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Entrevista

Permuta, remédio raro, erro ou estética diferente: quando judicializar a saúde é direito?

Por Jade Coelho

Permuta, remédio raro, erro ou estética diferente: quando judicializar a saúde é direito?
Foto: Arquivo Pessoal

O crescimento de ações de judicialização de temas relacionados à saúde é apontado como um fenômeno que vem crescendo cada vez mais no Brasil. Essa é uma realidade enfrentada por gestores municipais, estaduais e pela União. Quando um indivíduo tenta utilizar um tratamento de saúde ou medicamento específico não disponível no SUS, a previsão da Constituição que coloca a saúde como dever do Estado leva o pleito à Justiça.

 

Na visão de René Viana, que atua há 10 anos como advogado especialista em Direito Médico e Direito à Saúde, a judicialização de um direito básico é um sinal de que a sociedade não está funcionando como deveria.  Ele ressalta que os casos de judicialização deveriam ser uma exceção, mas a partir do momento em que o ente federativo não implementa corretamente os serviços de saúde “isso não quer dizer que o cidadão não possa pleitear junto ao Judiciário a materialização desse direito”.

 

“Não só pode, como deve”, afirma o advogado, pautado no fato de que a Constituição Federal é garantidora desse direito. “A Judicialização não deve ser vista como vilã. Ela é a forma que os cidadãos dispõem, seja através da Defensoria Pública, da advocacia ou do Ministério Público, de exigir a correta implementação das políticas públicas de saúde e buscar o asseguramento do seu direito”, opinou.

 

René, que atua também como professor do curso de pós-graduação da Faculdade Bahiana de Direito, falou ainda sobre processos por erro médico, como a Justiça enxerga os casos de troca de serviços médicos através de permuta, regulação de leitos de UTI, pleito por remédios para doenças raras, e políticas públicas eficientes para redução da judicialização de temas relacionados à saúde. Leia a entrevista completa:

 

Quando um indivíduo tenta utilizar um tratamento de saúde ou medicamento específico não disponível no SUS, a problemática acerca da saúde como dever do Estado se agrava. Esse é um tema complexo e as demandas nessa temática vêm crescendo cada vez mais no Brasil. Na sua visão, sob que perspectiva é preciso olhar para esse fenômeno?

A primeira reflexão deve ser sobre o porquê de precisarmos judicializar questões relacionadas à saúde. A saúde é posta pela Constituição Federal como um direito social e fundamental, garantido e executado mediante políticas públicas. Sempre que for necessário judicializar um direito social, sobretudo fundamental, para que ele seja cumprido, precisamos refletir sobre nossa evolução jurídico-social. A judicialização de um direito básico é um sinal de que nós não estamos funcionando bem enquanto Estado, enquanto sociedade. Mas se o ente federativo não implementa corretamente os serviços de saúde, isso não quer dizer que o cidadão não possa pleitear junto ao Judiciário a materialização desse direito. Não só pode, como deve. Deve porque a Constituição Federal é garantidora desse direito. É a partir desse momento que se abre a possibilidade de forçar o ente federativo responsável pela execução do serviço, seja ele município, estado, Distrito Federal ou União, mediante ordem judicial, a executá-los. A judicialização não deve ser vista como vilã. Ela é a forma que os cidadãos dispõem, seja através da Defensoria Pública, da advocacia ou do Ministério Público, de exigir a correta implementação das políticas públicas de saúde e buscar o asseguramento do seu direito.

 

A judicialização das questões de saúde deveria ser uma exceção. É isso que realmente acontece?

O ideal é que não houvesse necessidade de judicializar direitos básicos, como o direito à saúde. A judicialização deveria ser uma exceção, mas em função da ineficiência da execução das políticas públicas, os litígios acerca desse direito são crescentes. É necessário direcionar os olhares para os motivos causadores desse fenômeno para compreender sua ocorrência.

 

É motivo de preocupação o crescimento desses casos?

Sem dúvida. É motivo de alerta. Um alerta que há tempo se destaca. Repito: se nós estamos vendo crescer diariamente os números da judicialização, é sinal de ineficiência na materialização das políticas públicas de saúde. Se elas estivessem sendo corretamente executadas certamente, nós veríamos esse número reduzir. A gestão pública da saúde pressupõe planejamento situacional por estados e municípios, não somente pelo comando descentralizado do Sistema Único de Saúde conforme diretrizes constitucionais, como também a grande diversidade regional que reflete diferentes impactos na saúde das populações. E não há dúvidas de que as demandas judiciais, muitas vezes, vão de encontro ao planejamento. Todavia, não se pode esquecer que, já há alguns anos, o orçamento federal da saúde vem sendo reduzido e, muitas vezes, contingenciado. É importante lembrar que a Emenda Constitucional 29 estabeleceu o percentual obrigatório dos orçamentos dos estados e dos municípios para a saúde, mas não fez o mesmo em relação ao orçamento da União, deixando uma brecha legal para o subfinanciamento da saúde no plano federal.

 

A judicialização em relação aos medicamentos para doenças raras são as mais comuns. Por um lado, a gente tem o argumento de que esses remédios não são incorporados ao sistema de pela falta de evidências. Mas por outro tem o fato de que, como o próprio nome já diz, são doenças raras e então poucas pessoas estariam disponíveis para estudos, e as evidências não poderiam ser comparadas às de doenças de alta prevalência. Esse argumento usado pelo Estado vai de encontro ao princípio da equidade?

É um tema complexo. Os pleitos judiciais relacionados à Saúde devem estar amparados em evidências científicas. São elas que devem motivar a definição da terapêutica e a dispensação de medicamentos. É a pesquisa criteriosa, com estudos randomizamos, que pode assegurar a eficácia das novas tecnologias. Existem órgãos nacionais que detêm a competência legal para autorizar a incorporação de novas tecnologias em saúde, avaliando sua eficácia e segurança em benefício da coletividade. Se estivermos diante de uma situação onde o medicamento já está incorporado, já se mostrou eficaz do ponto de vista científico, se existem evidências científicas que autorizam sua utilização e, ainda assim, não está sendo disponibilizada pelo ente federativo, não há dúvida de que esse direito deve ser pleiteado judicialmente para que seja garantido. A mesma interpretação deve ser utilizada para casos de enfermidades de rara ocorrência. Infelizmente, tem sido muito comum o anúncio de terapêuticas e tratamentos inovadores que prometem cura, mas que carecem de comprovação de eficácia. Os recursos públicos devem ser tratados com muita seriedade, caso contrário, haverá um elevado risco de desperdício, que poderá, até mesmo, ensejar responsabilização do agente administrativo por improbidade.

 

Durante a pandemia da Covid-19 nós vimos alguns casos de pessoas que tentaram na Justiça conseguir vagas de UTI quando o estado estava com altos índices de ocupação e um número expressivo de pacientes aguardando na fila da regulação. Esse mecanismo não acaba beneficiando aquelas pessoas que têm mais condições financeiras para pagar por um advogado, enquanto aquelas que não têm ficam submetidas ao sistema?

Não necessariamente. A regulação de leitos de UTI é um nó crítico do sistema, muito antes da pandemia. A pandemia agravou e nos trouxe um olhar muito mais aguçado sobre essa problemática. A regulação dos leitos de UTI durante a pandemia se mostrou até eficiente com relação a algumas abordagens que anteriormente eram sucessivamente criticadas. Os serviços públicos, em sua maioria, pecam por ausência de transparência acerca de suas informações. Com a saúde não é diferente. Um serviço não será seguro e eficiente se não houver informação clara e transparência com a sociedade. É necessário que haja publicidade acerca do número de leitos de UTI ofertados à população para acolhimento de pacientes infectados com a Covid-19 e sobre os critérios utilizados para gerenciamento da fila. Por exemplo: um dos critérios é a realização de classificação de risco ou Sistema de Triagem de Manchester, que é uma metodologia que permite o gerenciamento do risco clínico e do fluxo do paciente dentro das unidades de saúde considerando os críticos e os menos graves e aqueles que não demandam atendimentos urgentes. Evidentemente, nesse tempo de pandemia vivenciamos situação de exceção em que dentro dos recursos disponíveis, mesmo com as providências de ampliação de leitos em unidades hospitalares de campanha e com os profissionais de saúde em jornadas extenuantes, as angústias se superdimensionaram diante dos iminentes riscos de mortes.

 

Alguns influenciadores digitais, pessoas famosas, figuras com muitos seguidores nas redes sociais, fazem procedimentos médicos através do mecanismo de permuta. No caso de processo por erro médico, esses casos são diferentes de quando um indivíduo faz um procedimento ou tratamento particular ou através de planos de saúde e do SUS?

Em primeiro lugar, é importante destacar que o Sistema Único de Saúde não comporta esse tipo de assistência, com cobrança direta ao usuário, seja por meio de pecúnia ou por permuta. O acesso aos serviços do SUS é universal e gratuito. Já com relação às relações privadas, há essa liberdade para contratação nos termos questionados. Nesses casos tem prevalecido o entendimento dos tribunais superiores, de que análise jurídica deve se dar com amparo no Código de Defesa do Consumidor. Segundo o CDC, não importa se o serviço foi prestado de forma onerosa, mediante permuta ou de forma gratuita, o fabricante ou prestador do serviço será responsável por eventual falha no produto ou no serviço. Portanto, o profissional que assim contratar, caso haja comprovação de erro em sua atuação, poderá ser responsabilizado por eventuais danos provocados.

 

No caso de um procedimento estético, você pode processar o profissional se não gostar do resultado? Ou só se for provado o erro médico?

Depende. Primeiro, a regra geral para os casos de erro médico é que a atuação profissional deve ser analisada como uma obrigação de meios e não de resultados. Ou seja, é disponibilizado ao paciente tudo aquilo que pode apresentar uma maior chance de sucesso, mas isso não significa que ele será, necessariamente, alcançado. A cirurgia plástica pode ensejar obrigação de meios e de resultado. Ela será de meios em casos de cirurgia reparadora, que tem como finalidade corrigir deformidades congênitas ou adquiridas por trauma, por exemplo. Por outro lado, a obrigação será de resultado quando o profissional prometer alcançar determinado resultado ou quando o procedimento for realizado com fins estéticos. Esse é o entendimento predominante nos tribunais superiores. Se houver a pretensão de responsabilizar o profissional de cirurgia plástica por erro médico, será necessária a comprovação da culpa médica em casos de cirurgia reparadora, e de comprovação de que o resultado prometido não foi alcançado em casos de cirurgia com fins estéticos.

 

No Brasil é possível e uma prática adotada os seguros para profissionais? Nos EUA é comum que médicos façam apólices para eventuais processos contra erros médicos.

Sim. Já existem algumas seguradoras que disponibilizam esse tipo de serviço para profissionais da Medicina e da Odontologia. A contratação desse tipo de serviço é uma escolha individual de cada profissional.

 

Antes da pandemia da Covid-19, tendo em vista a redução do atual impacto de R$ 80 milhões por ano devido a casos de judicialização da saúde, a Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) planejava criar uma Câmara Técnica para evitar o alto número de processos em busca de medicamentos e tratamentos. Essa seria uma alternativa efetiva? Que outras políticas o Estado poderia adotar para tentar reduzir esses processos?

A proposta de criação de uma Câmara de Conciliação de Saúde é uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça, considerando os resultados que podem ser alcançados e os benefícios disponibilizados à população, sobretudo se considerarmos que a maioria das demandas que chegam aos tribunais decorre de ineficiência administrativa do poder público, como nos casos em que o paciente se dirige à unidade de saúde do seu bairro para retirar o medicamento que lhe foi prescrito, mas não consegue pois não há em estoque, ou quando são formulados requerimentos de dispensação de medicamentos às secretarias de saúde e estas não respondem ou negam sem fundamento. A litigância exacerbada não interessa à sociedade. Se o sistema funcionar corretamente, não haverá judicialização da saúde ou ela será muito menor. Portanto, a Câmara de Conciliação pode ajudar muito nesse sentido, seja chamando os agentes públicos, mais rapidamente, ao cumprimento de suas responsabilidades, ou seja no asseguramento dos direitos de cidadania com maior celeridade.