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kellyn cyclone
Durante anos, sua figura deslizava entre os becos como um sussurro. Ninguém via, mas todos sentiam. Raimundo Alves de Souza, o Ravengar, foi mais do que um homem: foi um fenômeno social. Um personagem esculpido entre a ausência do Estado, o poder corrosivo das drogas e a obediência comprada com favores. Dono de um império que se estendia dos morros de Salvador às noitadas glamourosas da elite soteropolitana, Ravengar reinou onde a política jamais ousou pisar. Sua história é uma ferida aberta, atravessada por violência, estratégia e contradição.
Ravengar nasceu em Salvador, em 1953. Como tantos meninos da cidade, cresceu aprendendo a sobreviver onde a infância termina cedo. No Pelourinho, dividia espaços com pequenos criminosos, alugando quartos e recolhendo apostas do jogo do bicho. Aos poucos, tornava-se conhecido entre aqueles que transitavam entre a margem da lei e a margem da sobrevivência. Era uma sombra útil: discreta, sempre presente.
Quando os tempos mudaram e o dinheiro ficou curto, mudou-se para o Alto de São Gonçalo. Passou a rodar como taxista. E foi ao volante, carregando compras e passageiros, que encontrou um novo filão: o tráfico. Primeiro como entregador, depois como articulador. Transportava drogas para artistas, empresários e políticos. Um serviço de confiança, feito sem barulho, sem riscos. Na boca dos usuários, virou "Raimundão Brabo". Mas o apelido que o eternizaria ainda estava por nascer.
A prisão de Zequinha do Pó, um atleta de remo e professor de natação que comandava o tráfico na região, abriu uma vaga no topo da cadeia alimentar. Ravengar não hesitou. Instalou-se no Morro da Águia, uma geografia estratégica, íngreme, de difícil acesso, esquecida pelo poder público. Ali, fundou seu império, batizado informalmente de "Império Ravengar". Seus seguidores se autodenominavam "Soldados de Ravengar". A estrutura era militar: comandos, hierarquia, patrulhamento constante.
Mas havia algo em Ravengar que o diferenciava dos demais: sua habilidade de misturar medo e favores. Como Pablo Escobar, sabia que o amor comprado valia tanto quanto a obediência imposta. No morro, pagava botijões de gás, comprava cestas básicas, reformava casas. Organizava festas, agenciava bandas, mantinha uma creche. Seus homens, armados até os dentes, usavam rádios e operavam com tática. À polícia, oferecia silêncio e propina. À comunidade, proteção e pequenos milagres do cotidiano.
E era sob o manto do benfeitor que Ravengar ocultava o reinado erguido à margem da lei. Dono de palavras mansas e gestos calculados, chegou a conceder uma entrevista à Revista Veja, onde falava de sua missão social e do banco improvisado que mantinha, de onde saíam empréstimos sem juros destinados à comunidade. Era dali, entre promessas de ajuda e favores silenciosos, que brotava o encanto sombrio de sua influência.
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Nos anos 1990, Ravengar ampliou o negócio. Tornou-se um empresário da noite. Fundou o bar Reluz, a casa de espetáculos Megashow e passou a investir em grupos musicais. A fronteira entre o crime e o entretenimento se diluía sob luzes coloridas. No palco, artistas; nos bastidores, cocaína. Para o público, ele era apenas um nome no outdoor. Para a polícia, um enigma intocável.
Em 1992, a primeira grande operação policial contra ele terminou em fiasco. A polícia invadiu o Reluz, prendeu subordinados, vasculhou imóveis. Ravengar escapou ileso, como se tivesse evaporado. Era um mestre em desaparecer. Delegados e comandantes viraram aliados. Algumas denúncias nem sequer eram registradas. A omissão era o maior ativo do seu negócio.
Foi apenas em 2003, com a chegada do delegado Edmilson Nunes ao Departamento de Tóxicos e Entorpecentes, que a caçada se tornou real. Ambicioso, Nunes traçou uma linha direta entre sua carreira e a prisão de Ravengar. Começou a costurar a queda com paciência e escuta. Descobriu a mansão de três andares no Cabula. No dia 16 de janeiro, a polícia invadiu o local. O que encontrou parecia o cenário de um filme surreal: aquários gigantescos, quadros de líderes contraditórios - de Irmã Dulce a Hitler -, móveis de luxo, e uma coleção de rádio-comunicadores.
Mas Ravengar já não estava ali. Tinha fugido com a precisão de quem antecipa o movimento do inimigo. E ainda assim, ligou para os policiais: “Não plantem nada aí”, avisou, com a calma de quem sabe que ainda está por cima. Seus dias, no entanto, estavam contados.
Foi apenas 37 dias depois, em 22 de fevereiro de 2004, que o rei caiu. Tentou escapar dirigindo um Vectra em alta velocidade pela Linha Verde, mas foi encurralado próximo a Monte Gordo. Levou um tiro no tórax. Saiu do carro com as mãos erguidas, ferido, finalmente derrotado. Sua mulher, Suely Napoleão, também foi presa. Com ele, caía o último pilar de um império que durou mais de uma década.
Quando foi levado pelas mãos da justiça, Ravengar fez ecoar sua voz por meio de uma carta dirigida a um jornalista. Nela, mais do que lamentar a liberdade perdida, Ravengar criticava a postura do delegado Edmilson Nunes, que comandara a operação que resultou em sua prisão. Com a arrogância de quem se considera o senhor do tráfico, ele escreveu: “O estado vai se arrepender de ter me prendido, eu boto ordem na criminalidade”
Em 2006, Ravengar foi condenado a 25 anos e 11 meses de prisão. Tráfico, refino, associação ao tráfico e corrupção ativa. O crime de formação de quadrilha caiu, ironia do sistema que ele corrompeu. Na prisão, impôs sua presença. Escreveu uma cartilha chamada Código de Ética Ravengar, distribuída entre os presos. Regras para convivência. Tentou transformar a cela em gabinete. Foi punido com 30 dias de solitária.
Em 2012, conseguiu o semiaberto. No ano seguinte, liberdade condicional. Mas em 2017, foi preso novamente, desta vez com a própria família, em nova operação contra o tráfico.
Ravengar morreu em 8 de junho de 2023, aos 69 anos, por complicações de uma diabetes. Um fim discreto para alguém que viveu cercado de excessos. Ainda assim, sua lenda persiste. Seu nome é citado com medo, com respeito, com desconfiança.
Para muitos, Ravengar foi um vilão. Para outros, um protetor. Mas a verdade está no meio: ele foi o produto de um país onde o crime, muitas vezes, é mais eficiente que o governo. Onde o fuzil organiza o que o Estado desorganiza. Onde o silêncio é comprado, e o poder, traficado.
Ravengar morreu. Mas o que ele representa continua vivo. Nos morros, nas bocas, nas vielas. No silêncio cúmplice que ainda protege tantos outros Ravengares em ascensão.
“Cyclone não é marca de ladrão, é a moda do gueto, mas com toda discriminação, eu imponho respeito. 'Cap' para o lado, camiseta, bermudão, é de Cyclone. Vou de Cyclone”. O refrão, imortalizado na voz do “Príncipe do Guetto”, Igor Kannário, poderia muito bem ser uma biografia rimada de Kelly Sales Silva. Ou de Kelly Doçura. Ou de Kelly Cyclone. Dama do pó, primeira influenciadora digital da Bahia, patroa do tráfico ou só uma jovem que sonhava com um amor eterno, a depender de quem conta, Kelly foi todas essas mulheres e talvez nenhuma. O que ninguém duvida é que ela foi um fenômeno. Como a marca de roupas que lhe deu nome, Kelly virou um ícone, um furacão periférico impossível de ignorar.
Durante o dia, Kelly exibia bonecas, ursinhos de pelúcia e declarações de amor rabiscadas nas paredes de casa. “Tony, eu te amo de uma forma que não sei explicar”, lia-se. À noite, no Orkut, surgia envolta em armas, roupas de grife e poses de guerra. A doçura dividia espaço com o risco. Criada num lar pacato e religioso, Kelly era tida na infância como “bicho do mato”, introspectiva, apegada à família. Os poucos momentos fora de casa se resumiam à igreja, onde fez crisma e primeira eucaristia. Mas, em algum ponto entre o altar e a rua, a menina virou furacão.
A virada, dizem as irmãs, veio pela dor. Rosiele aponta a separação dos pais como estopim. Carla acredita que tudo começou após o suicídio de Anderson, primeiro namorado de Kelly e pai de seu filho. A adolescente de 16 anos ficou grávida e entrou em colapso: sonhava que jogava o bebê pela janela, escondia veneno de rato no quarto, falava em morrer. O filho sobreviveu, para morrer em 2022 em confronto com a Polícia. O menino não chegou aos 20 anos. A mãe não chegou aos 23.
Foi nesse caldo de traumas que Kelly encontrou abrigo nas festas de pagode e no universo da ostentação periférica, onde o crime e o glamour se tocavam na esquina. Conheceu Bombado Doçura, percussionista da banda Saiddy Bamba, e ganhou com ele não só fama, mas também o apelido. Depois que o namoro acabou, largou o “Doçura” e adotou “Cyclone”, em homenagem à marca de bermudões e camisetas largas adorada nas favelas da época. O nome virou identidade. E a identidade virou personagem.
Kelly se apaixonava com intensidade e velocidade. Namorou Sidnei Ferreira, traficante do Garcia, morto pela polícia; depois Hugo, assaltante, morto em briga. Os nomes viraram tatuagens: “Sidnei” no pulso, “Hugo” no couro cabeludo. No quadril, uma sentença que resumia sua jornada: “Vida loka”. Na esteira desses amores, Kelly se aproximou cada vez mais das estruturas do crime organizado.
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É nesse ponto que a história individual de Kelly se cruza com a guerra entre facções que moldou Salvador a partir dos anos 2000. Os primeiros namorados da jovem orbitavam facções locais como o Comando da Paz (CP) e o Bonde do Maluco (BDM), organizações nascidas da disputa por território e controle do tráfico. No fim da década, o BDM se tornava a principal força bélica da capital baiana, rompendo com o CP e estabelecendo uma rede de violência que se infiltrava em todas as camadas da vida urbana. Kelly, embora nunca oficialmente ligada a nenhuma dessas organizações, circulava com quem estava no topo da cadeia, uma presença que incomodava, atraía e assustava.
Sua consagração como personagem pública veio com a “Festa do Pó”, em fevereiro de 2010. O evento, recheado de cocaína, picanha e pagodão, terminou com 44 detidos e manchetes em todos os jornais. Kelly estava entre eles. Na delegacia, negou envolvimento com o tráfico, disse que a droga era de “outros” e ganhou mais uma página na mitologia popular de Salvador. Daí em diante, foi estrela de programas policiais, tema de comunidades no Orkut e símbolo de uma juventude que misturava rebeldia, desejo de ascensão e autoficção digital. Antes que o termo existisse, Kelly foi uma influenciadora, com seu estilo, seu drama, sua pose.
Cogitou se candidatar a vereadora, em 2012. A bandeira? Combate às drogas. Ironia ou redenção, ou talvez só marketing. Kelly sabia se vender. Mas não sabia se proteger. Na madrugada de 18 de julho de 2011, ela foi assassinada após sair do Salvador Fest. Vestia uma camisa da seleção argentina e uma saia da Cyclone, seu uniforme de guerra. Saiu da festa passando mal, entrou no carro de Carlos Gustavo Cohen Braga, o Gustavinho, herdeiro de uma linhagem policial e, segundo o Ministério Público, também do crime.
Horas depois, foi vista correndo ferida na Rua Romualdo de Brito, em Lauro de Freitas. Tinha sido esfaqueada no abdômen. Um homem atirou duas vezes de dentro do carro. Kelly caminhou alguns metros, caiu morta numa praça pública. A perícia confirmou a brutalidade. A investigação? Não confirmou quase nada.
No primeiro momento, Gustavinho foi o principal suspeito. Mas em 2012, o inquérito mudou de rumo: atribuiu o crime aos irmãos Miminho e Véio, supostamente a mando de Tony Rogério, um traficante federal, o amor de Kelly. Tony desconfiava de uma traição com Gustavinho.
A história, no entanto, ruiu no tribunal. Em 2016, o trio foi inocentado por falta de provas. Desde então, ninguém mais foi julgado ou sequer investigado. O caso está em aberto. A morte, sem dono. A verdade, esfarelada como o pó das festas que Kelly frequentava.
Quatorze anos depois, resta o mito. E ele segue vivo. Kelly Cyclone sobrevive nas fotos pixeladas, nos vídeos de pagode, nos versos que ainda ecoam nas caixas de som do subúrbio. Ela foi símbolo da ascensão periférica e da tragédia de uma geração marcada por luto, ostentação e violência.
Em um país onde a fronteira entre o sonho e o crime é tão fina quanto a pele tatuada de uma jovem de 22 anos, Kelly não foi só vítima. Nem só culpada. Foi um reflexo. E como os ciclones, ela passou, deixando destruição, memória e silêncio.
O tempo passou. Kelly se foi. Mas, na periferia, a moda ainda é “descer de Cyclone”.
Curtas do Poder
Pérolas do Dia
Alexandre de Moraes
"As instituições mostraram sua força e sua resiliência".
Disse o ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo que investiga os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, ao proferir uma manifestação antes da leitura de seu relatório no julgamento, nesta terça-feira (2).