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A equivocada criminalização da dívida do ICMS

Por Rafael Figueiredo

A equivocada criminalização da dívida do ICMS
Foto: Divulgação

A comunidade empresarial brasileira, principalmente os comerciantes, aguardam o julgamento do RHC (Recurso Ordinário em Habeas Corpus) nº 163334 pelo plenário do STF – Supremo Tribunal Federal, no qual será decidido se o mero inadimplemento de dívida de ICMS próprio e declarado pelo contribuinte configura crime de apropriação indébita. A previsão é que o julgamento ocorra ainda neste ano de 2019.

 

Tal recurso foi interposto contra a decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) no HC nº 399109 proferida em agosto de 2018, que concluiu que o não recolhimento de ICMS em operações próprias, devidamente declaradas ao Fisco, não se confunde com a mera inadimplência e que deve ser punido como crime.

 

O STJ acatou o entendimento defendido pelo Ministério Público de que a mera falta de pagamento do ICMS se enquadra no tipo penal de apropriação indébita previsto no art. 2º II, da Lei n. 8.137/1990 (Lei de Crimes Tributários). O referido tipo penal prevê como crime a conduta do contribuinte que não repassa ao fisco o tributo que foi descontado ou cobrado de outro na qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária.

 

Sendo assim, segundo o entendimento do STJ, como o ICMS é um tributo indireto cujo encargo financeiro é repassado ao consumidor final, a ausência de recolhimento do imposto destacado na nota fiscal se enquadraria na conduta criminosa mencionada acima.

 

O relator do caso no STF é o Ministro Luis Roberto Barroso, que em 11/02/2019 afetou o tema ao plenário do STF, em razão da relevância prática da matéria, que afeta dezenas de milhares de contribuintes por todo o país.

 

Além disso, foi concedida liminar para determinar que não seja executada qualquer pena contra os recorrentes antes do julgamento pelo STF, e convocada uma audiência pública, realizada no dia 11/03/2019, para discussão da controvérsia, que segundo o Min. Barroso demanda uma reflexão detida sobre a eficácia dos meios atuais de arrecadação tributária e os limites da política criminal-tributária.

 

Em tal audiência pública, posicionaram-se a favor da criminalização os representantes do Ministério Público Estaduais e Federal, além dos representantes das procuradorias dos Estados. Os representantes dos contribuintes (advogados, defensores públicos e entidades de classe), apresentaram os argumentos contrários à criminalização.

 

Antes mesmo de analisarmos os principais argumentos apresentados, adiantamos, desde já, que consideramos que a criminalização da mera inadimplência do ICMS é um completo equívoco que traz muita insegurança jurídica para a sociedade e afugenta investimentos.

 

Observamos ainda que tal entendimento é, de certa forma, recente. Na Bahia, por exemplo, somente passou a ser defendido pelo Ministério Público Estadual a partir de novembro de 2017. Antes disso apenas se cogitava a aplicação do crime de apropriação de indébita às dívidas de ICMS devido por substituição tributária, nunca o ICMS próprio declarado e não pago pelo contribuinte.

 

Percebe-se que a defesa da criminalização da dívida de ICMS está fundamentada em nítido interesse arrecadatório dos Estados da Federação que buscam satisfazer créditos tributários perante contribuintes inadimplentes. Contudo, não se pode alargar a tipicidade penal para alcançar situações que não se enquadram na conduta típica prevista na lei. O respeito à legalidade é imprescindível à garantia de segurança jurídica.

 

Entendemos que o inadimplemento do ICMS não configura crime de apropriação indébita porque para a ocorrência de tal crime é imprescindível que o agente se aproprie de algo que não lhe pertence. O fato de o ICMS ser um tributo indireto que permite a repercussão econômica para o consumidor final (embutido no preço da mercadoria) não transforma o comerciante em detentor de um valor que não lhe pertence.

 

Isso porque o comerciante recebe o preço da mercadoria que vendeu, valor que é seu por direito. Em razão da venda realizada, o comerciante deve o ICMS ao fisco estadual. Note-se que o devedor do ICMS é exclusivamente o comerciante. Não se trata de uma dívida de terceiro que o comerciante irá pagar com recursos de outra pessoa que estão em seu poder, como acontece nos casos de retenção de fonte, onde de fato pode ocorrer apropriação indébita.

 

Tanto é assim que o ICMS incidirá sobre as vendas inadimplidas, ou seja, mesmo nos casos em que o consumidor não pague o preço a mercadoria, haverá a incidência do ICMS pela venda realizada pelo comerciante, e este deverá recolher aos cofres do Erário estadual o imposto.

 

Inadimplência de tributo é mero ilícito tributário, ao qual é aplicável multa pecuniária, mas não pode configurar crime. Criminalizar o mero inadimplemento é utilizar o Direito Penal como instrumento de arrecadação do Estado. Frise-se que a jurisprudência do STF e do STJ á pacífica quanto ao entendimento de que o mero inadimplemento não justifica a responsabilização pessoal tributária do sócio da empresa. Veja-se o absurdo: a mera inadimplência de tributo por uma empresa não permite que o fisco cobre o crédito tributário do patrimônio pessoal do sócio, mas permite que o sócio seja preso por isso!

 

O principal argumento favorável à criminalização é a questão da repercussão econômica do ICMS, imposto indireto. Como se vê no parecer emitido pela PGR (Procuradoria Geral da República), que defende a criminalização e argumenta que o comerciante (contribuinte de direito) recebe o valor do ICMS do consumidor (contribuinte de fato), por meio da inserção do respectivo valor no preço final do produto, e, por isso, deixaria de recolher aos cofres públicos o dinheiro recebido, apropriando-se indevidamente.

 

Contudo, o que o comerciante recebe é unicamente o preço, valor que é seu por direito, e não do Estado. A venda faz nascer para o comerciante, e não para o consumidor, o dever de recolher o ICMS. O débito tributário é exclusivo do comerciante, ainda que haja repercussão econômica do tributo. Não se pode confundir o preço devido pelo consumidor com o ICMS devido pelo comerciante. Tanto é assim que nos casos em que o comerciante não recebe o preço devido pelo consumidor ele continua sendo obrigado a recolher o ICMS.

 

Apropriação indébita de tributo somente ocorrerá nos casos em que o agente retiver o valor do tributo devido por outro, com a incumbência de repassá-lo ao fisco. Situação que ocorre nos casos de imposto de renda retido na fonte e da contribuição previdenciária retida na fonte. Nestes casos o patrão retém o valor do tributo devido pelo seu funcionário e paga em nome dele (funcionário). Caso haja a retenção e não seja adimplida a dívida tributária do funcionário, este continuará devendo o tributo e o patrão terá praticado o crime de apropriação indébita de tributo.

 

Outros argumentos favoráveis à criminalização suscitados foram i) a ineficiência dos meios formais de cobrança de crédito tributário; ii) a concorrência desleal causada pelos comerciantes que declaram tributo e não o recolhem; iii) o posicionamento do STF no RE 574706 de que o ICMS destacado na nota fiscal não é receita do contribuinte.

 

Quanto à ineficiência dos meios formais de cobrança de crédito tributário, deve-se frisar que a legislação já prevê diversos meios de o exequente (fisco) conseguir alcançar o patrimônio do contribuinte e satisfazer sua pretensão pecuniária. Neste ponto vale ressaltar as modificações do CPC/2015 que permitiram expressamente a penhora de percentual do faturamento da empresa, bem como a aplicação medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para garantir o cumprimento de ordem judicial de satisfação pecuniária.

 

Portanto, são diversas as formas que o fisco tem de satisfazer o crédito tributário, sendo-lhe permitido até mesmo a aplicação de penalidades como o cancelamento de benefícios fiscais e regimes especiais, manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento da empresa, redução dos períodos de apuração e dos prazos de recolhimento dos tributos, exigência de comprovação sistemática do cumprimento das obrigações tributárias, entre outras medidas, desde que elas não impliquem sanção política e acarretem a impossibilidade de exercício da atividade econômica em razão de dívidas tributárias.  

 

Note-se, ainda, que além da forma usual de cobrança judicial mediante execução fiscal, o STF já reconheceu também a possibilidade de protesto extrajudicial do crédito tributário, o que possibilita ao fisco a inclusão do nome do contribuinte devedor em órgãos de proteção ao crédito.

 

Em nosso sentir a dificuldade na execução judicial dos créditos tributários de ICMS não decorre da ineficiência dos meios formais de cobrança do crédito tributário, e sim da falta de estrutura das Procuradorias Estaduais responsáveis pelo ajuizamento da ação de cobrança, bem como da falta de juízes (principalmente no interior do Estado) para dar maior celeridade aos processos de execução fiscal.

 

Da mesma forma, o argumento de concorrência desleal praticada pelos contribuintes que declaram o ICMS e não o recolhem também não pode justificar o alargamento do conceito de crime tributário, sob pena de equiparação das condutas de inadimplência e crime tributário.

 

Ademais, o contribuinte que declara o tributo e não o recolhe facilita o trabalho do fisco, pois confessa o débito tributário, permitindo a imediata cobrança judicial mediante execução fiscal.

 

Caso o contribuinte não tivesse declarado a sua dívida tributária, o fisco teria que lavrar uma autuação fiscal para cobrança do tributo, permitindo ao contribuinte a apresentação de defesa e recursos administrativos com efeito suspensivo. Ou seja, se o débito tributário não fosse declarado, o fisco teria que ultrapassar todo um processo administrativo de constituição do crédito tributário, o qual costuma demorar alguns anos.  

 

Não se pode, portanto, considerar o contribuinte que declarou e confessou a sua dívida tributária como um criminoso. A conduta criminosa somente é praticada por aqueles que fraudam e adulteram informações prestadas ao fisco para diminuir a carga tributária devida, ou aqueles que se apropriam de coisa alheia, o que não é o caso do contribuinte que deixa de recolher o ICMS, conforme explicado acima.

 

A situação de inadimplência de tributos decorre muitas vezes dos momentos de crise na economia pelos quais passa o país, afetando diretamente o poder aquisitivo dos consumidores, e acarretando, imediatamente, na diminuição das vendas dos comerciantes contribuintes do ICMS. Considerar que o mero inadimplemento deve ser enquadrado como crime, além de ofender todo o ordenamento jurídico em vigor, representará nítido desestímulo à atividade comercial, que assim como qualquer outra atividade empresarial está sujeita aos riscos e é afetada pelos momentos de turbulência econômica.

 

Por fim, alega-se ainda que o entendimento de que o não pagamento do ICMS representa apropriação indébito estaria em consonância com o posicionamento do STF a respeito da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS. Contudo, também não merece prosperar tal argumento.

 

Isso porque a decisão do STF reconheceu que o ICMS não se confunde com os conceitos de receita bruta e faturamento, que são as bases de cálculo das contribuições PIS/COFINS, uma vez que representa um débito que o contribuinte tem com o fisco estadual. Ou seja, o STF reconheceu a tese dos contribuintes de que o valor do ICMS destacado na nota fiscal não representa receita ou faturamento para o comerciante, e sim um débito a ser lançado na sistemática de apuração não cumulativa do imposto.

 

O acolhimento desta tese não implica dizer que o comerciante cobra o valor do ICMS do consumidor final, uma vez que, conforme demonstrado acima, este (consumidor final) paga somente o preço pela mercadoria e não integra a relação jurídico tributária, ou seja, quem cobra o ICMS é o fisco e do comerciante.

 

Diante de todo o exposto, espera-se que o STF afaste a possibilidade de criminalização da dívida de ICMS, corrigindo o entendimento equivocado do STJ, e garantindo aos comerciantes a segurança jurídica necessária ao estímulo da atividade empresarial.

 

* Rafael Figueiredo é advogado tributarista, mestre em Direito Tributário, professor de Direito Tributário. Membro da Câmara de Assuntos Tributários da Fecomércio-BA

 

* Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias