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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

'A advocacia é uma classe sexista e racista', critica advogada militante

Por Bruno Luiz

'A advocacia é uma classe sexista e racista', critica advogada militante
A advogada Sílvia Cerqueira | Fotos: Virgínia Andrade / Bahia Notícias
Nesta terça-feira (11), Dia do Advogado e do Magistrado, o Bahia Notícias traz a visão de um setor com pouco espaço e voz no Judiciário brasileiro: a advogada mulher e negra. A baiana Sílvia Cerqueira se afirma como uma das poucas advogadas negras em um "espaço verdadeiramente branco" e masculino, situação que a faz, em 36 anos de sua carreira como causídica, militar pelo protagonismo das mulheres negras na advocacia. Palestrante no evento "Mulheres em Movimento na Advocacia Baiana", que será promovido pelo Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) na próxima quarta-feira (12), Sílvia falou, em entrevista ao Bahia Notícias, sobre sua participação na iniciativa e relatou suas experiências como advogada e militante dentro da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA). Para ela, a instituição é “sexista e machista” e não se interessa por dar às mulheres e aos negros maiores e melhores espaços internamente. A advogada também relata sua frustração em saber que, por ser negra, talvez “nunca chegue à presidência da OAB”. Ela, que também é membro do Instituo dos Advogados da Bahia (IAB), alerta: “Enquanto essa pecha do racismo permanecer, nós teremos uma sociedade doente. Precisamos de uma sociedade que respeite a diversidade”.

Você fará uma palestra na próxima quarta-feira (12), no Instituto dos Advogados da Bahia (IAB), com o tema “O empoderamento da mulher na advocacia”. Como a senhora avalia este processo de empoderamento na Bahia e no Brasil?
Este é um tema que eu já persigo há algum tempo, tanto que escrevi o livro “Poder de saia na Bahia do século XX”, no ano de 2000, que foi uma tese minha de especialização. Sempre vi que, apesar de a medida que o tempo vai passando nós ocuparmos espaços, e nós temos ocupado espaços sim, essa questão do poder, também na OAB, nós mulheres estamos muito distanciadas dele. E por uma razão muito simples: é uma coisa direcionada mesmo. Uma questão que também é histórica e cultural, e isso se reflete nesses espaços. Eu vejo que existe ainda um distanciamento muito grande das mulheres, feito pela própria instituição, que embora se afirme como um espaço democrático, na verdade, não foi um espaço que possibilitasse absorver a mulher nesse exercício dos cargos maiores, como diretoria dos conselhos. Fui conselheira federal, mas como suplente. Quando eles resolvem abrir o espaço, a mulher é vista como aquela que vai fazer as atas, a pessoa que cuida das letras bonitas, ainda que você seja uma pessoa que tenha a mesma formação dos homens.  Isso você vê em todos os espaços e na Ordem dos Advogados não é diferente. O poder que eu persigo não é qualquer poder, é o poder de decisão, é o poder econômico, é o poder na cúpula das grandes instituições, é ser protagonista enquanto mulher. E nesse processo a gente vem participando da Articulação de Mulheres Brasileiras, tivemos grandes vitórias, como a criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, a criação das Delegacias de Proteção à Mulher e, logo em seguida, veio uma grande conferência da ONU em Beijing, que foi onde vimos um processo muito grande de conscientização sobre o empoderamento.

A senhora avalia a advocacia como uma classe sexista e racista?
As duas coisas.  Digo que racista mais até que sexista. Admitir a mulher não negra ainda está no padrão do razoável, mas admitir a mulher negra numa estrutura de poder é absolutamente inviável. Eu me recordo que há alguns anos eu insisti em fazer uma chapa de mulheres e negros na OAB, por duas gestões. A chapa era de protesto. Nós sabíamos que não ganharíamos. Só os grandes escritórios detinham o poder econômico para construir grandes chapas. E nossa chapa não detinha esse poder. A advocacia veio na minha vida por força de muita luta, muito trabalho. Isso fez com que eu conseguisse meu canudo, mas foi com muito suor. E, como eu, a maioria dos advogados negros. É o que digo: a questão negra prepondera sobre a questão de gênero. É muito mais difícil você ser negro e se afirmar dentro da estrutura da OAB. O ambiente em reuniões da OAB chega a ser hostil. É como se dissessem: “O que é que você está fazendo aqui? Faça suas audiências, ganhe seu dinheirinho e vá para casa. Essa estrutura de poder não lhe pertence”. Então, fala-se muito de democracia nesse espaço, mas a coisa não é bem assim. É evidente que temos alguns grupos que têm uma sensibilidade maior para a questão e, graças a isso, pudemos participar de uma comissão nacional de promoção da igualdade do Conselho Federal. Mas é sempre uma coisa muito batalhada. Você tem que ter um destemor razoável para que as pessoas lhe aceitem, você tem que se afirmar e reafirmar, até porque, se você for olhar a história da Ordem nacionalmente, o Conselho Federal, você vai ver raras ocasiões em que negros ocupam posições de destaque. É um espaço verdadeiramente branco.

Verificar situações de racismo e sexismo dentro da OAB foi o que fez você buscar essa militância? Em alguma ocasião você sentiu essas situações na pele?
Eu não diria na pele, pois ele é velado. É um racismo institucional, que se corporifica de uma forma muito velada, e que, por isso, é muito mais difícil de ser identificado por quem não tenha percepção. Quem não tem essa percepção pode ter até a sensação de que está sendo acolhido, quando, na verdade, não está. Às vezes, você pode estar compondo meramente uma peça, para lhe dar uma feição de que está tudo bem. Não há essa coisa direta, mas a gente sabe que na hora da escolha para presidência, por exemplo, você nunca será escolhido, embora você tenha todas as condições para tal. Eu não vejo o porquê de não poder ser presidente. Por que eu não posso? Eu vou fazer 36 anos de advocacia. O que me fez estar atenta à essas coisas é todo o processo que a gente percebe fora da instituição. Se você não tem a percepção de como o racismo se apresenta, suas diversas formas, é evidente que em qualquer instituição você não vai perceber. Mas é claro o desconforto nas suas intervenções, pois eu sempre estou no espaço pontuando a questão de gênero e de raça, e toda vez que se questiona alguma coisa ou se tenta construir alguma coisa dentro da instituição, é perceptível que se causa um desconforto. Hoje, as pessoas tem um certo receio de exteriorizar isso. No meu começo, foi muito pior, era bem mais claro. Hoje, eles já te assimilam de uma forma mais política. Mas, de qualquer forma, você não avança muito.

Neste mês, a Ordem dos Advogados dos Estados Unidos elegeu sua primeira presidente negra. Como militante da causa negra, o quão está distante esse dia no Brasil? Você acha que o que aconteceu nos EUA estimulará mais advogadas a se lançarem como conselheiras federais na OAB brasileira?
A questão da OAB hoje, infelizmente, não é tanto de lançamento, pois as escolhas são feitas por grupos, e isso já é um filtro natural. Aí vai ingressar as pessoas que tiveram o perfil de determinada chapa. Mas eu acho que isso abre um caminho. O fato da presidente da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos ser negra é uma vitrine, serve para despertar isso em outros lugares. Aqui no Brasil, eu acho interessante na perspectiva da mulher, embora, no caso de gênero, eu acho que o fato de termos uma presidente mulher não repercutiu muito nas outras instância de poder, muito pelo contrário. Na Câmara dos Deputados, temos menos de 10% de mulheres deputadas, no Senado, em torno de 9%. Dentro do Judiciário, eu acho que o tribunal que tem mais acesso de mulheres é o Tribunal do Trabalho. Mas acho positivo para a mulher. Para a mulher negra, acho que isso vai dar visibilidade e acho super importante aqui no Brasil, até por toda nossa história, para que ela possa vir a ocupar cargos importantes dentro da instituição. Não fica aquela coisa do sonho, fica uma coisa que, sim, é possível.

Na sua opinião, quem enfrenta o maior desafio de empoderamento? O negro, a mulher, ou a mulher negra?
A mulher negra. Olha, é muito difícil. É preciso você se superar. É preciso matar um leão por dia para se afirmar nesse espaço, pois você lida contra o externo e o interno. É uma vivência de eterno conflito, e que você tem que superar. É algo que começa na estética, pois você não tem a aparência, o estereótipo do poder. Desde aí, até o preconceito do que você pensa, como se veste, como você se porta. Eu já tive a oportunidade de chegar para uma colega e cumprimentá-lo de forma normal, beijinho de rosto. E ele disse: “Nossa, Sílvia, como você cheira bem!”. Pois é, eu tinha que cheirar mal! Então, para você perceber, a coisa vem desde aí, até o céu, o céu é o limite. E, justamente, na Bahia, o lugar onde, se isso tivesse de acontecer, que acontecesse minimamente. A gente vive numa terra de negros. No entanto, no ponto de vista do poder, nós somos invisíveis. A nossa quantidade de negros não se reflete no poder.

Nas eleições da OAB-BA em novembro, você acha que veremos mais mulheres concorrendo a cargos? Qual a sua avaliação sobre a participação da mulher advogada na gestão atual?
A mulher ainda está muito ausente em todas as gestões. Nesta, na que antecedeu a esta, em todas. Quando isso parte para o recorte de raça, a situação se agrava. Eu acho que essa palestra que nós vamos fazer é muito importante, pois nos oportuniza a fazer cumprir alguns pleitos nossos que estão no Conselho Federal, como, por exemplo, as cotas de 30% para as mulheres. Existe um provimento que é de 2011 e nesse nele já existem as cotas para as mulheres. E é para isso que eu alertarei nesta palestra, para as mulheres e para as chapas. As mulheres devem estar atentas a essa exigência legal. É claro que para fazer cumprir esta exigência legal a gente deve ter estrutura para participar em igual condição, e esse é o grande problema. Mas nós devemos alertar, pois eu acredito que a maioria do eleitorado não tenha essa informação. Só tem esta informação quem está ligado a parte mais institucional da OAB. O advogado trabalha muito para fora da instituição, não para dentro. A parte de dentro não está incorporada ao dia a dia dele, e nem a instituição estimula isso, pois não lhe interessa.

Você acredita que por conta desse provimento nós poderemos ver mais mulheres integrando as chapas, então?
Esperamos. Eu acredito que as mulheres do nosso grupo ingressem numa campanha muito focada nisso, até no sentido de que conscientizar as mulheres de que esse espaço também é delas, e elas têm todo o direito de participar dele.

Como você avalia a baixa participação de mulheres na lista sêxtupla para desembargador do quinto constitucional?
Na vaga da OAB-BA eu não lembro de nenhuma. Cai muito em tudo o que eu já disse. A gente sabe, muitas até se inibem, pois sabem que nas escolhas entre homens e mulheres, os homens sempre terão preferência, por uma questão de preconceito mesmo, pois não faz sentido o discurso “porque não é mulher, não está preparada”, até porque os critérios de avaliação são os mesmos. Só que na hora da escolha os homens acabam sendo escolhidos. Isso faz com que as mulheres fiquem inibidas, pois é muito chato você entrar numa luta tão somente para fazer composição. Eu acho que não tem que ser por aí. Acho que tem que partir para disputa, se afirmar cada vez mais, procurar os nossos espaços, pois se nós não formos, ninguém vai nos dar, ninguém vai fazer concessão.

O que você acha que deve ser feito para que a mulher negra possa ocupar o papel de protagonista na advocacia?
O primeiro passo, para mim, é ter consciência do quão importante ela é. Antes disso, ter consciência de que o racismo existe e é real, pois a medida que você não vê, você acha tudo real. O segundo passo é você continuar se preparando, se qualificando para que você chegue lá. E o terceiro passo é fazer o que eu faço: ir para o front e buscar meu espaço enquanto protagonista. Eu trabalho muito na perspectiva da minha, que pode não ser a mais correta, mas essa é a linha que eu tenho conseguido chamar a atenção da instituição e de outras mulheres de que nós, mulheres negras, podemos ocupar nossas espaços e que é possível e necessário combatermos esse racismo que tenta nos esmagar, mas que é completamente possível dar a volta por cima.