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Entrevista

Especialidade 'em crescimento', medicina fetal trata bebês ainda dentro do útero

Por Renata Farias

Especialidade 'em crescimento', medicina fetal trata bebês ainda dentro do útero
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que um em cada 33 bebês nasce com alguma anomalia congênita. O problema é a segunda principal causa de morte em recém-nascidos. Na tentativa de possibilitar a sobrevivência e a qualidade de vida dessas crianças, existe a medicina fetal.

 

"A medicina fetal tem foco primordial no diagnóstico e tratamento do feto, identificando habitualmente através de exames de imagem se aquele feto tem alguma má formação ou sofre alguma repercussão de uma patologia materna", explicou o obstetra Paulo Gomes. Ele é responsável pela implantação do Serviço de Medicina Fetal no Hospital Santo Amaro.

 

De acordo com o profissional, a subespecialidade da Ginecologia e Obstetrícia apresenta diferentes possibilidades de diagnóstico e tratamento do feto, que vão desde medicamentos até uma cirurgia que expõe o feto e depois recoloca-o para que a gravidez prossiga.

 

Gomes ainda ressaltou o altruísmo da mãe nessas situações e a importância de acompanhamento psicológico. "A mãe vai ter um senso de altruísmo absurdo, suficiente para disponibilizar o próprio corpo em prol daquela criança", pontuou. "O psicólogo vai ajudar a mãe a não ter uma visão só da patologia, mas uma visão mais sistêmica, holística daquela saúde materna, porque realmente é um desafio".

 

Durante a entrevista, o especialista ainda falou sobre as dificuldades de acesso ao tratamento via Sistema Único de Saúde (SUS) e riscos existentes.

 

A medicina fetal é uma especialidade da Ginecologia e Obstetrícia, correto? O que caracteriza essa especialidade?

A formação básica do obstetra é a residência médica com especialização em Ginecologia e Obstetrícia. Depois disso, o médico pode fazer uma subespecialidade como a medicina fetal. A medicina fetal tem foco primordial no diagnóstico e tratamento do feto, identificando habitualmente através de exames de imagem se aquele feto tem alguma má formação ou sofre alguma repercussão de uma patologia materna. A partir disso, são propostos, ainda na vida intrauterina, alguns tipos de tratamento ou, após o nascimento, um tratamento mais precoce e direcionado para aquele bebê.

 

Em quais casos um médico com essa subespecializarão é necessário?

A gente lida basicamente com os diagnósticos feitos durante o pré-natal, que podem ser alterações no sistema nervoso central, cardíacas, renais, patologias sindrômicas - aquelas patologias que vêm em um contexto de síndrome - repercussões de patologias maternas. A paciente com hipertensão, diabetes, lúpus pode indiretamente trazer alterações para aquele bebê. Criou-se essa especialidade como um braço da Obstetrícia para romper a fronteira da vigilância do bebê que está dentro do útero.

 

 

Sempre há muita repercussão sobre as cirurgias relacionadas à medicina fetal, mas nem todos os casos são cirúrgicos. Quais são os tipos de tratamento oferecidos?

Exatamente, nem todos os casos são cirúrgicos. Existem diagnósticos em que não há o que se fazer na vida intrauterina, apenas observar para que aquele bebê tenha um nascimento da forma mais saudável possível, assim como a vida extrauterina. Existem tratamentos medicamentosos, que são administrados para a mãe com o objetivo de prover um tratamento para o bebê. Por exemplo, algumas patologias cardíacas podem ser tratadas a partir da medicação da mãe. Por fim, existem intervenções durante a gestação, que podem ser relativamente mais simples - como um diagnóstico, quando é retirado um pouco de líquido amniótico para o estudo - e outras que caminham para um certo grau de complexidade - como quando o bebê precisa fazer uma transfusão dentro do útero a partir do cordão umbilical. Existem ainda intervenções mais complexas, quando a gente precisa realmente fazer uma cirurgia no bebê. Um exemplo é a correção de mielomeningocele a céu aberto, que foi uma das cirurgias realizadas no Hospital Santo Amaro e consiste na identificação do problema na coluna do bebê, então fazemos a abordagem no abdômen materno, exteriorizamos o útero, fazemos uma incisão para expor o bebê, o neurocirurgião faz a correção e, depois, colocamos tudo de volta para que a gravidez possa prosseguir até o momento do parto. Há também procedimentos cirúrgicos feitos durante o parto, para garantir a correção de algum problema no momento do parto, mas mantendo o fluxo placentário. Imagine, por exemplo, um bebê que tem uma alteração de traqueia, então não consegue respirar se for retirado do útero. A cirurgia é justamente para garantir o acesso do oxigênio ao pulmão do bebê, então a gente tira o bebê parcialmente, faz uma técnica na qual ele continua respirando pela placenta, e o cirurgião torácico opera com tranquilidade.

 

Os riscos são maiores, em comparação a uma cirurgia em um bebê mais desenvolvido?

Sim, é uma cirurgia extremamente delicada, assim como as manipulações dessa criança. Por exemplo, nas cirurgias em que a gente expõe o bebê, é aplicada anestesia, mesmo sabendo que ele não vai reclamar. Isso tenta preservar o bebê de algum sofrimento. Obviamente, todo o contexto, desde o instrumental até a manipulação, é mais sutil e delicada, são aplicadas microdoses do que for necessário...

 

A partir de qual período gestacional é possível fazer algum tipo de intervenção?

Vai depender da patologia. Por exemplo, para a correção de mielomeningocele, é possível fazer intervenções de 16 a 25 semanas, sabendo que a literatura me diz que entre 23 e 24 semanas é um bom momento de interrupção. Isso depende realmente do tipo de patologia e de intervenção necessária. Pode ser uma intervenção muito precoce, dentro do útero, ou até uma intervenção que só vai acontecer no momento do parto. Há inclusive alterações nas quais a gente não vai intervir, mas vai orientar a mãe para cuidar do bebê após o nascimento.

 

Mas qual seria o período mais precoce para algum tipo de intervenção?

Do ponto de vista de medicina fetal, é possível fazer intervenções muito precoces de diagnóstico, como a biópsia de vilo corial no primeiro trimestre. Já intervenções no bebê podem ser feitas a partir do segundo trimestre.

 

Qual a importância de um suporte psicológico no momento de apresentar os diagnósticos e tratamentos para os pais? De que forma é possível ajudar principalmente a gestante a lidar com os riscos existentes?

A mãe vai ter um senso de altruísmo absurdo. É um altruísmo suficiente para disponibilizar o próprio corpo em prol daquela criança. Na maioria das vezes, ela não tem benefício algum com os procedimentos que serão realizados. Ela passa por uma anestesia, intervenção, tudo em prol do bebê. A gente precisa orientar a mãe sobre isso, sobre os riscos. É preciso estar muito próximo dessa mãe, porque ela está carregando um fardo muito grande do ponto de vista psicológico. Ela não sabe como aquela gravidez vai continuar, o que ela terá que fazer para cuidar desse bebê... O psicólogo vai ajudar a mãe a não ter uma visão só da patologia, mas uma visão mais sistêmica, holística daquela saúde materna, porque realmente é um desafio.

 

 

Como está a medicina fetal no Brasil, com relação a número de profissionais, estrutura e ensino?

É uma especialidade que está cada vez mais em crescimento. Eu não faço parte dela diretamente, mas vejo cada vez mais os novos residentes de Ginecologia e Obstetrícia buscando a medicina fetal como especialidade. A gente tem grandes centros, mas eles estão tradicionalmente situados em São Paulo. No final das contas, eles são os pilares da formação do que hoje é a medicina fetal no Brasil. Atualmente a gente tem centros aqui na Bahia que tentam também formar esses novos profissionais. Eu acredito que hoje, do ponto de vista de material humano para medicina fetal, a Bahia está muito bem servida. O Hospital Santo Amaro vai trazer esse tipo de profissional para dentro da unidade para complementar esse serviço que já é tradicional. A gente já faz um excelente trabalho com relação a emergência obstétrica, gestação de alto risco e agora vamos trazer a medicina fetal para complementar. O serviço vai contar com especialistas em medicina fetal, um parque tecnológico em ultrassom, médicos de outras especialidades, para um cuidado mais geral para aquela paciente. Hoje quem faz a medicina fetal na Bahia está muito relacionado a clínicas, não tinha essa vinculação com hospital. 

 

E qual a situação atual do acesso via SUS para medicina fetal?

Tudo que necessita de um pouco mais de tecnologia, o SUS claudica. Infelizmente, o SUS tem dificuldade de abraçar situações mais simples, imagine uma mais complexa. Obviamente, a gente vê que determinados serviços têm se esforçado com toda dificuldade. Por exemplo, a Maternidade Climério de Oliveira tem uma certa vanguarda nesse quesito, assim como o Iperba tem sua importância, mas a gente sabe que ainda claudica muito. O acesso não é bom, pacientes deixam de ser diagnosticadas, bebês deixam de ser tratados e isso acaba incrementando os custos da nossa saúde. Se eu consigo fazer um tratamento precoce, o bebê não vai me dar gasto por exemplo na UTI. A gente tem que pensar nisso em um país que carece de recursos às vezes para cuidar até do que é mais simples.

 

O senhor acha que a expansão desse serviço traria quais tipos de benefícios para o país?

Não pensando exclusivamente na medicina fetal, mas em qualificar o pré-natal para identificar as pacientes de alto risco, não só do bebê. Diagnosticar rápido hipertensões, diabetes gestacionais, patologias simples como a sífilis, provavelmente reduziria a quantidade de bebês na UTI, mortes maternas e reduziria também os custos da saúde.

 

Alguns seriados médicos abordam a medicina fetal como algo relativamente comum, inclusive com relação às cirurgias. O senhor acha que isso é positivo, no sentido de apresentar a especialidade ao paciente, ou que atrapalha?

Eu acho que o paciente tem o direito de saber do que ele pode dispor e não só a TV como a internet favorece essa democratização da informação. Se o médico que está no consultório fechado a tudo que está fora não tiver acesso a isso, o paciente vai chegar com uma terapia nova que ele nem conhece. Isso é importante para mostrar que o paciente tem esse acesso e que o médico precisa cada vez mais se especializar e buscar novas informações. Em compensação, a glamorização traz efeitos colaterais ruins. Um deles é achar que a medicina tem resposta para tudo e que resultados de filmes ou isolados em um país ou outro podem ser reproduzidos com facilidade. Informação é importante, mas temos que saber usá-la.