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Marca Bahia Notícias Saúde

Entrevista

Grupo quer criar protocolos assistenciais para gestantes privadas de liberdade

Por Renata Farias

Grupo quer criar protocolos assistenciais para gestantes privadas de liberdade
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

Durante a gestação, as mulheres precisam de cuidados a mais com a saúde. No entanto, para a parcela da população privada de liberdade, essa assistência acaba não acontecendo como deveria. De acordo com o técnico em enfermagem da unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica do Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) Mailton Duarte, a principal queixa está relacionada a violências sofridas durante o parto. O profissional é graduando em enfermagem pela Universidade Salvador (Unifacs) e membro convidado do grupo de extensão da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) Gestar e Parir nas Prisões. Recentemente, Duarte foi responsável pela apresentação de um resumo científico do projeto no X Encontro Baiano de Estudantes de Enfermagem (Ebeen). "Nosso interesse maior é pensar nessa assistência em saúde com foco mais humanizado e possibilitar aos profissionais que estão atuando naquele ambiente um entendimento maior do que é necessário para uma mulher privada de liberdade, seja em Salvador ou qualquer unidade da federação. A nossa preocupação maior, com esse trabalho, é fomentar políticas públicas que possam fornecer uma formação acadêmica em saúde para esses profissionais. A partir daí, criar protocolos assistenciais que possam, de fato, implementar uma assistência em saúde de qualidade e humanizada", afirmou em entrevista ao Bahia Notícias. A primeira etapa de trabalho do grupo foi baseada em relatos de profissionais que trabalham com essa parcela da população. O técnico em enfermagem contou que o principal problema observado pelos pesquisadores é a falta de preparo para uma assistência humanizada no ambiente da prisão. "As próprias universidades não têm na grade curricular um processo que leve para essa linha de assistência. Isso já é um déficit no processo de formação profissional, não só da área de enfermagem. Isso envolve a área de saúde como um todo", acrescentou.


Como surgiu o interesse nessa área? Você já havia trabalhado com essa parcela da população?

Eu nunca trabalhei nessa área de obstetrícia, com gestantes. Desde o primeiro semestre, eu já tinha produzindo alguns trabalhos científicos, já publicados em anais de congressos nacionais e internacionais. Uma professora da universidade, Carina El-Sarli, me convidou para conhecer esse projeto de acompanhamento dessas gestantes que são privadas de liberdade, que tem envolvimento multiprofissional para atuação dentro do ambiente prisional aqui em Salvador. Eu fui para um ambiente de discussão na Uneb. Daí surgiu o interesse de tentar entender essa assistência de saúde específica, entender o envolvimento dos profissionais envolvidos nessa assistência, o quanto eles estão preparados para estar ali. Isso me despertou curiosidade de qual seria a dimensão da atuação do enfermeiro dentro desse processo do cuidado de mulheres privadas de liberdade. Observamos que existe um certo despreparo dos profissionais envolvidos nesse processo, até da incumbência do direito do julgamento. O profissional de saúde não tem esse direito ao julgamento, porque ele é capacitado para cuidar da vida, não fazer julgamento sobre situações particulares. Nessa roda de conversa, ouvimos relatos de vários profissionais que já atuam no sistema prisional. O que fica muito claro nesse contexto é a questão da violência obstétrica, com relação à violência verbal. A gente pensou na possibilidade de uma linha de pesquisa que trabalhasse com educação continuada para os profissionais envolvidos nesse processo, para agentes, guardas, profissionais de saúde que trabalham nesse sistema. Tem relatos de prisioneiras que acabam parindo algemadas pelo risco aos profissionais que estão ali assistindo. Os filhos nascem, ficam com um período com as prisioneiras - até seis meses de vida -, depois tem uma creche de apoio assistencial dentro do sistema prisional e, a partir daí, existe um processo de desmame, de desintegração com a mãe. Tem relatos até de filhos de prisioneiras que não quiseram sair daquele ambiente. Nosso interesse maior é pensar nessa assistência em saúde com foco mais humanizado e possibilitar aos profissionais que estão atuando naquele ambiente um entendimento maior do que é necessário para uma mulher privada de liberdade, seja em Salvador ou qualquer unidade da federação. A nossa preocupação maior, com esse trabalho, é fomentar políticas públicas que possam fornecer uma formação acadêmica em saúde para esses profissionais. A partir daí, criar protocolos assistenciais que possam, de fato, implementar uma assistência em saúde de qualidade e humanizada.

 

Qual foi a metodologia usada?

Inicialmente a gente desenvolveu um relato de experiências descritivo, com abordagem crítica e reflexiva. A partir desse relato, foi constituído um resumo científico. O objetivo é transformar isso em artigo e publicar em revistas, divulgar cada vez mais.

 

Então vocês ainda estão nos primeiros passos, certo?

Sim, mas nós tivemos a surpresa de receber um convite para fazer apresentação dessa proposta no maior congresso de nível estadual, realizado pela Uneb.

 

Quais foram os maiores desafios relatados pelos profissionais nessa pesquisa?

O que a gente observou de fato é o despreparo para atuar nessa assistência. Isso gera dúvidas se ele tem segurança para trabalhar ali. Até que ponto ele poderia assistir o parto de uma prisioneira? Quando tem uma complicação no processo, essa gestante precisa ser removida para uma unidade com assistência de alta complexidade. Essa condução é feita, mesmo em trabalho de parto, com ela algemada, escoltada por uma viatura, para tentar resguardar a vida dessa criança e da própria prisioneira. No entanto, a maior preocupação dos profissionais é a própria segurança. Aí entra o trabalho da psicologia e do Estado, com aparatos para esses profissionais de saúde.


 

A pesquisa de vocês defende que a prisioneira esteja algemada ou imobilizada de alguma outra forma no momento do parto?

Não, defendemos o preparo do profissional para atuar nessas situações. Nesse encontro que tivemos, os relatos que mais importantes e que nos instigaram foi dos profissionais envolvidos nesse processo, de relatarem até que alguns profissionais que não são de saúde acabam participando do processo. Por exemplo, guardas penitenciários, carcereiros não são preparados academicamente para atuar em um ambiente desse e não têm nenhum treinamento técnico. Daí surge a violência obstétrica. A intenção é preparar essa equipe para que tenha condição, em termos de humanização, para atender essa população, porque não cabe ao profissional de saúde julgamento, mas preservar a vida.

 

Nesse caso, não é a preparação só da equipe de saúde, mas de todos os envolvidos, certo?

Isso, de todos os envolvidos naquele sistema. Os guardas e agentes penitenciários também acompanham os enfermeiros no momento do parto.

 

O que seria necessário para oferecer essa preparação?

Fomentar políticas públicas de saúde que visam a sistematização da implementação da assistência de enfermagem dentro do ambiente prisional. A sistematização da ciência de enfermagem é o que norteia o cuidado de enfermagem. Através dessa sistematização, poderia se cuidar momentos de educação continuada para esses profissionais que estão dentro desse processo, colocando as premissas para uma assistência de qualidade ao paciente.

 

Falando um pouco sobre essas gestantes, os relatos ouvidos pelo grupo mostrou que elas são ouvidas? As necessidades dessas mulheres são atendidas?

Segundo os relatos a que a gente teve acesso, elas já chegam no sistema prisional vítimas de alguma violência, seja de abordagem policial ou dos companheiros. Elas já chegam frágeis nesse sentido. No entanto, não existe serviço próprio para esse atendimento inicial, para fazer o que a gente chama na enfermagem de acolhimento. Esses protocolos seriam voltados para essa linha de assistência. Cada seguimento da assistência teria um protocolo instituído para que todos falassem a mesma língua e dessem o mesmo atendimento. 

 

Você falou sobre a violência no momento do parto especificamente. No entanto, imagino que existam problemas durante toda a gestação. Quais são as principais queixas dessas mulheres?

Hoje, no sistema prisional, as mulheres gestantes têm acompanhamento de pré-natal como se estivesse no ambiente externo. Tem um enfermeiro responsável por esse acompanhamento, como acontece nas unidades de saúde para mulheres que não são privadas de liberdade. Essa violência não acontece quando elas estão nesse processo. A violência acontece antes.

 

De acordo com o Cadastro Nacional de Presas Grávidas e Lactantes, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou recentemente, a Bahia tem apenas quatro gestantes privadas de liberdade. O grupo de pesquisa chegou a ter contato com alguma delas?

A gente ainda não teve contato com nenhuma delas. A gente teve contato com os profissionais que estão atuando hoje com essas prisioneiras. Hoje na Uneb já existe um projeto de extensão comunitária que faz o acompanhamento dessas gestantes, tanto dentro do sistema prisional, quanto fora quando há distocia no parto. Elas geralmente são referenciadas para o Hospital Roberto Santos, que é a unidade na qual trabalho como técnico de enfermagem. Lá elas também são acompanhadas por esse grupo da Uneb. 


 

A pesquisa tem foco voltado para Salvador. Como está a realidade da capital baiana com relação a isso?

É a mesma realidade do restante do país. Não é uma questão de unidade federada, é uma questão de país. É uma questão de falta de construção de políticas públicas para criação de protocolos assistenciais. As próprias universidades não têm na grade curricular um processo que leve para essa linha de assistência. Isso já é um déficit no processo de formação profissional, não só da área de enfermagem. Isso envolve a área de saúde como um todo.

 

Quais seriam as condições ideais para uma gestante no sistema prisional?

Seriam as mesmas condições que hoje são implementadas nas políticas públicas de saúde da mulher, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Seriam as mesmas diretrizes, pensando que seria dentro de um ambiente do sistema prisional, que é um ambiente diferenciado. O tocante maior é a preparação desses profissionais para atuar nesse ambiente e dar também a esses profissionais o conforto de assistência, a possibilidade de atuar de forma segura. O foco é dar a essas gestantes uma assistência de saúde de qualidade e segura, independente da situação em que ela se encontra. Se ela está à margem da lei não é uma questão de saúde, mas de justiça. Nossa questão é de saúde e é em cima disso que precisamos trabalhar.

 

E o que acontece após o parto? Quais seriam as condições ideais?

Após o parto, o que é preconizado hoje no sistema prisional é que, até seis meses, a criança fica em um ambiente separado das outras prisioneiras, uma espécie de enfermaria. Eles usam hoje, como se fosse uma doula, uma outra prisioneira para ajudar essa mãe nos primeiros meses de socialização com a criança. O que pode ser feito é melhorar essas condições. Por que não ter um profissional de saúde nesse ambiente acompanhando, ao invés de uma outra prisioneira fazendo esse papel?