PEC 66/2023 e o retorno da dívida perpétua: análise crítica sob a ótica das cláusulas pétreas constitucionais
A Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, representa um grave retrocesso institucional no regime jurídico dos precatórios no Brasil. Com a justificativa de promover “sustentabilidade fiscal” e “previsibilidade orçamentária”, o texto, na prática, institucionaliza um modelo de dívida pública perpétua, esvaziando a efetividade das decisões judiciais e comprometendo os pilares essenciais do Estado Democrático de Direito.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o art. 100 fixou as bases para a execução das dívidas judiciais da Fazenda Pública, com prazos razoáveis e mecanismos voltados à preservação da autoridade das decisões transitadas em julgado. Ao longo das últimas décadas, no entanto, sucessivas Emendas Constitucionais vêm alterando esse cenário (da EC 30/2000 até as ECs 113 e 114/2021), muitas delas objeto de controle de constitucionalidade pelo STF.
A PEC 66/2023 introduz mudanças estruturais: cria limites percentuais escalonados da Receita Corrente Líquida (RCL) para o pagamento de precatórios (de 1% a 5%, a depender do estoque da dívida), substitui a taxa SELIC por IPCA + 2% ao ano, em juros simples, como critério de atualização — ou SELIC, o que for menor, e antecipa o prazo de apresentação dos precatórios, reduzindo o tempo de incidência de juros. Além disso, autoriza acordos diretos com credores, sem delimitação clara do percentual de deságio, o que tende a fragilizar ainda mais a segurança jurídica no mercado de precatórios.
Do ponto de vista constitucional, a proposta viola cláusulas pétreas. Ao subordinar o cumprimento de decisões judiciais a percentuais da arrecadação, a PEC afronta a coisa julgada (art. 60, §4º, IV, da Constituição). Ao reduzir o valor real dos créditos, pela substituição de índices e uso de juros simples, fere o direito de propriedade (art. 5º, XXII). E ao interferir na execução das sentenças, impõe limites ao Poder Judiciário, violando a separação de Poderes.
O impacto para os credores é severo; transforma créditos definitivos em valores simbólicos, desprovidos de previsão concreta de pagamento. A proposta autoriza acordos diretos com credores, mas omite qualquer limite para o percentual de deságio. Diferentemente da Emenda Constitucional nº 94/2016, que fixava um teto de 40% para os acordos, a PEC 66/2023 silencia quanto a esse limite, abrindo margem para deságios ainda maiores impostos pelos entes devedores, em evidente prejuízo aos titulares de precatórios.
Esse ambiente de incerteza jurídica afasta investidores e compromete o mercado de cessão de créditos, favorecendo negociações em condições cada vez mais desvantajosas para os credores.
A PEC 66/2023 é mais do que uma proposta fiscal: é a consagração do inadimplemento estatal como regra orçamentária. Se aprovada, exigirá resposta imediata da advocacia brasileira, especialmente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e das bancadas parlamentares comprometidas com o respeito à Constituição. A judicialização do tema será inevitável, por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade.
O credor, mais uma vez, será o elo mais fraco. Perde valor, perde previsibilidade e perde mercado. A Constituição não permite que o Estado escolha quais sentenças irá cumprir. Pagar o que se deve não é apenas dever jurídico: é cláusula pétrea da moralidade republicana.
*Gilberto Badaró é advogado especialista em precatórios e sócio do Badaró Almeida & Advogados Associados.
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