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Coluna

Tributo em Pauta: Camaçari e a exigência equivocada de ISS da construção

Por Anderson Pereira

Tributo em Pauta: Camaçari e a exigência equivocada de ISS da construção
Foto: Arquivo pessoal

Os contribuintes camaçarienses têm se deparado com uma ingrata surpresa ao buscar a formalização da venda de imóvel com pendência na regularização da edificação em seu registro. O Município de Camaçari, inusitadamente, tem condicionado a liberação do Documento de Arrecadação Municipal (DAM), destinado ao recolhimento do Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos (ITIV), à quitação do Imposto Sobre Serviços (ISS), devido em razão de eventual construção realizada na propriedade.

 

A averbação de construções, demolições, desmembramentos e outras intervenções em terrenos é uma exigência da Lei de Registros Públicos (art. 167, II, item 4 da Lei Federal nº. 6.015/73). Por outro lado, a realização de toda e qualquer obra, particular ou pública, depende da concessão ou autorização prévia, neste caso, em atenção ao Código de Urbanismo e Obras do Município de Camaçari (Lei Municipal nº. 339/1995).

 

Lamentavelmente, na prática, a realização irregular de obras não é algo difícil de acontecer. Mas este erro não pode justificar outro, da Administração Pública, que não pode dificultar ou inviabilizar a negociação do imóvel como forma de obter o pagamento do imposto eventualmente devido em função da construção, ainda mais quando essa cobrança se volta tardiamente para pessoa que sequer era a principal obrigada no momento oportuno.

 

O Poder Judiciário não admite a utilização de sanções políticas, ou seja, o constrangimento do contribuinte por normas ou atos que não os próprios para a cobrança, como meio de exigência de crédito tributário, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 173/DF e estampado nas suas Súmulas nºs. 70, 323 e 547.

 

Somente por este motivo a conduta municipal já é equivocada, pois se aproveita de situação em que o contribuinte depende de sua intervenção, para obter a emissão do DAM do imposto de transferência (ITIV), e condiciona sua resposta ao recolhimento de um outro imposto (ISS) que não guarda relação com a situação jurídica que está sendo tratada no momento. 

 

Aliás, a própria manutenção desta dependência de solicitação para obtenção deste documento sugere uma possível intenção de utilizar esse obstáculo com meio indireto de cobrança de dívidas, pois, além de não se enquadrar na determinação de eficiência contida na Constituição Federal (art. 37), nos dias atuais, a rotina poderia ser totalmente concretizada pelo interessado, por meio de sistema eletrônico, podendo a administração posteriormente exigir eventuais valores remanescentes, como previsto no art. 148 do Código Tributário Nacional.

 

Outro ponto diz respeito ao ISS, que tem como pressuposto uma prestação de serviços, de modo a constituir o prestador como responsável pelo seu pagamento, por consequência, em regra. Pessoas físicas e jurídicas, quando contratam um(a) terceiro(a) para realizar a construção, são o(s) tomadores(as) daqueles serviços. Em alguns casos, é possível que a lei atribua ao contratante a responsabilidade pela retenção e recolhimento do ISS devido pelo contratado, como autoriza o art. 6º da Lei Complementar nº. 116/03.

 

É o caso do Código Tributário e de Rendas do Município de Camaçari (CTMC ou Lei Municipal nº. 1.039/2009), o qual atribui a responsabilidade pela retenção e recolhimento do ISS pelas obras que contratarem, atuarem como fonte pagadora ou intermediarem, a toda pessoa física ou jurídica tomadora de serviços de construção civil (art. 139, I, do CTMC).

 

O problema é que a atribuição de responsabilidade ao contratante, neste caso, não modifica o fato gerador da obrigação, que é a prestação de serviços (art. 121 do CTMC), muito menos o momento em que este é considerado devido (art. 142 do CTMC).

 

Considerando que os proprietários de terrenos (principalmente aqueles com a coragem e a disposição de arcar com custos normalmente imprevisíveis de uma construção, ainda que por empresa terceirizada) dificilmente estão dispostos a vender o imóvel, sem antes aproveitá-lo por tempo razoável, a opção de Camaçari por exigir o imposto na transferência da propriedade para terceiro pode lhe custar ainda mais caro, pois, como o dever de recolher o ISS observa a época da prestação de serviços, permanecer inerte aguardando a venda pode frustrar os planos municipais e ainda gerar uma despesa com custas judiciais e honorários advocatícios, diante da eventual ocorrência da decadência, que, sinteticamente, é a perda da possibilidade de exigir o imposto pelo decurso do tempo de realizar o procedimento administrativo necessário para converter a obrigação em dívida apta a ser cobrada judicialmente.

 

Como a atribuição de responsabilidade ao tomador não afasta a do prestador de serviços (art. 140 do CTMC) cabe ainda anotar que a espera pela venda do imóvel para exigir o imposto não se revela a opção mais adequada por outras razões, ainda que o proprietário opte por recolher o tributo, mantendo a sua prerrogativa de cobrar posteriormente do construtor (direito de regresso), ao invés de discutir judicialmente a exigência descabida. 

 

Além do já mencionado risco da decadência, o prestador de serviços provavelmente deixou de emitir a competente nota fiscal pelo serviço (art. 144, II do CTMC), nestes casos, o que justificaria a imposição adicional das penalidades previstas na legislação, além dos acréscimos eventualmente incidentes. Ocorre que, ao contrário do imposto, os encargos pelo descumprimento da obrigação pertinente aos documentos fiscais não podem ser atribuídos ao proprietário/contratante/tomador. Ainda que se cogite a hipótese de conter, na legislação tributária municipal, norma estabelecendo o dever do contratante exigir a nota fiscal e a sanção pela sua inobservância seja aplicada, não poderá cobrar dele a penalidade pela infração correspondente à própria falta de emissão do mesmo documento, pois essa é uma omissão distinta que não pode ser atribuída a quem não possuía a competência para a prática do ato ou, em outros termos, cumprir a obrigação.

 

Por outro lado, quando cobrado do proprietário do terreno, a base de cálculo do tributo (preço do serviço) sofre abatimento em até quarenta por cento, referente aos materiais fornecidos pelo prestador (art. 139, § 3º do CTMC), percentual que pode não corresponder adequadamente à realidade, em razão das falhas nas normas para arbitramento do tributo, já que o Decreto Municipal nº. 6.070/2015, que regulamenta o procedimento, apenas indica o uso das alíquotas previstas no Anexo II do Código Tributário do Município de Camaçari, sem esclarecer a exata fórmula de cálculo da sua base de cálculo.

 

De maneira questionável, remete a critérios especificados em atos administrativos da Secretaria Municipal da Fazenda, ou seja, delega a competência para estabelecer os critérios de fixação da base de cálculo por estimativa a atos de natureza subalterna à lei (infralegais), expediente já repudiado pelo STF na ADI 3674/RJ e que não passará despercebido da atenção do TJ/BA, na ocasião em que se debruce sobre essa questão.

 

No final das contas, a solução aparentemente inteligente adotada pelo Município de Camaçari pode render mais dores de cabeça e custos do que o pretendido. Resta saber se o risco compensa.

 

*Anderson Pereira é advogado tributarista licenciado, professor de Direito Tributário e conselheiro do Conselho de Fazenda do Estado da Bahia e do Conselho Municipal de Tributos de Salvador