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Saúde mental dos policiais da Bahia: Por que o "peso da farda" é uma questão de segurança pública?

Por Manuela Meneses

Saúde mental dos policiais da Bahia: Por que o "peso da farda" é uma questão de segurança pública?
Foto: Alberto Maraux / SSP-BA

A farda pode até pesar no corpo, mas o peso maior é no psicológico. Cenas trágicas, confrontos armados, ameaças e uma permanente sensação de vulnerabilidade. O que parece até a descrição de um roteiro de filme é a dura realidade de muitos policiais brasileiros. Em estados como a Bahia, que lidera o ranking de mortes violentas no país, segundo o Atlas da Violência 2025, e tem a segunda polícia que mais mata, de acordo com o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a rotina de um profissional de segurança os mantém em estado de alerta constante. Essa pressão contínua tem consequências profundas — em 2024, o maior número de mortes entre policiais no Brasil foi por adoecimento emocional: 126 agentes tiraram a própria vida.

 

Dois incidentes em Salvador, que ganharam repercussão na mídia, ilustram o resultado da tensão cotidiana que esses profissionais enfrentam. Um dos mais recentes ocorreu na madrugada do dia 26 de julho deste ano, quando um policial militar foi apontado como suspeito de disparar, ao menos uma vez, nas imediações de um estabelecimento comercial no Rio Vermelho, um dos bairros mais boêmios da capital baiana. Na ocasião, não foram localizadas vítimas. Posteriormente, uma mulher procurou a delegacia relatando ter sido ferida por estilhaços durante o incidente.

 

Já em 2021, um outro episódio envolvendo um policial militar em "surto" mobilizou Salvador e resultou em uma morte. Armado com um fuzil, o soldado Wesley Soares Góes, de 38 anos, efetuou diversos disparos para o alto na região do Farol da Barra, um dos principais cartões-postais da cidade. Após cerca de 3 horas e meia de negociações com equipes do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), o PM acabou sendo baleado depois de atirar na direção dos agentes. Wesley, que era noivo e integrava a 72ª Companhia Independente da Polícia Militar havia pelo menos quatro anos, chegou a ser levado para o Hospital Geral do Estado (HGE), mas não resistiu aos ferimentos.

 

Policial Militar que surtou na Barra
Policial militar que disparou tiros para cima na região do Farol da Barra | Foto: Reprodução / Redes Sociais | Alberto Maraux / SSP-BA

 

Apesar de terem contextos e intensidades diferentes, ambos os episódios sugerem sinais de desequilíbrio emocional ou comportamental por parte dos agentes envolvidos. O fato é que os casos que ganham manchetes são a ponta de um iceberg de um problema sistêmico e, muitas vezes, silencioso: o esgotamento psicológico dos policiais. A rotina, o medo e a falta de suporte adequado têm um custo que se manifesta de diversas formas, afetando a vida dos profissionais e a segurança da sociedade.

 

A saúde mental, definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um estado de bem-estar que permite ao indivíduo enfrentar os desafios da vida, é um direito garantido pela Constituição Federal como parte do direito à saúde. Isso significa que o cuidado com o psicológico desses trabalhadores não é apenas desejável, é uma obrigação do Estado.

 

Ainda assim, quando se trata da saúde de quem arrisca a vida para proteger a população, o cuidado muitas vezes chega tarde — ou não chega. Atualmente, 49 psicólogos integram as iniciativas da Polícia Militar da Bahia (PM-BA), realizando cerca de 1.200 atendimentos mensais. Com um efetivo de 31.657 policiais militares na Bahia, a média acaba sendo de um psicólogo para cada 646 profissionais.

 

O PESO DA FARDA
Diante desse cenário, especialistas alertam que o desgaste psicológico entre esses profissionais é cada vez mais preocupante. As consequências da exposição contínua a situações traumáticas sem suporte emocional adequado vão desde distúrbios de ansiedade, depressão e burnout até comportamentos impulsivos em serviço e, em casos mais graves, suicídio.

 

Atuando no atendimento a policiais na capital baiana, o psicólogo Kito Gois, especialista em psicopatologia, destaca que a profissão demanda um alto nível de vigilância, o que sobrecarrega o aspecto emocional.

 

“O corpo se adapta à tensão, mas a mente responde com sintomas que muitas vezes passam despercebidos ou, pior, são normalizados no ambiente de trabalho. Em Salvador, isso é ainda mais evidente quando consideramos as condições de enfrentamento em comunidades vulnerabilizadas, onde o risco de morte, o medo constante e a sensação de impotência criam um cenário de trauma acumulado”, explica Gois.

 

De acordo com o psicólogo, a maior parte dos que procuram atendimento ainda o faz por iniciativa própria. No entanto, essa busca quase sempre carrega o que ele chama de um “pedido silencioso de ajuda”. “[Eles] vêm desconfiados, muitas vezes sem saber direito como falar da dor, como se sentir fosse uma ameaça à identidade profissional. A farda pesa até no divã”, relata.

 

PRINCIPAIS DIAGNÓSTICOS E SINTOMAS
Além das tarefas cotidianas que exigem alto grau de responsabilidade e decisões rápidas, as longas jornadas de trabalho frequentemente relatadas por policiais contribuem para o surgimento da Síndrome de Burnout — conhecida como síndrome do esgotamento profissional. Outro problema comum entre os profissionais da segurança pública é o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que pode aparecer pelo acúmulo de cenas violentas e situações extremas ao longo do tempo.

 

O psiquiatra Antônio Geraldo, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), frisa que o estresse é uma reação natural do organismo a estímulos externos, sejam eles negativos ou positivos, e ressalta que, em geral, é passageiro. Já o TEPT é um quadro psiquiátrico que pode surgir após a exposição a eventos traumáticos intensos, como confrontos armados, mortes violentas ou ameaças à própria vida, e se caracteriza por sintomas persistentes e debilitantes.

 

O médico ainda menciona que os sinais de alerta incluem sintomas intrusivos, como pesadelos, memórias e flashbacks, bem como a evitação persistente de coisas e lugares que remetam ao evento, distanciamento emocional, perda de interesse ou prazer em atividades que normalmente seriam prazerosas. A culpa, vergonha, insônia, hipervigilância e irritabilidade também entram na lista de indicadores. “Quando esses sintomas afetam o desempenho profissional, as relações interpessoais ou a qualidade de vida, é hora de buscar um psiquiatra”, orienta.

 

O TABU DA VULNERABILIDADE
O psicólogo Kito Gois chama atenção para o estigma que ainda cerca o cuidado com a saúde mental dentro das corporações. Segundo ele, é comum que agentes fiquem receosos de que a terapia seja interpretada como sinal de instabilidade ou incapacidade.

 

“Em uma cultura institucional que valoriza o controle, a força e a frieza, admitir sofrimento pode parecer uma ameaça à própria carreira. Isso faz com que muitos adiem a busca por ajuda até o limite, quando os sintomas já se transformaram em sofrimento grave. O problema é que, nesse ponto, o processo terapêutico costuma ser mais lento e doloroso”, menciona.

 

O preconceito enraizado nas estruturas policiais também contribui para que muitos servidores ignorem os próprios sinais de adoecimento, por medo de serem vistos como fracos ou despreparados.

 

Gois enfatiza que o ambiente institucional pode funcionar tanto como fator de proteção quanto como elemento agravante. Quando há suporte real, escuta ativa, espaços seguros para diálogo e acolhimento emocional, o colaborador se sente validado e menos isolado.

 

“Infelizmente, o que vemos com mais frequência é o oposto: ambientes hierárquicos rígidos, marcados por silêncio emocional, pouca política de saúde mental e muita cobrança. Isso gera medo, desgaste e, muitas vezes, afastamentos que poderiam ser evitados com uma cultura institucional mais humanizada”, avalia.

 

IMPACTO NA ATUAÇÃO POLICIAL
O psicólogo também destaca que um policial emocionalmente adoecido está mais suscetível a agir com impulsividade, cometer erros de julgamento e ter reações desproporcionais — o que coloca em risco não apenas a própria vida, mas a de toda a sociedade.

 

O psiquiatra acrescenta que uma saúde mental fragilizada tem influência direta no funcionamento do indivíduo no ambiente de trabalho. “Doenças mentais como ansiedade e depressão são altamente incapacitantes, e dados recentes mostram que o Brasil registrou quase meio milhão de afastamentos do trabalho por transtornos mentais. Os números também mostram que há um risco maior de suicídio, sendo essa, atualmente, a maior causa de mortes por policiais”, afirma o presidente da ABP.

 


Wesley Soares Góes foi baleado após atirar contra os agentes na Barra | Foto: Alberto Maraux / SSP-BA

 

Para Kito, o papel da psicologia nesse contexto é essencial, abrangendo tanto o cuidado individual quanto a atuação direta nas instituições. “Precisamos de políticas públicas que incluam a saúde mental como prioridade dentro das forças de segurança e de profissionais preparados para acolher essa categoria sem julgamento. Cuidar da mente de quem nos protege é, no fundo, uma questão de segurança pública”, indica.

 

AÇÕES DA POLÍCIA MILITAR DA BAHIA
Procurada pelo Bahia Notícias, a Polícia Militar da Bahia (PM-BA) informou que possui programas institucionais voltados à saúde mental de seus agentes. Dentre eles, estão os atendimentos clínicos psicológicos individuais e em grupo, inclusive para familiares. A corporação promove ações preventivas como palestras, rodas de conversa e simpósios que visam fomentar o diálogo sobre saúde mental e valorização da vida.

 

Entre os principais programas está o de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar, voltado a agentes envolvidos em ocorrências com resultado morte. Nesses casos, o militar pode ser encaminhado a diferentes níveis de acompanhamento emocional. A corporação também adota protocolo específico para situações relacionadas ao suicídio, com foco na prevenção, manejo do comportamento suicida e posvenção.

 

As ações de apoio psicossocial são realizadas em todo o estado, de forma regionalizada. No sudoeste da Bahia, há clínicas conveniadas, que buscam atender os servidores que trabalham na região. Já o programa federal Escuta Susp, com atendimentos remotos, amplia o alcance do suporte aos policiais de municípios do interior.

 

O BN também solicitou à PM-BA os dados referentes às exonerações ocorridas na Bahia em 2024, incluindo informações sobre desligamentos voluntários, expulsões e demissões. No entanto, o órgão informou apenas o número de demissões: 38 ao longo do último ano.

 

PEDIR AJUDA É UM ATO DE CORAGEM
Se você é policial ou conhece alguém que atua na segurança pública e está passando por sofrimento emocional, procure apoio psicológico. 

 

Disque 188 – Centro de Valorização da Vida (CVV), atendimento gratuito, 24 horas.