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Entrevista

Medalha de ouro no Pan, boxeadora baiana fala da carreira e da expectativa para Tóquio 2020

Por Leandro Aragão

Medalha de ouro no Pan, boxeadora baiana fala da carreira e da expectativa para Tóquio 2020
Foto: Divulgação

Aos 26 anos, a baiana Bia Ferreira conquistou a medalha de ouro do boxe, na categoria até 60 kg, nos Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru. Apesar de ainda não ter a vaga carimbada, a boxeadora é uma das grandes esperanças de medalha do Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Atualmente morando em Santo Amaro, interior de São Paulo, ela está imersa nos treinos junto à seleção brasileira.

 

Muito solícita, Bia gentilmente deu uma pausa nas atividades para conversar com a reportagem do Bahia Notícias, por telefone, com o sotaque puxado para o "carioquês", "baianês" e "mineirês". "É uma mistura na verdade. Eu falo baiano, falo mineiro, falo paulista, falo carioca... Porque também na seleção tem gente de todos os lugares, então a gente convive e acaba pegando um pouquinho de cada um e fica bem engraçado, porque ninguém sabe da onde a gente é", comentou aos risos. A atleta falou do começo tardio na modalidade, que tem o seu pai, o ex-boxeador Sergipe, como seu grande mentor e espelho, seus contratempos na carreira e dos planos para as Olimpíadas de Tóquio 2020.

 

Você quebrou um tabu do boxe brasileiro no Pan-Americano que não conquistava um ouro desde a edição do Rio em 2007. Sentiu algum peso na hora da decisão por causa desse retrospecto?

Não, eu estava bem tranquila, bem confiante, apesar de termos ido em quatro para a final e meus amigos já tinham perdido as lutas, mas a gente tinha feito uma campanha boa. Acho que todo mundo mostrou que o trabalho foi forte, todos estavam bem preparados. Quem perdeu, perdeu com dignidade, tentando até o final. E esse era o objetivo, né? A gente tinha quebrado um tabu de números de finais e conseguido um grande número de medalhas. E eu estava super tranquila, estava bem confiante por já ter chegado até ali. Já era uma finalista. Então, fui tranquila, claro que com um pouco de ansiedade, porque é uma final. Acho que essa sensação de ansiedade e até um pouco de nervoso é normal. Se você não sentir isso não está praticando o esporte que tanto gosta. Faz parte da adrenalina do amor ao esporte. Em comparação às outras finais que eu já tinha feito, estava até bem tranquila pelo peso do campeonato. Mas acho que isso tudo, a tranquilidade em sim, foi porque eu estava consciente de todo o trabalho que tinha feito até chegar ali, então, acho que não tinha surpresas. Era o que Deus quisesse mesmo. Só se Ele não quisesse é que daria errado, porque eu estava bem preparada. E a adversária não era surpresa, já tinha lutado contra ela, já tinha ganhado... Acho que a semifinal foi mais final do que semi, que foi contra a americana [Rashida Ellis].

 

Sobre essa semifinal, você e Rashida Ellis já haviam se enfrentado. Você venceu a primeira, mas tinha perdido no encontro.

Eu estava engasgada, porque não aceitei a derrota no Pré-Pan. Eu queria muito ganhar, pois tinha perdido por detalhe por erro meu que não consegui perceber durante o combate. Então, fui com outras estratégias. Fui com uma estratégia montada e na hora tive que mudar algumas coisas, mas deu certo. Eu queria muito ter ganhado, na hora eu falei: "Não, vai dar! Agora está empatado e eu tenho que desempatar essa bagaça!". Graças a Deus deu certo!

 

Era o seu primeiro Pan-Americano. Qual foi a sensação quando você conquistou logo uma medalha de ouro?

A sensação lá na hora foi de dever cumprido. De saber que eu estava contribuindo com a história do boxe feminino. Saber que tinha sido a primeira e que muitas meninas que estão por vir iam se inspirar, iam querer chegar até ali. Pô, foi uma sensação maravilhosa. Foi mais um sonho que eu consegui realizar, fizemos o caminho certo. Eu almejo também chegar nos Jogos Olímpicos. Trabalho todos os dias para isso, treino todo dia, passo por cima de dores para um dia estar naquele momento nos Jogos Olímpicos e vejo que estou no caminho certo.

Foto: Divulgação

 

É justamente sobre esse caminho que eu gostaria de te perguntar. Apesar de ser campeã Pan-Americana você ainda não tem garantida a vaga olímpica. Quais os caminhos que você deve percorrer para conseguir essa vaga?

Em março do ano que vem vai ter um pré-olímpico que é quando todo mundo da América do Sul vai disputar a vaga para os Jogos Olímpicos. Eles estavam vendo se seria por ranking, mas acho que ainda não é nada garantido. Até então é só o pré-olímpico que vai dar vaga para o boxe. Nesse ano ainda também tem dois Mundiais, que é o Mundial Civil e o Mundial Militar. Eu também faço parte das Forças Armadas da Marinha do Brasil e vou participar do meu primeiro Mundial Militar que vai ser na China, mas esse não dá vaga para as Olimpíadas. Esse Civil também não dá vaga... Porque o boxe saiu do conselho nacional da Aiba [Nota: O Comitê Olímpico Internacional (COI) retirou o status olímpico da Associação Internacional de Boxe Amador (Aiba), que organizava as disputas qualificatórias para a Olimpíada]. Agora, o boxe faz parte do COI, então vale mais vaga. Antigamente valia, mas nesse ano não vai valer mais... Agora depois do Pan, vamos focar nesses mundiais. Assim que voltar desses mundiais, vou focar no pré-olímpico para garantir a vaga. Aí assim já almejamos Tóquio mais perto.

 

No ano passado, você foi eleita a melhor boxeadora do Brasil. Neste ano, tem conquistado bons resultados. Desde o início você acreditava que poderia trilhar esse caminho de sucesso?

Dois anos seguidos que sou eleita a melhor atleta do boxe brasileiro. Fico feliz com isso de estar sendo reconhecida através de um trabalho longo. Comecei a competir tarde, mas venho treinando desde cedo. E sim, eu já imaginava que poderia ser. Eu imaginava que poderia ter bastante chance de poder contribuir com a história do boxe. Mas assim, a gente imagina, sonha, mas quando tudo está acontecendo é outro olhar que você tem. Quando fui [eleita] na primeira vez, eu achei a sensação maravilhosa e queria sentir de novo, na segunda vez... E cada dia agraço a Deus e tento ser melhor do que sou hoje. Então, cada dia busco melhorar mais e assim em diante.

 

Você falou que começou tarde... Começou no boxe com quantos anos?

Comecei a lutar com 18 para 19 anos já. Eu treinava desde novinha, aí tudo falava: "Pô, mas você não vai lutar não?". Mas quando eu fui para Juiz de Fora, lá não tinha muito boxe... Era mais muay thai, MMA. Aí eu respondia: "Pô, quero, mas não tem campeonato". Aí ficou aquilo... Só quando eu fui para São Paulo é que começou a ter os campeonatos e aí comecei a disputar. Demorou um pouco mais por [falta de] oportunidade mesmo, sabe? Aí tinha que sair, meu pai ficou meio assim... Aí foi mais por força de vontade minha mesmo, de querer meter as caras e tentar. Eu falei: "Mano, eu quero trabalhar com isso, quero ser uma atleta". Aí corri atrás para ser atleta e graças a Deus deu certo!

 

O seu pai era boxeador também. Você se inspirou nele para entrar nesse esporte?

Ele era boxeador também, foi tricampeão brasileiro, campeão Norte-Nordeste. Ele tem uma história também. Mas ele foi logo para o boxe profissional, ficou pouco no amador. Foi vendo o amor dele pelo boxe, quando eu era bem novinha, vendo ele treinando, tirando peso que é a pior parte do atleta. Eu via que ele gostava daquilo e me perguntava por que ele gostava de apanhar, de bater? Aí eu fui procurar entender e me apaixonei! Me apaixonei e decidi treinar. Tenho mais duas irmãs, somos três meninas, mas só eu que gostei do boxe. Ele dava aulas [na garagem da casa] para os meninos lá do meu bairro quando a gente morava em Salvador e eu escutava o barulho, né? Eu era bem novinha, escutava o barulho e queria descer. Eu estava dormindo, aí acordava e foi assim que comecei a treinar. Primeiro, comecei por brincadeira. Eu era criança e ficava lá no meio da academia atrapalhando a galera que estava treinando. Comecei assim. Daí fui crescendo, levando mais a sério, passei a fazer os treinos completos e tudo. Aí meu pai perguntou se eu queria. Mas primeiro eles tentaram me proteger de qualquer forma, não deixavam muito, achavam que eu estava na brincadeira, não levava a sério, sabe? Depois quando eu fui crescendo, continuei, aí é que eles viram que realmente eu gostava daquilo ali. Me perguntaram se eu queria, falei que sim, que queria. Aí eles me apoiaram e me apoiam até hoje.

Bia e o pai, Sergipe | Foto: Reprodução / Instagram

 

No seu primeiro Campeonato Brasileiro, você foi eliminada após vencer a primeira luta em 30 segundos, por ser praticante de outra luta, o Muay thai. Sua adversária, que havia sido derrotada, encontrou uma foto sua e fez a denúncia. Como foi isso?

Foi frustrante, fiquei muito triste. Estava muito feliz por estar participando do primeiro campeonato, de ter conseguido uma vitória. Estava muito feliz por estar ali vivendo aquele momento. Mas a partir do momento que eu sabia que tinha que ir embora, que não ia conseguir mais. Eu tinha sido desclassificada por uma coisa até que não era... Se fosse olhar hoje, eu poderia estar participando, só que na hora eu não tinha como provar e nem recorrer. Fiquei triste, até porque tinha gastado muito para estar ali. Eu até pensei em desistir, mas hoje em dia vejo que é uma visão diferente. Precisava passar por aquilo para poder amadurecer e aprender muitas coisas que ocorreram na minha vida. Hoje, na minha vida, eu soube lidar com tudo o que aconteceu comigo em 2014, sabe? Então, eu aproveitei uma coisa negativa para tirar uma coisa positiva. Então, acho que tinha que passar por aquilo mesmo para aprender e para ver se realmente era aquilo que eu queria, porque na hora lá eu falei: "Não, não vou mais lutar boxe. Vou desistir, fazer outra coisa, vou estudar, trabalhar". E não é isso. Passei um tempo meio triste, mas logo depois fui correr atrás e provar para todo mundo que aquilo ali não foi nada e hoje estou aqui!

 

Quando foi desclassificada, você também foi suspensa do boxe. Como foi esse período?

Eu não pude participar de eventos que a Aiba fazia parte, como o Campeonato Brasileiro, até me regularizar. Mas os outros como os Jogos Abertos, Campeonato Paulista, eu podia participar e até continuei. Fui bicampeã paulista, bicampeã dos Jogos Abertos. Eu continuei, não desisti até tudo se ajeitar. Quando tudo se ajeitou, eu vim para a seleção. Na verdade, ainda nem tinha terminado meu afastamento quando eu já estava com a seleção.

Foto: Divulgação


Você sentiu algum preconceito por ser uma menina, hoje mulher, praticando boxe?

Não, eu nunca senti, porque sempre convivi com pessoas do mundo do boxe. Acho que isso acontece sim, acontece alguma forma de preconceito, mas acho que é mais por quem não está ali envolvido, quem não entende muito do esporte. Como eu vivi com muita gente que praticava e que gostava do boxe, graças a Deus, eu nunca sofri nenhum tipo de preconceito não.

 

A Bahia é conhecida como um celeiro do boxe, daqui saíram muitos boxeadores que fizeram sucesso como Popó, Adriana Araújo, mais recentemente, Robson Conceição, que começaram aqui e sempre treinaram aqui, enquanto você fez o caminho inverso. Como foi essa mudança para Juiz de Fora, interior de Minas Gerais?

Quando a gente se mudou para Juiz de Fora meus pais ainda eram casados. Eles se separaram lá em Juiz de Fora. Minha mãe continuou ainda lá durante três anos, depois é que ela resolveu voltar, porque tem meus parentes todos, ainda temos casa em Salvador. Então, ela resolveu voltar e eu voltei com ela. Só que eu morava na Estrada Velha e a academia onde meu pai treinava que era a Champion, onde Robson e Adriana treinavam, é um pouco longe de Nova Brasília. E em Salvador tem o trânsito, eu tinha dificuldades, porque não trabalhava na época. Já meu pai morava próximo da academia em Juiz de Fora, tipo, dava para ir andando. Então, ia ser mais fácil para mim, morar em Juiz de Fora e treinar com meu pai do que morando em Salvador e ir para a Champion para treinar. Aí eu vi e falei: "Quero treinar boxe, quero competir e vou tentar". Conversei com meus pais, eles apoiaram e minha mãe deixou eu ir morar com meu pai para poder treinar, ter essa facilidade de ir treinar. Foi quando deu certo. Eu treinava e dava aula de boxe também, tinha uma renda. Nessa época eu tinha 17 anos, que foi quando eu comecei a ter dinheiro para ir para os campeonatos e comecei a ir para São Paulo. Disputei os Jogos Abertos do Interior, Campeonato Paulista, com o meu dinheiro que eu dava aulas. Depois que participei de dois Jogos Abertos, fiz uma seletiva em São Paulo, que foi quando conheci a galera da seleção [brasileira]. Com esse dinheiro que ganhei dando aula também consegui ficar um tempo em São Paulo, acho que foi por uns seis meses. Foi quando a galera da seleção me convidou para ser reserva de Adriana [Araújo, boxeadora baiana, medalha de bronze nos Jogos de Londres-2012]. Aí quando assinei contrato com a seleção comecei a receber, mas até então eu fiquei um tempo com o dinheiro da poupança que eu tinha juntado dando aulas em Juiz de Fora.


Com Adriana, você foi sparring dela durante os Jogos Olímpicos Rio-2016.

Em 2016 eu fui convocada para ser reserva dela e ajudei nos treinos da seleção. Participei do 'Vivência Olímpica', que foi uma experiência grande para mim e pude conviver um pouco com os atletas que iam competir nos Jogos. Senti a sensação de como era participar dos Jogos, conhecer alguns esportes que eu não conhecia. Acho que isso me incentivou mais a querer participar de Tóquio, de querer conhecer e estar participando de um campeonato tão grande assim que os atletas almejam tanto.

 

E você acredita que essa é a sua vez de conquistar uma medalha olímpica assim como Adriana, que já havia conquistado nos Jogos de Londres-2002?

Pelo meu saldo e pelo meu desempenho, acredito que sim. Acredito que estou no caminho e posso conseguir. Então, é não parar de trabalhar, acreditar, porque está mais perto do que eu pensava.

 

Claro que ainda pode ser cedo, mas você já pensa qual caminho pretende seguir após as Olimpíadas do ano que vem? Pensa em se profissionalizar no boxe? Ou como você praticava Muay Thai, pensa em migrar pro UFC?

Ainda não penso. Muita gente me pergunta isso... Eu vivo de etapas e de momento. Estou curtindo muito esse momento aqui sendo atleta de boxe olímpico, eu penso em Tóquio. Não sei o que vai acontecer, se vou continuar na equipe da seleção após Tóquio, não sei se vou para o profissional... Vou deixar acontecer. Eu vou ver se vou me sentir bem, porque até então eu gosto do boxe olímpico. Do profissional, eu não conheço muito a regra ainda, não sei se eu vou gostar ou não. Porque atleta fica muito longe de casa, tem que abrir mão de muita coisa. E eu queria um pouco ficar em casa curtindo minha família, tem muito tempo que eu não faço e tenho muita saudade. Então, ainda não sei, mais para frente eu penso nisso.


Você tem algum ritual, alguma mania ou algo que sempre faz antes das lutas, antes de subir no ringue? Você tem alguma vaidade?

Eu sou bem tranquila. Não fico muito apegada a essas coisas, não. A não ser com o meu material de luta que eu tenho um carinho especial. Não gosto que fiquem pegando não. Mas eu tenho uma mania de querer tudo limpo quando vou lutar, tipo uniforme, protetor bucal... Eu lavo tudo antes de subir no ringue. Meus amigos ficam me zoando falando que na Europa a galera não tem um cheiro muito agradável. Parece que são poucos países que usam perfume, que tomam banho assim... E eu não, eu sempre vou bem cheirosa, bem limpa. Acho que atrai energia positiva você ir bem arrumadinha, bem limpinha e eu tenho essa mania de fazer isso toda vez que vou lutar. Eu limpo, organizo tudo bem antes para não ter surpresa na hora.

Foto: Divulgação