Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies

Marca Bahia Notícias Saúde

Entrevista

Escola nunca deve ser castigo, mas também não deve haver esquema de recompensas

Por Renata Farias

Escola nunca deve ser castigo, mas também não deve haver esquema de recompensas
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

O início do período letivo nas escolas traz consigo uma série de inseguranças e medos. Novos desafios nas disciplinas, novos colegas e professores, talvez uma nova escola. Até mesmo os pais sofrem, principalmente quando se trata do primeiro ano do filho, ainda tão pequeno, naquele novo ambiente.

 

Para o psicólogo escolar Miguel Grisi, é difícil classificar alguma fase como a mais difícil, já que o percurso de cada pessoa é muito particular. Em entrevista ao Bahia Notícias, o profissional ressaltou três elementos que devem existir na dinâmica entre pais e filhos para facilitar o processo, desde o início do período escolar: "presença, escuta e planejamento".

 

Nos primeiros contatos com a escola, é importante que os familiares tornem a nova rotina normal para a criança, mesmo antes do início das aulas. "É bacana dizer 'eu estou te deixando em tal horário e vou voltar em tal horário'. Valorizar o processo de educação, mostrar que vai ser divertido ir à escola, aprender novas coisas, conhecer novos colegas... Dentro disso, tem algumas coisas de metodologia que são legais, como passar na frente da escola e mostrar para que a criança se habitue com aquele trajeto", afirmou.

 

Com o avançar dos anos, os desafios mudam, mas estão sempre presentes. O bullying, por exemplo, é uma questão que pode surgir a qualquer momento. "Quando você tem um ambiente de aprendizagem onde você se sente confortável e pode abraçar seus erros e ser quem você é, para se desenvolver dentro disso, você tem um crescimento tanto qualitativo quanto quantitativo. O bullying vai cerceando isso, torna aquele ambiente hostil", alertou Grisi.

 

Em qualquer situação, acrescentou, é essencial que os responsáveis estejam presentes para ajudar os estudantes no sentido de converter os problemas em ensinamentos. "A gente tem uma geração de pais e mães que querem proteger muito os filhos e filhas da frustração e erro, que são processos muito importantes da aprendizagem. Canalizar isso é entender e demonstrar para seu filho ou filha que o processo é um ensinamento", pontuou o psicólogo. "No entanto, é preciso ter um certo cuidado para nunca colocar a escola como castigo e também não trabalhar no sentido de recompensa".

 

Grisi falou ainda sobre a importância de acompanhar as notas, dar apoio sempre que possível aos filhos e sobre preparação para o vestibular.

 

À medida que as pessoas crescem, os desafios mudam na vida como um todo e, na escola, não é diferente. Qual fase pode ser considerada a mais difícil do período escolar?

Eu não consigo ver uma fase mais difícil, porque somos indivíduos e cada um tem um processo muito específico. Pode ter aquela pessoa que, enquanto criança, na chegada à escolinha, foi super tranquila e, à medida que foi crescendo, com as novas responsabilidades, a adaptação começa a ser mais difícil. Tem também o próprio processo final de Ensino Médio, com a questão de desmamar da escola e pensar em seu projeto de vida, em uma profissão. Cada um tem um percurso muito pessoal, e a dinâmica familiar pesa muito nisso. Por exemplo, para aquelas crianças que têm um vínculo muito forte com a família, é provável que a primeira ida à escola seja muito mais difícil.

 

Um grande desafio, inclusive para os pais, é o início da vida escolar. A questão de deixar a criança sozinha na escola pode ser um problema em alguns casos. Como esse processo deve ser tratado para que aconteça de forma mais tranquila?

Eu penso em três coisas: presença, escuta e planejamento. O ideal é que, primeiramente, a família comece a preparar a criança para essa etapa. Eu vejo que uma coisa muito importante dentro desse processo é escolher uma escola que esteja alinhada com o que a família considera como boa educação e com a rotina familiar. Dentro disso, fazer com que a criança participe desse processo. Por exemplo, depois de conhecer a escola é bacana levar a criança até lá, mostrar como é aquele espaço, quem são os professores... Conversar com a coordenadora é essencial, porque é quem está envolvida em todos os processos e pode ajudar bastante. Depois disso, começar a fazer com que a criança consiga ser uma agente ativa desse processo. Com relação aos horários, explicar a ela que vai haver uma rotina nova. Algumas escolas fazem um trabalho interessante de permitir que os pais fiquem um pouco com as crianças no primeiro dia. Também é bacana dizer "eu estou te deixando em tal horário e vou voltar em tal horário". Valorizar o processo de educação, mostrar que vai ser divertido ir à escola, aprender novas coisas, conhecer novos colegas... Dentro disso, tem algumas coisas de metodologia que são legais, como passar na frente da escola e mostrar para que a criança se habitue com aquele trajeto. Além disso, tem muitas historinhas em quadrinhos e animações que falam sobre a chegada à escola, além de contar um pouco da própria experiência. E não é só a criança que precisa se preparar, tem também a família. É importante controlar a ansiedade para passar segurança. É ter calma para entender que a criança pode se frustrar, chorar no primeiro dia, não querer voltar... Aí entra a escuta. Entender o que a criança está sentindo e desmistificar alguns medos, além de levar isso para a professora e coordenadora, já que elas vão facilitar esse processo.

 

 

Com relação ainda a essa questão da novidade, é importante falar sobre ansiedade, que é muito comum no início de cada ano, com uma nova série, novos professores, colegas... Esse sentimento é ainda mais forte quando há mudança de escola. O que é possível ser feito para preparar uma criança ou adolescente para sair daquele ambiente no qual ele talvez já se sinta seguro para enfrentar tudo de novo?

Nesse caso, entra de novo a questão do diálogo. Eu acho que, às vezes, pai e mãe têm que perceber que não podem estar nem à frente, nem atrás, mas estar do lado. Se vai trocar de escola por transferência de trabalho ou qualquer outra situação, deixe isso claro para a criança. É colocar novamente a criança ou adolescente como participante dessa escolha: "dentro do que a gente acha bacana, a gente pensou nessas instituições" e ouvir o que o filho pensa. No aspecto social, é importante estar muito atento ao primeiro dia, às expectativas. A partir de 11 ou 12 anos, já dá para ter um bom diálogo sobre esse processo. Fique muito atento a casos em que haja muita resistência, porque isso pode revelar alguma insegurança ou situação de bullying, por exemplo.

 

E até que ponto as notas são importantes? O que elas podem revelar?

É muito importante ter noção de que a nota é um sinalizador de um trabalho. Além de olhar o resultado, a família deve transcender um pouco isso e olhar o processo. A nota baixa pode vir por várias situações. Por exemplo, olhar o ano anterior, inclusive o retorno do conselho de classe para saber o que precisa ser trabalhado, como a metodologia de estudo, horários e organização. É possível ter uma situação mais simples, como um aluno de regular para bom em todas as matérias, mas tem uma questão específica com matemática. Você deve sentar para conversar com o aluno e com a escola. Tem uma questão de empatia com o professor, que é importante tentar desconstruir. Pode ser uma questão de dificuldade mesmo, então é possível considerar um trabalho com um psicopedagogo ou uma aula de reforço. Tem outros casos que são generalizados, com os quais é necessário um olhar mais cuidadoso. Pode ser desde uma questão social, quando o aluno não gosta da escola e das pessoas com quem convive, então se torna um ambiente muito hostil. Estar ali faz com que ele se sinta mal e não aberto a aprender. Pode ser também uma questão cognitiva. A gente não pode perder de vista que tem situações nas quais esse aluno pode precisar de um trabalho com uma psicopedagoga ou psicóloga para trabalhar as estratégias de estudo para melhor desenvolvimento da aprendizagem. E pode ser uma questão de organização de rotina. É preciso ter uma leitura muito consciente daquela nota. Há estudantes muito bons que, na hora da avaliação, fica ansioso. Essa pessoa precisa ser fortalecida em sua confiança.

 

Independente da fase, uma questão que pode estar presente em todo o período escolar é o bullying. Como isso afeta o desenvolvimento, tanto como pessoa quanto como estudante?

Isso pode afetar de várias maneiras. Como eu estava dizendo, quando você tem um ambiente de aprendizagem onde você se sente confortável e pode abraçar seus erros e ser quem você é, para se desenvolver dentro disso, você tem um crescimento tanto qualitativo quanto quantitativo. O bullying vai cerceando isso, torna aquele ambiente hostil. Primeiro você perde a vontade de se expor, em todos os sentidos, desde a maneira que se veste e se expressa. Você fica com medo do que aquela manifestação pode gerar e isso retrai seu comportamento. Da mesma forma que isso pode gerar um embotamento que até para o próprio professor acessar é complicado. Por conta disso, surgem certas crenças, como "ele é assim mesmo, fica sentado ali no cantinho dele". Nesse estar sentado no cantinho, a pessoa pode deixar de manifestar muitas coisas e trazer sua contribuição para aquele grupo. É muito importante ver o bullying como algo muito além de um colega que está incomodando. Existem casos específicos nos quais o bullying pode gerar um prejuízo muito grande porque aquele jovem não vai estar aberto para trabalhar com o colega e os professores. Ele se sente muito sozinho.

 

De que forma é possível orientar esse jovem para que ele consiga ultrapassar esse problema?

Nesse momento é bacana ter um trabalho bem unificado com a família, o professor que é o protagonista desse processo e a escola. Quando você percebe esse aluno em um movimento grupal diferente do resto da turma, isso por si só já é uma sinalização, um pedido de ajuda. A família percebe isso e entra na questão da presença constante da família no dia-a-dia do aluno. É importante perguntar como foi o dia, o que aconteceu na escola. Isso dá à família certas ferramentas para entender a rotina do filho. Quando você percebe o filho mais silencioso, resistente para esse diálogo, alguma coisa está acontecendo. No caso do professor e da escola, é preciso entender o que está acontecendo e, dentro disso, observar o que esse aluno comunica. Existe uma questão no bullying que muitas vezes a criança e adolescente não gosta de compartilhar o que está acontecendo, porque acha que aquilo não vai ecoar. Ele vai falar, só vai ser chamado o coleguinha ou vai receber um tapinha moral. É necessário, tanto o professor quanto a escola, transpor essa barreira e intervir tanto com o aluno quanto com o grupo. É importante ainda, dentro da pauta de sala de aula, discutir o respeito ao outro. Os adultos têm discussões nos ambientes de trabalho também, mas os adolescentes estão aprendendo ainda a criar ferramentas para dar conta disso.

 

 

Quais são as questões que mais afligem os jovens nesse período de pré-vestibular e terceiro ano?

Pré-vestibular tem uma coisa interessante, porque o aluno não quer estar ali, ele quer estar em uma universidade. Outra coisa é que, diferente de um aluno do terceiro ano, ele conhece a derrota. O primeiro ponto é mostrar àquele estudante que, se ele tem um sonho de entrar em determinado curso, é preciso se motivar para aquilo. O segundo é a questão de organizar a rotina. Se ele tem uma determinada meta para alcançar esse objetivo de passar no vestibular, tem que se preparar. O aluno de pré-vestibular, diferente do aluno de terceiro ano, não tem uma obrigação de parâmetro concreta. No caso do aluno de terceiro ano, é preciso tirar notas boas para passar. Como no pré não é, ele precisa de uma disciplina, fazer simulados e se avaliar sempre. Ele precisa de parâmetros para acompanhar o rendimento. Uma coisa que converso muito com eles é sobre saber o propósito. Eles vão viver situações parecidas com alunos que repetem de ano: rever toda aquela aula, ouvir as mesmas piadas dos professores... Chega uma hora em que o aluno se desmotiva. Nesse momento, ele precisa ter uma clareza de propósito, que deve ser um combustível. Além disso, uma avaliação não pode ser só uma nota, ela diz o que você precisa estudar mais. Isso vale para todas as séries. Eu sempre trabalho muito a questão do sentimento. Por exemplo, o que você sentiu quando errou uma questão? Errou porque estava muito ansioso, apressado, inseguro? 

 

A dificuldade é maior para alunos do terceiro ano, que precisam conciliar a escola com a preparação para o vestibular?

No caso do terceiro ano, entra uma outra coisa. A gente tem uma geração que cada vez mais cedo precisa fazer uma escolha profissional. É muito importante pensar a respeito disso e onde a pessoa quer chegar, como se vê no futuro. Nesse caso, um processo de orientação profissional é essencial. Tem também a questão da carga horária. Na maioria das escolas, quando o aluno está no terceiro ano, a carga horária aumenta muito, então é preciso se organizar para isso. Ele deve estar em contato com o professor, além de usar o grupo como forma de sustentação, compartilha o que se sente e ter o professor como aliado. O terceiro ano tem uma questão muito especial que é a intensidade dele. Por você estar muito mais tempo na escola do que em casa, é preciso saber usar esse tempo com qualidade. Aí entra a questão do lazer, que é muito relevante. Se não tiver aquele momento de fazer uma atividade para relaxar, chega um momento que não dá conta.

 

Nesse período de vestibular, a gente vê alguns casos  inclusive em reportagens – de alunos que abriram mão de tudo para ficar o tempo todo estudando. Isso pode dar um resultado positivo ou o lazer é realmente essencial?

Isso pode prejudicar, porque é muito custoso. Não é impossível de ser feito, acredito que algumas pessoas têm realmente essa entrega, mas isso não pode ser a regra. Se a pessoa não tiver um processo balanceado, provavelmente ela não vai aguentar um ano inteiro nesse ritmo de exigência. É igual a um atleta em uma maratona: se ele entra com gás do início ao fim e não sabe equilibrar o ritmo, é provável que em algum momento ele canse e desista ou que o pelotão o alcance. É muito legal que esse aluno conheça seus limites e saiba respeitar, porque uma hora o corpo cobra. É muito comum, quando estou fazendo um planejamento de estudo, eu coloco que às 23h a pessoa vai dormir. Então ela fala "mas eu produzo muito à noite, pode colocar até umas 2h da manhã". Se a pessoa tem que estar na aula às 7h, como fica o sono? Isso vale para todas as séries: é no sono que a gente consegue elaborar o que está aprendendo. É o momento no qual o cérebro descansa, a memória solidifica. Quando o aluno vem em um processo de não respeitar o sono, não ter momentos para descansar e equilibrar essa energia investida, começam a surgir situações de irritabilidade, cansaço, pouca concentração, e isso é muito prejudicial.

 

Nós falamos de vários desafios que os estudantes enfrentam, mas de que forma é possível canalizá-los de forma positiva?

Tem uma questão muito engraçada hoje, eu acho que a gente tem uma geração de pais e mães que querem proteger muito os filhos e filhas da frustração e erro, que são processos muito importantes da aprendizagem. Canalizar isso é entender e demonstrar para seu filho ou filha que o processo é um ensinamento. A partir daí, é preciso olhar e saber o que esse ensinamento traz. Ter consciência de que a escola, tanto para os pequenos quanto para o terceiro ano, não vai ser sempre divertida. Vai haver desafios, algumas matérias que ele considera chata, mas é preciso transpor aquela barreira. É preciso entender que aquilo é carregado de um significado e tem uma utilidade, por mais que não pareça a curto prazo. A família deve estar atenta a esse processo. Uma coisa muito boa no inicio do ano é ter um plano de metas. Conversar com o filho ou filha sobre o que aconteceu no ano anterior e o que pode mudar. Desenvolver um processo em que esses desafios sejam canalizados de forma que tenham um significado, isso gera motivação. Quando você vê seu filho ou filha sentado estudando uma matéria na qual ele não teve um desempenho tão bom, mas está se esforçando, é legal dar um reforço positivo. No entanto, é preciso ter um certo cuidado para nunca colocar a escola como castigo e também não trabalhar no sentido de recompensa. É preciso trabalhar com o significado da aprendizagem e estar presente.