Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies

Marca Bahia Notícias Justiça

Coluna

Tributo em Pauta: ICMS sobre Transferências e a Manutenção do Crédito

Por Rafael Figueiredo

Tributo em Pauta: ICMS sobre Transferências e a Manutenção do Crédito
Foto: Arquivo pessoal

 

Todos nós sabemos que o ICMS é um imposto que incide sobre a circulação de mercadorias (exemplo: compra e venda). Esta circulação é a jurídica, e não a meramente física, ou seja, a incidência do imposto ocorre apenas quando há troca de titularidade.

 

Entretanto, as legislações estaduais e até a própria Lei Complementar nº 87/96 previam a incidência do ICMS sobre as transferências entre estabelecimentos do mesmo titular (exemplo: matriz envia mercadoria para a filial).

 

Em que pese tais previsões legais, o entendimento dos Tribunais há décadas é de que não há incidência do ICMS nas operações de transferências, conforme se percebe de vários precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive a Súmula nº 166 do STJ e o REsp 1125133/SP, julgado na sistemática dos recursos repetitivos.

 

Nada obstante isso, com base nas previsões legais vigentes e também no argumento de que a não incidência do ICMS sobre as transferências interestaduais acarretaria perda de arrecadação para o Estado de origem e, supostamente, ofenderia o pacto federativo, os Estados da Federação continuam a exigir o ICMS sobre as transferências. 

 

Tentado solucionar a questão, em abril de 2021 foi julgada a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49 pelo STF, que tinha sido ajuizada pelo Rio Grande do Norte para tentar validar a cobrança do ICMS sobre transferências. No julgamento foi declarada a inconstitucionalidade da incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa, confirmando o entendimento consolidado há décadas, tanto no âmbito do STF como do STJ, só que desta vez com efeito vinculante para todos.

 

Agora, pensem comigo: como há décadas que se reconhece que incide ICMS sobre transferências de mercadorias entre estabelecimento do mesmo titular, a decisão da ADC 49 que consolida tal entendimento não traz nenhuma inovação e deve ser aplicada de imediato, correto?

 

Infelizmente, como em toda vitória do contribuinte no STF, está sendo cogitada a questão da modulação temporal dos efeitos da decisão, pois se fala em contornar as perdas de arrecadação dos Estados e em conceder prazo para estes adaptarem suas legislações estaduais. A apreciação da possível modulação temporal nesse caso ainda não foi concluída pelos Ministros do STF.

 

Além disso, juntamente com o pronunciamento definitivo do STF sobre a modulação temporal, os contribuintes também aguardam a apreciação de uma importantíssima questão que não foi apreciada ainda pelo STF, que é questão da exigência ou não do estorno dos créditos nas transferências. 

 

Por ser um imposto não cumulativo e que incide em cadeia (sucessivas operações de circulação de mercadoria), é garantido constitucionalmente o direito ao crédito do ICMS que incidiu nas etapas anteriores. Dessa forma ao comprar mercadoria para revender, o comerciante tem direito de se creditar do ICMS que incidiu sobre esta compra e abater mediante compensação do ICMS que pagará quando realizar a revenda de mercadoria (operação de circulação de mercadoria subsequente).

 

No entanto, a Constituição excepciona o direito ao crédito casos de não incidência. 

 

Assim, quando houver uma operação de circulação de mercadoria que não atraia a incidência do ICMS, os créditos deverão ser anulados e o adquirente não poderá se creditar para fins de compensação do ICMS devido por ele. 

 

E é justamente neste ponto que a situação precisa ser esclarecida pelo STF. Ao reconhecer que não incide ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, o STF determinou que sejam anulados tais créditos?

 

À primeira vista, pode parecer que sim, pois se enquadraria na exceção constitucional prevista no art. 155, §2º, II, “a” e “b”.

 

Contudo, meus amigos, esta não nos parece a interpretação mais correta. 

 

Vejam que a Constituição se refere sempre a operações de circulação de mercadoria, sendo que a expressão “circulação” aí é interpretada pelo STF como a circulação jurídica, que pressupõe a troca de titularidade da mercadoria. Isso porque os mencionados dispositivos constitucionais falam em anulação do crédito das operações anteriores e perda do crédito para as operações seguintes. 

 

Assim, como as normas constitucionais estão falando de uma “não incidência” que ocorreu em uma operação de circulação de mercadoria, não há que se cogitar de anulação de crédito quando nem sequer houve operação de circulação de mercadoria.

 

A não incidência prevista na Constituição que causa anulação do crédito é aplicável somente aos casos em que há operação de circulação de mercadoria (troca de titularidade) que não acarreta a incidência de ICMS (como por exemplo: perda, extravio etc.).

 

Cogitar anulação de crédito em não incidência que não se refira a uma operação de circulação de mercadoria está em desacordo com o texto constitucional. Isso porque tal interpretação seria o mesmo que decretar anulação de crédito de ICMS nos casos em que o comerciante não consegue vender a mercadoria. 

 

Ora, não vender a mercadoria também é uma espécie de não incidência de ICMS, mas até então ninguém nunca cogitou anular crédito de ICMS se o comerciante (contribuinte do ICMS) compra uma mercadoria e não consegue revender, justamente porque a mercadoria continua sendo do mesmo dono. 

 

Ao transferir a mercadoria de um estabelecimento para outro do mesmo titular o contribuinte apenas realiza a circulação física da mercadoria, a qual continua sendo do mesmo proprietário, logo, se ela continua sendo do mesmo dono não foi vendida.

 

Transferir mercadorias, portanto, está fora do campo de incidência do ICMS, assim como o caso da mercadoria que fica encalhada na prateleira do mercado sem ser vendida e, portanto, não há que se cogitar anulação de crédito do ICMS. 

 

No STF, o primeiro voto proferido na ADC 49 que enfrentou esta questão foi o do Ministro Luis Roberto Barroso, em outubro de 2021, e reconheceu o direito à manutenção dos créditos. Aguarda-se agora a manifestação dos demais ministros e esperamos que a maioria conclua no mesmo sentido.

 

*Rafael Figueiredo é advogado tributarista, professor de direito tributário, mestre em direito pela UFBA- Universidade Federal da Bahia, MBA em Gestão Tributária pela USP-Universidade de São Paulo, com especialização em direito tributário pelo IBET-Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e ex-Conselheiro do CONSEF-Conselho de Fazenda do Estado da Bahia