoas não têm um relatório médico adequado, não sabem exatamente como fazer e não têm condição de procurar um médico que a examinou e fazer com que ele passe atestado. Quando a pessoa é de classe média, normalmente, ela liga pro médico, no celular do médico e fala ‘eu preciso de um relatório que diga isso, isso e isso’. Isso não acontece com a pessoa que não tem recursos financeiros. E como é que se resolve esse problema? A Defensoria Pública requisita do médico, do hospital, de quem dá, de quem for uma pessoa responsável que apresente o relatório da forma que é necessária. Através disso é possível, às vezes, resolver o problema sem nem ter que entrar com ação judicial. Já se consegue o tratamento antes. E, principalmente, isso é resolvido de uma forma rápida. Aqui na Bahia, em média, se resolve em doze dias. Isso que eu dei foi um exemplo da saúde, mas está em várias, na área da educação, está na área de atuação coletiva. Na verdade, o que se propunha era que esse instrumento fosse retirado, e que a partir disso, a quantidade de demandas judiciais aumentasse, se tivesse menos documentos para chegar ao resultado, e consequentemente as pessoas em situação de pobreza teriam menos direitos reconhecidos e quando fossem reconhecidos iria levar mais tempo. Era isso que estava sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal. E, felizmente, por dez a um, o Supremo Tribunal Federal entendeu que esse instrumento não tinha nenhuma razão de ser retirado do texto legal. 

 

E como foi que isso chegou ao Supremo? Por que se tem esse interesse em enfraquecer a Defensoria Pública? 

Falando especificamente desse caso, da requisição, pode ter havido uma interpretação do procurador-geral da república nesse sentido e é legítimo ele fazer interpretação. E o argumento utilizado é que isso seria um desequilíbrio de forças entre a Defensoria Pública e as pessoas defendidas pela Defensoria e as pessoas defendidas por advogados particulares. O que, sinceramente, não faz nenhum sentido, porque parece sugerir que o problema do sistema de justiça brasileiro é que as pessoas pobres têm força demais e as pessoas ricas têm força de menos. Agora, para além desse caso específico, o que eu percebo bastante - e isso eu posso afirmar -  é que a presença da Defensoria Pública traz benefício para população, mas também tira as coisas do lugar que elas estavam sempre acostumadas, porque as pessoas acostumaram com a ideia de que pessoas em situação de pobreza não têm voz. O que elas não podem falar, que elas não podem ter acesso à justiça, que elas não podem defender o direito delas. Mais ou menos como aconteceu alguns anos atrás quando começou a se dizer que o aeroporto está virando rodoviária. É como se dissesse agora que a Justiça está virando uma rodoviária. Porque as pessoas pobres, de repente, que estavam acostumadas a sofrerem caladas, estão reclamando na justiça. E claro que isso traz incômodos para quem estava acostumado a desrespeitar direitos e não ser questionado, por exemplo.

 

Há oito anos, foi promulgada a Emenda das Comarcas, que prevê que cada comarca tenha pelo menos um defensor público. Como é que está essa situação aqui na Bahia?

A gente está presente em 54 comarcas, sendo que são 41 delas com defensor fixo. E treze com o defensor atual de substituição, em que ele vai para a comarca, mas ele é titular de outra. Tem ainda quatro comarcas que a gente já teria defensor para colocar, mas nesse período da pandemia a gente interrompeu o processo de inauguração que pretendemos voltar esse ano. A Bahia tem 203 comarcas. Então, 54 ainda é um pouco mais de um quarto da Defensoria. Em um período de sete anos, a gente mais do que dobrou a cobertura da gente. Tínhamos uma perspectiva, inclusive, de ter avançado mais nesse período. A pandemia atrapalhou nesse sentido também. Mas de qualquer forma, nós abrimos o concurso. Ele está sendo finalizado agora. Um concurso seletivo. Fizemos um concurso muito direcionado para tentar apontar para os candidatos qual é a missão que eles vão ter - inclusive na prova oral do concurso. 

 

E o orçamento da Defensoria?

Ainda temos um orçamento muito inferior ao que deveria ter na Defensoria da Bahia. Nosso orçamento hoje é cerca de um terço do orçamento do Ministério Público. Não tem nenhuma razão lógica para isso. Porque a necessidade de defensores é tão grande quanto a necessidade de membro do Ministério Público. A necessidade de estrutura é semelhante. Ao longo dos últimos anos o orçamento da Defensoria Pública tem crescido mais do que o de outras instituições. Mas um percentual muito pequeno pra tirar a diferença. Então quando você tem um terço do orçamento do outro, o seu crescer 15% e enquanto do outro 10%, não muda o quadro geral. Não é suficiente para mudar o quadro geral. E o prazo da Emenda 80  termina em junho agora. É um fato que a Bahia não vai conseguir cumprir a meta da emenda. Não vamos conseguir ocupar em seis meses setenta e cinco comarcas no estado. Mas ainda que não cumpra, é fundamental ter um plano para cumprir, como apontou o Tribunal de Contas. Desde 2018, a Defensoria tem um plano de como vai se organizar e escolher os critérios para dotar mais comarcas. Mas sem orçamento,  não tem como cumprir. Sem recurso financeiro, não tem como cumprir. 

 

A pandemia prejudicou muito o trabalho da Defensoria?

 A defensoria foi especialmente castigada. Especialmente porque a pandemia aumentou a necessidade de cuidado com as despesas, e estávamos num período de crescimento. 

 

Como foi essa organização de atendimento dessa população na pandemia? 

 Eu sempre falo que, para mim enquanto gestor, foi o aspecto mais sofrido. Por um lado existe um vírus que está atacando o mundo inteiro e que era evidente que havia necessidade de medidas de isolamento, de medida de precaução, de medida sanitária, mas principalmente no início, no primeiro momento, o isolamento. Era necessário fazer. Então, quanto mais pessoas pudessem ficar em casa, era melhor para combater o coronavírus. Por outro lado, a gente tem consciência que a Defensoria Pública é uma instituição que a trabalha com atendimento direto ao público e é um público que parte dele não adianta dizer que tem acesso por telefone, que tem acesso pela internet, porque eles não vão conseguir acessar. As pessoas, às vezes, não sabem dizer qual é o problema delas. 

 

Como está sendo o atendimento da Defensoria neste momento, já que parte do Judiciário estava fechado?

Pudemos voltar agora porque é um serviço essencial. Pudemos assumir o risco de voltar. Mas esse período foi extremamente doloroso. Você não sabe como doía ver numa publicação do Instagram da Defensoria sobre qualquer tema, alguém falar que ligou e não conseguiu atendimento. Isso dói muito. Mas infelizmente, foi necessário. E eu peço até desculpa para população por esse problema que ela passou, e eu espero que isso volte a se normalizar agora. Mas repito, a gente não recebeu nenhum recurso extra para fazer uma adaptação, para contratar mais gente, para ter mais linhas de telefone, mais nada. E o nosso orçamento sempre foi deficitário, ainda assim, a gente fez uma adequação para fazer o melhor serviço que a gente podia fazer, e estamos voltando agora. Todo sistema de justiça voltou ao trabalho remoto, menos a Defensoria. 

 

Vocês acham que essa não abertura do Judiciário prejudica o trabalho da instituição?

 Eu não acho que é o dia a dia do Judiciário que prejudica, mas prejudica no momento em que vai acontecer uma audiência por meio remoto e eu sei que é o meu assistido que tem mais dificuldade para acessar esse meio remoto. Nesse sentido prejudica. Ao menos que se crie estruturas para que a pessoa que não tiver acesso ao computador, que não tenha acesso à internet, que queira ir, que ela possa ir presencialmente. Só que mesmo assim, tem alguns outros cuidados que isso tem acontecido. Por exemplo, numa audiência criminal. Como é que você sabe que uma testemunha não está ouvindo o depoimento da outra? Você não sabe, mas elas podem estar na mesma, elas podem estar na mesma casa. Elas podem estar em quarto diferentes, na mesma casa. E você não tem como saber isso. Você não tem como saber qual é o resultado disso. Isso compromete o resultado do julgamento. E não só isso, é porque uma testemunha não pode ouvir o que a outra falou, mas ela não pode querer repetir o discurso da outra. E às vezes a estratégia tanto da defesa quanto da acusação é demonstrar que a testemunha não está falando a verdade, porque a outra comprovou que ela não estava. A regra tem que ser o atendimento presencial. Você pode ter situações excepcionais que justifiquem o trabalho remoto. Mas a regra tem que ser presencial. Porque o juiz tem que ver quem é a pessoa que ele está julgando. Ele tem que conseguir olhar o olho dessa pessoa, sentir o cheiro dessa pessoa, saber que alguém de carne e osso que está ali. 

 

Sobre a audiência de custódia, como está o funcionamento nesse período de pandemia? Já estão acontecendo de forma presencial?

A nossa luta é para que siga o rito presencial. Uma das funções da audiência de custódia é o juiz olhar também. E a pessoa quando a pessoa dizer: ‘olha, eu fui agredido quando fui preso’. E para que ela possa mostrar: ‘Está aqui, oh, a marca, está aqui’. Isso não vai acontecer na videoconferência. A custódia é um mecanismo de civilidade mesmo. Que vem de tratados internacionais. Não foi invenção no Brasil. Muito pelo contrário. A maioria dos países do mundo já aplica isso há muito tempo. E que o fundamento dela é esse: é humanizar, é lembrar que a pessoa que está sendo julgada é um ser humano igual juiz, igual promotor, igual defensor, igual a jornalista, igual a todo mundo.

 

Esse ano a política de cotas raciais será revista. A Defensoria Pública da Bahia já garante a reserva de cotas em seus concursos. Qual o posicionamento atual da instituição para a preservação da política de cotas?

 Acho que tem que ser ampliado e acho que tem que sempre ser refletido a forma de melhoria da política. A implantação na Defensoria Pública da Bahia foi feita em 2017.  Foi o primeiro concurso em que fizemos reserva de vagas para população negra, não tinha para população indígena ainda. Usamos como base legal o Estatuto da Igualdade Racial, com  30% de vagas para a população negra no resultado final. Mas qual foi a mudança que a gente fez: percebemos que o resultado não era muito efetivo. As pessoas que foram aprovadas pela reserva de vagas também eram aprovadas pela ampla concorrência. Então, a cota não estava fazendo muita diferença. E a gente mapeou e identificou que isso aconteceu porque na área concursos, eles começam na primeira fase, com 9 mil candidatos. Dessa primeira fase, passam para segunda, trezentos ou duzentos aprovados. Então, primeiro é um corte definitivo mesmo, é esse aí da primeira fase. E aí, a partir das fases seguintes, aquele número que era de duzentos é reduzido, às vezes, para 150. E como a reserva de vagas era aplicada só no final, não fazia nenhuma diferença. Então o que que a gente fez? A Defensoria na Bahia começou a aplicar a reserva de vagas desde a primeira fase. Isso deu uma efetividade muito grande para o nosso concurso. O resultado final foi muito mais forte. A reserva de vagas para população negra tem mudado a cara da Defensoria Pública, e um exemplo disso aqui é que, na minha recondução,  isso foi pauta. Qual vai ser a política de combate ao racismo na Defensoria Pública? Foi pauta. Nunca tinha acontecido isso. Em eleição nenhuma de defensor público geral. Isso já é reflexo de ter aumentado a quantidade de defensores e defensores negros. A nossa expectativa em relação aos povos indígenas é a mesma.