A tributação dos lucros no Simples Nacional e a Lei nº 15.270/2025: um conflito entre leis e princípios constitucionais
A tributação da distribuição de lucros e dividendos voltou ao centro do debate tributário brasileiro a partir das alterações promovidas pela recente reforma do imposto de renda. Para as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional, o tema assume contornos ainda mais sensíveis, pois envolve não apenas escolhas de política fiscal, mas, sobretudo, a correta aplicação de princípios constitucionais como a repartição de competências legislativas, a especificidade normativa e a segurança jurídica.
O ponto de partida dessa análise é conhecido: o art. 14 da Lei Complementar nº 123/2006 estabelece que são isentos do imposto de renda, na fonte e na declaração de ajuste do beneficiário, os valores efetivamente pagos ou distribuídos ao titular ou sócio da microempresa ou empresa de pequeno porte optante pelo Simples Nacional, ressalvadas as hipóteses expressamente excluídas, como pró-labore, aluguéis ou serviços prestados.
Trata-se de norma clara e específica, veiculada por lei complementar, editada com fundamento direto na Constituição Federal, que reservou a esse veículo normativo a disciplina do tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte (arts. 146, III, “d”, e 179 da Constituição). Não se está diante de uma opção legislativa ordinária, mas de um regime jurídico constitucionalmente qualificado.
A partir desse marco normativo, consolidou-se, ao longo dos anos, uma legítima expectativa dos contribuintes de que a distribuição de lucros no âmbito do Simples Nacional estaria protegida por um regime próprio, diferenciado e estável, justamente em razão de sua função extrafiscal de estímulo ao empreendedorismo, à formalização e à permanência dos pequenos negócios no mercado.
Com a edição da Lei nº 15.270/2025, contudo, surgem novas regras que impactam diretamente essa lógica. O art. 6º-A institui a retenção na fonte de 10% de imposto de renda sobre lucros e dividendos pagos por uma mesma pessoa jurídica a uma mesma pessoa física, quando ultrapassado o montante de R$ 50.000,00 em um mesmo mês, vedadas quaisquer deduções da base de cálculo. Já o art. 16-A cria a chamada tributação mínima da pessoa física, aplicável àquelas cujo total de rendimentos anuais supere R$ 600.000,00, incluindo, na base de cálculo, rendimentos tradicionalmente isentos, entre eles os lucros e dividendos, ressalvadas, de forma transitória, determinadas hipóteses vinculadas a resultados apurados e deliberações realizadas até 31 de dezembro de 2025.
É nesse contexto que se instala o conflito jurídico central: pode uma lei ordinária instituir, ainda que de forma indireta, tributação sobre lucros distribuídos por empresas do Simples Nacional, quando existe lei complementar específica assegurando a isenção como elemento estrutural do regime?
A resposta a essa indagação exige precisão conceitual. Não se trata propriamente de hierarquia formal entre lei complementar e lei ordinária, mas de repartição constitucional de competências legislativas. Sempre que a Constituição reserva determinada matéria à lei complementar, a lei ordinária não pode nela intervir, modificar ou esvaziar seus efeitos, sob pena de inconstitucionalidade por invasão de competência. É exatamente essa a lógica que rege o Simples Nacional.
Além disso, incide com especial relevância o princípio da especificidade. A Lei Complementar nº 123/2006 não trata genericamente de imposto de renda, mas de um regime tributário específico, direcionado a um universo delimitado de contribuintes, com regras próprias de apuração, recolhimento e tributação dos resultados. Uma norma geral posterior, ainda que mais recente, não deveria afastar, por via indireta, a incidência de uma norma especial anterior, sob pena de esvaziar o tratamento diferenciado assegurado constitucionalmente às micro e pequenas empresas.
O principal contraponto apresentado pelos defensores da nova sistemática é o de que a tributação dos lucros e dividendos ocorreria no âmbito da pessoa física, não estando, portanto, abrangida pela reserva de lei complementar prevista no art. 146 da Constituição. Sob essa perspectiva, a lei ordinária poderia alcançar os lucros distribuídos, ainda que provenientes de empresas optantes pelo Simples Nacional.
Esse entendimento já foi externado de forma expressa pela Receita Federal do Brasil, que, em Manual de Perguntas e Respostas recentemente divulgado, afirmou que a retenção do imposto de renda na fonte sobre lucros e dividendos também se aplica às empresas do Simples Nacional a partir de janeiro de 2026, sempre que os pagamentos a uma mesma pessoa física superarem R$ 50.000,00 em um mesmo mês. Trata-se, portanto, de uma posição administrativa clara, que antecipa a forma como o Fisco pretende exigir o tributo.
Essa interpretação, contudo, merece cautela. Embora seja verdade que o imposto de renda incide, em última instância, sobre a pessoa física beneficiária, não se pode ignorar que a isenção prevista no art. 14 da Lei Complementar nº 123/2006 foi concebida como elemento estrutural do regime do Simples Nacional. Sua neutralização, ainda que sob o argumento de retenção na fonte ou tributação mínima, produz efeitos diretos sobre a lógica econômica do regime, impactando decisões de investimento, distribuição de resultados e organização societária.
Mais do que uma controvérsia técnica, está-se diante de um debate que envolve segurança jurídica e confiança legítima. O contribuinte que opta pelo Simples Nacional o faz com base em um conjunto de regras constitucionalmente qualificadas, que não podem ser alteradas de forma fragmentada por normas editadas fora do campo de competência que a Constituição lhes reservou.
Não bastasse o aumento de custos e as dificuldades que as empresas do Simples Nacional já podem enfrentar com a implantação do IBS e da CBS — especialmente em razão da limitação na geração de créditos para seus clientes — esse cenário se torna ainda mais gravoso com a possibilidade de tributação da distribuição de lucros pelo imposto de renda. Na prática, o pequeno empresário passa a suportar um duplo ônus: perde competitividade na atividade econômica e vê reduzida a remuneração do resultado do próprio negócio, comprometendo a viabilidade da empresa e enfraquecendo o principal objetivo do regime simplificado.
Essa controvérsia já está sendo levada ao Poder Judiciário, a fim de definir se as novas regras da Lei nº 15.270/2025 podem ou não incidir sobre lucros distribuídos por empresas optantes pelo Simples Nacional, à luz da Constituição Federal e da Lei Complementar nº 123/2006. Até que haja uma definição clara, o cenário recomenda prudência, planejamento e acompanhamento técnico rigoroso.
Ao redesenhar a tributação da renda, a reforma tributária não pode perder de vista que o Simples Nacional não é um favor fiscal, mas uma opção constitucional de política pública. Preservar a repartição de competências, respeitar a especificidade do regime e garantir segurança jurídica são condições essenciais para que a transição para o novo modelo tributário ocorra com previsibilidade, coerência e fidelidade aos princípios fundamentais do sistema tributário brasileiro.
*Roberta de Almeida Maia Broder, sócia do Escritório Nogueira Reis Advogados, especialista em Negociação e Resolução de Conflitos pela Harvard Law School e mestre em Direito Profissional Tributário pela FGV, São Paulo
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