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Coluna

Ciências Criminais: O que não contaram sobre a PEC das drogas?

Por Gustavo Brito

Ciências Criminais: O que não contaram sobre a PEC das drogas?
Foto: Divulgação

Michael Sandel, professor da Universidade de Harvard, em sua obra “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, aborda valores morais e filosóficos, contextualizando-os com problemas da atualidade. No capítulo 2, ao debater sobre o utilitarismo de Jeremy Bentham, fundado no princípio da máxima felicidade, suscitou uma situação hipotética envolvendo uma criança leprosa que andava nas ruas da cidade, trazendo como opões resolutivas: o cuidado com a jovem mantendo-a nas ruas à vista de todos ou expulsá-la da cidade.


É de se perceber que este capítulo em muito dialoga com a denominada “PEC das drogas”, proposta pelo Presidente da Casa Legislativa e aprovada pelo Senado Federal em 16/04/2024, cujo texto altera o art. 5º da Constituição Federal de 1988, incluindo inciso que criminaliza a posse ou porte de qualquer quantidade de substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com a legislação vigente.


Em um primeiro momento, elevada foi minha surpresa ao saber da aludida proposta. Ora, inusitado é o fato de uma PEC almejar incluir dispositivo de natureza incriminadora de condutas, especialmente no art. 5º, artigo que, deveras, foi escolhido pelo constituinte para elencar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, cujas regras, cláusulas pétreas, são classificadas como impossíveis de serem abolidas (art. 60, §4º). 


Não obstante o esclarecimento do autor da proposta de que não se pretende o encarceramento de usuários ou dependentes químicos, inconteste é que a eventual aprovação da norma irá potencializar, ainda mais, o encarceramento em massa. Ademais, cabe compartilhar com o leitor uma ideia elementar: não é papel da Constituição da República criar ou conter normas incriminadoras, já que textos com tal conteúdo devem constar no Código Penal e em leis ordinárias de natureza penal. 


Assim, volvendo à reflexão sobre os discursos e justificativas de criminalização, fato é que todos eles possuem como ponto nodal o argumento acerca dos danos causados pelo consumo de drogas e da necessidade da intervenção estatal para proteger o cidadão, de modo que apresentam como solução a prisão de eventuais consumidores de tais substâncias, o que somente ocorreu após a votação pelo STF – em sede do Recurso Extraordinário 635659, com repercussão geral (Tema 506) –, que trilhava no sentido do reconhecimento da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, a tornar-se inconstitucional o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006).
Tanto as justificativas como o timing de aprovação do projeto levaram-me a questionar se algum político, especialista ou defensor da criminalização de drogas encarcerou pessoas queridas ou familiares, quando elas estiveram doentes ou quando necessitavam de proteção à sua saúde, pelo que se faz rememorar a jovem leprosa inicialmente mencionada, que poderia ser expulsa de sua cidade para permitir a máxima felicidade daquele grupo social que deixaria de visualizar a sua constrangedora e renegada presença.


Curioso é como funciona a mente dos autodenominados defensores e protetores da sociedade: marginalizam grupos sociais, criam restrições às liberdades, tudo em nome de um questionável conceito de bem-estar e de um alegado cuidado, ideias que, com certa frequência, valem-se e fundam o encarceramento como solução e salvação para todos os problemas. 


O discurso, muitas vezes utilizado pelos ditos “salvadores”, possui forte apelo moral, outras vezes, religioso, e, nesse episódio específico, valeu-se da necessária proteção à saúde dos usuários. Mas será mesmo que um usuário ou dependente químico irá procurar uma instituição de saúde ou de apoio quando necessitar de tratamento, já que poderá ser preso?


Analisando sem paixões as razões e justificativas apresentadas na referida Proposta, a única certeza que tive é que tais “salvadores” defenderiam a necessidade de maiores investimentos em saúde, educação, prevenção e combate ao consumo através do cuidado ao indivíduo, reconhecendo-se a sua dignidade e natureza humana, ao invés do encarceramento aleatório de portadores e possuidores de qualquer quantidade de droga.


Entretando, ao que parece, mais vale o (pseudo) discurso protetor que escamoteia a razão incriminadora e excludente, marginalizando pessoas e afastando-as do alcance da nossa vista, do que o efetivo cuidado. 


A PEC das Drogas, produto de um ideário utilitarista raso, muito em breve poderá ser a mãe dos novos leprosos, que, à margem das políticas públicas e de proteção a saúde, serão abandonados à própria (falta de) sorte. Assim, serão muito bem acolhidos e apadrinhados pelos senhores do tráfico, tão logo ingressem nos presídios. Então, como verdadeiros mutantes, deixarão de ser consumidores e dependentes químicos para se tornarem os futuros responsabilizados pelo aumento da criminalidade.