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Entrevista

Ex-secretário de Saúde critica Mais Médicos e entidades médicas: ‘Foco está desfocado’

Por Francis Juliano / Fotos: Marcela Gelinski

Ex-secretário de Saúde critica Mais Médicos e entidades médicas: ‘Foco está desfocado’
Foto: Marcela Gelinski / Bahia Notícias
Secretário de Saúde da Bahia no governo de Waldir Pires (entre 1987 e 1989), o médico Luiz Umberto tem um pensamento diferente ao que está posto no debate sobre o polêmico programa Mais Médicos. “O foco está desfocado”, disse em entrevista ao Bahia Notícias. Ele, que percorre a Bahia na condição de “aposentado público em tempo integral” - como se autointitula - com trabalhos em saúde pública, condena tanto o modelo do programa, “é uma simplificação dizer que botar mais médicos vai resolver a questão", como a posição das entidades médicas. "Há uma posição muito corporativista na negação de que outros ascendam a um papel”, falou ao se referir também aos vetos ao Ato Médico da presidente Dilma Rousseff, que tanto incomodaram a categoria. Luiz Umberto também tem convicção de que é preciso criar uma carreira para médicos semelhante à que existe para "juízes e promotores". Crítico do modelo de gestão adotado no Sistema Único de Saúde (SUS), que “privilegia o setor privado”, o médico comentou também sobre a reação à chegada dos médicos de Cuba “a vinda do médico cubano não é um problema” e fez relações entre seu mandato como gestor e o do atual, Jorge Solla, entre outros assuntos. Confira abaixo a entrevista na íntegra:
 
 
Bahia Notícias: O senhor, como médico, ex-secretário da Saúde, deputado e um homem ligado ao tema da saúde pública, como tem visto o debate em torno do programa Mais Médicos?
 
Luiz Umberto: Olha, o debate está desfocado por equívocos de um lado e de outro. O grande problema da saúde do povo brasileiro não pode ser resolvido simplesmente com mais médicos. Ele precisaria de uma reestruturação muito profunda do SUS, porque o SUS que existe aí não é o SUS que nós lutamos desde a década de 1970. A luta que existia era a luta da reforma sanitária que incluía um sistema único de saúde. Tinha os princípios gerais que colavam com as lutas pela democracia e a justiça social no Brasil. Então, nós temos um SUS com problemas estruturais e sem as referências mais profundas da reforma sanitária.
 
BN: Muitos dentro da Saúde dizem que o problema do SUS seria a falta de aplicação de uma teoria boa. É isso mesmo?
 
LU: Eu acho que o SUS, mesmo na teoria, tem equívocos profundos. Um deles é que ele passou a ser um grande comprador e pagador de serviços, quando deveria ser um sistema público igualitário para todos. Com muito mais recursos do que ele tem hoje. Esse sistema viria abarcar a grande maioria da população, como a classe média, as camadas populares, como foi feito em Cuba e na própria Inglaterra, que é um país capitalista. E o que foi que houve? O SUS está sendo privatizado por terceirizações e parcerias público-privadas. Portanto, há uma descaracterização profunda do que deveria ser um sistema único de saúde. Por isso, nós temos que ter reestruturação, ampliação e maior financiamento do SUS.
 
BN: O Ministério da Saúde informou que as 700 cidades que não contam com médicos e que os solicitaram no programa Mais Médicos foram recusadas pelos profissionais brasileiros. Isso não reforça o argumento de que os médicos daqui não querem ir para o interior, preferindo ficar nos grandes centros?
 
LU: O problema que se coloca é o seguinte. Por que não falta, em todos os lugares do país, juízes e promotores? Então, porque não se faz uma carreira de médicos, com direito a ascensão, pagamento justo, trabalho em dedicação exclusiva com os médicos juntos a outros profissionais de saúde.
 
BN: Mas há um projeto no Congresso para criar a carreira de médico, como carreira de Estado.
 
LU: Essa carreira teria que ser discutida. Mas, se você for a qualquer cidade pequena lá tem um profissional do Ministério Público, tem um juiz. A mesma coisa você poderia fazer com o médico. Agora, contanto que se tivessem condições de salário e trabalho adequados, um hospital decente, uma unidade de saúde da família, e uma equipe de profissionais com enfermeiro, fisioterapeuta, nutricionista, odontólogo.
 
 
BN: Segundo o governo, os médicos do programa vão trabalhar em unidades de atenção básica, o que não haveria tanta necessidade de infraestrutura como cobram as entidades médicas. 
 
LU: Sim, mas os trabalhos deveriam ser feitos por uma equipe de saúde, e não apenas com o médico. Se não você não tem a parte da educação e da saúde que vão criar a parte preventiva. O médico é apenas um membro da equipe de saúde. Se você monta uma equipe em vários lugares - para não apenas fazer atendimento curativo e passar receita, mas que possa avaliar as condições da população, do coletivo daquela comunidade, que possam fazer educação da saúde, identificar os elementos que estão perturbando e criando agravos à população -, é outra coisa. É uma simplificação dizer que botar mais médicos vai resolver a questão. O que está se precisando é de uma estrutura muito mais profunda do que isso. Por isso que eu digo que o foco está desfocado.
 
BN: Agora tem havido uma celeuma a respeito da vinda dos profissionais cubanos. Entidades médicas têm feito barulho e um deputado de oposição [Mandetta DEM-RS] disse que a chegada deles atenderia a um acordo protecionista entre Brasil e Cuba, que envolveria capital brasileiro na construção do Porto de Mariel, em Cuba - obra tocada pela Odebrecht com recursos do BNDES. Na sua opinião, essa revolta toda tem sentido?
 
LU: Primeiro, é uma questão ideológica. Segundo, é uma questão de oposição. Se fosse outro governo, iam dizer sim aos cubanos. Há uma desqualificação da política institucional que eu acho que está em decadência. Mas Cuba é uma das maiores experiências de saúde do mundo. Uma coisa que tem que se louvar é o esforço que os cubanos fizeram em um país muito pobre, uma ilha que produz pouca coisa, e que conseguiu criar, mesmo com embargo norte-americano, políticas públicas que são referência no mundo. Então, a vinda do médico cubano em si não é um problema, meu problema é de outra ordem. A questão é a seguinte: nós conseguimos ou não deslocar o médico brasileiro nessa estrutura caótica da saúde brasileira. Talvez se começasse antes, nós já teríamos equacionado a questão, com as pessoas recebendo salários condizentes para morar em lugares distantes, com progressão na carreira, e que pudessem depois de tantos anos serem transferidos como existe com os profissionais da Justiça. 
 
BN: A seu ver, a remuneração de R$ 10 mil é atraente para os médicos? O valor é bem maior do que a média do que ganham os assalariados do país.
 
LU: Olha, eu sou professor universitário [aposentado] e se a gente pensar na relatividade, na comparação,  você diria: “não é”. O professor universitário, hoje, poucos, só no último nível, com dedicação exclusiva, estariam ganhando mais de R$ 10 mil. Por isso, nós achamos que ganhamos pouco. No caso dos médicos em início de carreira, eu acho razoável. Mas seria uma coisa que você poderia aumentar como estímulo. Agora, o problema é: Qual é a condição que ele vai encontrar no local de trabalho?
 
BN: Outra questão que se põe como dificuldade para o trabalho dos médicos estrangeiros é a barreira da língua, com os regionalismos de cada lugar. O governo anunciou que vão ser três meses de treinamento para que os médicos se familiarizem com as diretrizes do programa e com a língua portuguesa. É suficiente?
 
LU: É difícil calcular isso. Se for uma coisa intensiva, bem feita, é um tempo razoável. Agora, o que eu considero é quem vai ficar no lugar deles quando eles forem embora?
 
 
BN: o senhor foi secretário de saúde durante o governo Waldir Pires, entre 1987 e 1989, o que é que poderia ser comparado com a atual gestão, no caso com a do secretário Jorge Solla?
 
LU: São dois momentos bem diversos em termos históricos. Antes de Waldir sair, eu saí. [Umberto saiu depois que Waldir saiu do governo para compor a chapa com Ulysses Guimarães para Presidente da República em 1989. Nilo coelho entrou no lugar de Waldir]. Na época, nós não tínhamos constituinte, que só foi finalizada em outubro de 1988. Então eu só passei quatro meses com a constituinte. Mas começamos uma experiência com a Bahia sendo pioneira em articular os diversos sistemas para fazer um sistema único de saúde, antes da constituição de 1988. Começamos a articular a integração da secretaria com o Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social], que era o mais prestador de atenção, com a Sucam [Superintendência de Campanhas da Saúde Pública] que respondia pelas endemias e epidemias. E qual era o nosso ideário: fortalecimento do setor público. Hoje, o fortalecimento, de 1990 para cá, só foi para o setor privado. Segundo: nós não defendíamos essa mercantilizarão excessiva que tem acontecido. Eu sou inteiramente contra a privatização dos serviços de saúde. 
 
BN: Hoje, os planos de saúde são o grande desejo da maioria das pessoas.
 
LU: O que é que você vê hoje? O trabalhador, organizado nos sindicatos, ele luta primeiro pelo salário e logo depois para ter direito ao plano de saúde, para sair logo do sistema público. Mas quem é que sustenta o SUS?
 
BN: O senhor não acha que há uma falta de incentivo nas universidades em formar o chamado clínico geral, que atuaria na medicina de prevenção e atenção básica?
 
LU: A questão é que o mercado estimula muito mais para a especialidade e a sub-especialidade do que outra coisa. A indústria de equipamentos médicos no mundo é tão poderosa que acaba determinando as especialidades médicas e não as doenças. É o que eu falo sobre a mercantilização geral da saúde. Por isso é que o Estado tem de remunerar mais o profissional generalista para inverter a ordem do mercado. Então, depois de formado, o médico generalista entraria já com bom salário e quem quisesse trabalhar no setor privado iria disputar normalmente com outros com o mesmo interesse. 
 
 
BN: E sobre os vetos da presidente Dilma Rousseff ao Ato Médico? As entidades médicas também não apoiam a decisão, porque, segundo elas, não se pode dar autonomia a quem não recebeu preparação específica. Será que é necessária, nos tempos atuais, concentrar funções na figura do médico?
 
LU: Mas já existe na prática enfermeiros e outros profissionais executando funções que antes eram exercidas apenas por médicos. Eu vou lhe dar um exemplo disso porque sempre defendi o trabalho em equipe. A primeira coisa que eu fiz quando assumi a secretaria de saúde foi querer colocar uma enfermeira para diretora do 4° Centro de Saúde em Roma [Cidade Baixa]. Houve um maior rebuliço, inclusive com médicos do conselho [regional] de medicina, por puro corporativismo. E as enfermeiras eram muito mais preparadas do que os médicos para exercer a administração. Mas o que eu digo é que há uma posição muito corporativista na negação de que outros ascendam a um papel. Então, essa é a famosa divisão social e técnica do trabalho. Só que nesta divisão o médico ficou com o poder social que é muito grande. Eu acho que todos deveriam ter uma grande escola de saúde com todos tendo uma formação básica. Depois, quem quisesse se especializar, se especializaria na área de seu interesse.
 
BN: O senhor, como uma pessoa que percorre o interior da Bahia, deve saber da realidade dos municípios. A saúde nesses lugares teve alguma evolução?
 
LU: Você chega nas pequenas cidades do interior, a saúde não é mais praticada pelas prefeituras. Está sendo praticada por empresas que são contratadas para intermediar mão de obra, e terceirizar os serviços. Então, o dinheiro entra em uma conta e sai para a empresa. Eu não acredito em parcerias público-privadas porque o privado vai retirar do público. Não há parceiros aí, não há companheiros de uma mesma viagem.