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Meu bem, meu mal. O aumento do uso de substâncias psicoativas na pandemia

Por Maria Eugenia Nuñez

Meu bem, meu mal. O aumento do uso de substâncias psicoativas na pandemia
Foto: Divulgação

O uso de álcool e outras drogas ainda é um tema complexo, cheio de tabus, difícil de ser abordado, nos toca de perto. Quem não foi levado ao excesso alguma vez na vida com festejos banhados de muita bebida alcoólica? Não recorreu, quando angustiado ou desesperançado a um copo de vinho, cerveja ou um tranquilizante? No imaginário social há uma banalização do assunto quando se trata do uso de bebidas alcoólicas ou medicamentos e um tabu no que se refere a outras sustâncias psicoativas sobre tudo as ilegais. Será que o problema é o objeto droga ou o modo que a usamos?


As drogas, também chamadas Substâncias Psicoativas (SPAs), são todas as substancias, naturais ou artificiais, que, incorporadas no organismo, alteram (deprimem, estimulam ou perturbam) o funcionamento do sistema nervoso central. Existe uma variedade infinita de SPAs (café, álcool, maconha, cigarro, cocaína, ansiolíticos, crack, ecstasy, entre tantas outras), assim como diferentes modos de uso (uso esporádico, habitual, regular, problemático, de risco e uso dependente). 


A ideia de Pharmacom, palavra grega que significa remédio ou veneno, aquilo que pode trazer tanto o bem quanto o mal, manter a vida ou causar a morte, revela a linha tênue que separa o prazer da dor, os diferentes modos de uso e as distintas razões pelas quais o homem tem usado sustâncias desde a antiguidade ate os dias de hoje. A gravidade do uso não é definida pelo tipo de SPAs nem pela quantidade usada, mas depende da relação existente entre três fatores: o produto, a sustância em si, a quantidade e qualidade, os efeitos provocados no organismo; o contexto do uso, o lugar que faz uso, com quem e em que circunstancias, o ritual subjacente ao uso; e o sujeito na sua dimensão biológica- corporal e psicológica, sua historia de vida, a função da droga na sua vida, o que se espera dela.


Como e Porque uma pandemia, como a que estamos atravessando, pode alterar estes modos de uso? A pandemia do Covid modificou significativamente o nosso estilo de vida, as nossas rotinas, os nossos hábitos, nosso cotidiano. Confrontou-nos com medos novos e antigos, incertezas, modos diversos de relação com nossos pares, com o trabalho, com a família, com o mundo, com a visão que temos de nós mesmos. A noção de tempo e espaço, fundamental na percepção de mundo, tem sido alterada. O tempo futuro hoje é um tempo incerto, cheio de duvidas e o passado não nos proporciona sabedoria, já que as experiências nem sempre podem ser aplicáveis. Quanto ao presente, o dia a dia se tornou limitado, repetitivo, tal vez sem brilho. Entediante. O espaço publico e o espaço privado se confundem, não há possibilidade de ir e vir. Não há tempo de espera, consequentemente busca-se a imediatez. Não está sendo fácil adaptarmos a todas estas mudanças na nossa cotidianidade.


Sendo a pandemia uma vivência de potencial iminência de morte, tendo pela primeira vez o isolamento social como experiência de vida, somado ao risco e medo de contagio e ao convívio solitário ou intenso com familiares, ás mudanças nas rotinas e possíveis dificuldades financeiras, os sentimentos de angustia e de incerteza tem aumentado na população em geral, provocando a necessidade de criação de possíveis saídas e soluções para este mal-estar. Por mais paradoxal que seja, começar e/ou intensificar o uso de Sustâncias Psicoativas pode ser uma estratégia de enfrentamento para lidar com os sentimentos e incertezas que a vivencia da pandemia provoca. O que pode se apresentar como solução, alivio, pode acabar sendo um problema. 


Dados prévios, divulgados pela Global Drug Survey — que anualmente faz um dos mais completos levantamentos online sobre o consumo de drogas em todo o mundo —, mostram que, na pandemia, no Brasil, 41% dos entrevistados disseram ter aumentado o número de dias em que consomem álcool. As razões para beber mais variam, mas dois motivos aparecem em destaque: o tédio e o tempo disponível em casa.


Já a Fiocruz divulgou pesquisa sobre comportamentos na pandemia- Pesquisa ConVId- mostrando que 40% da população declarou se sentir triste/deprimida e 54% se sentiu ansiosa/nervosa frequentemente, e que 18% das pessoas relataram aumento no consumo de álcool e 34% de tabaco na pandemia. Quanto à motivação para beber mais, quanto maior a frequência dos sentimentos de tristeza e depressão, maior o aumento do uso de bebidas alcoólicas.


Se pensarmos no uso como procura de prazer ou alivio das tensões, podemos nos fazer a seguinte pergunta: qual o lugar para a “diversão” nesta pandemia? Em período de quarentena, existiu uma migração do consumo do bar e restaurante para o consumo em casa. Este uso é um uso relativamente solitário, o que pode desativar alguns mecanismos de controle que estão presentes quando se usam em grupo e em lugares públicos. A mudança do contexto de consumo pode afetar a experiência e a relação com as substâncias neste período de isolamento. Torna o consumo mais individual do que social, e isso pode ter consequências.


No inicio da primeira onda, a pesar dos medos e incertezas, muitos tinham planos de fazer coisas novas, de se reciclarem, aproveitar o tempo. O tempo da pandemia estendeu-se mais do que se pensava, as vacinas, esperança real de controle da pandemia segue um caminho às vezes mais lento o desejado, o surgimento de novas variantes do vírus provoca inquietação. Na segunda onda, muitos pacientes que conseguiram manter-se equilibrados ou com controle durante a primeira onda, começaram a apresentar sintomas de descontrole, apresentando crise de ansiedade, irritabilidade e angustia. Novos pacientes, usuários compulsivos, começaram a apresentar problemas. Outra preocupação é o policonsumo, ou seja, o uso de mais de uma SPA, de modo alternado ou conjunto, seja para potencializar, intensificar ou anular o efeito de uma SPAs com a outra SPAs . Assim, a ideia de “automedicação” para aliviar sintomas de angustia e ansiedade nos casos de comorbidade entre transtornos psiquiátricos e transtorno por dependência a SPAs, poderiam agravar ainda mais os quadros de doenças.


Como e quando identificar a passagem do controle ao descontrole do uso? Há alguns sinais de alerta para identificar que o uso de SPAs se tornou ( ou esta se tornando) problemático: deixar atividades sociais ou ocupacionais para fazer uso da substância;  não conseguir reduzir a quantidade e/ou frequência de mesmo sabendo que a ingestão de Spas esta  causando danos  físicos, sócias,familiares,laborais, etc.;  precisar fazer uso de  quantidades maiores para obter os mesmos efeitos;  apresentar fissura, desejo intenso; ter dificuldade em controlar o início e fim do uso, começar,por exemplo , a beber pela manhã e não conseguir parar. A identificação de alguns destes sinais indica a necessidade de procura de ajuda especializada.


O Conselho Federal de Farmácia (CFF) apontou um aumento de 17% nas vendas de antidepressivos e estabilizadores de humor em 2020, e a busca por informações sobre medicamentos para reduzir a ansiedade aumentou mais de 100% durante a pandemia, segundo um levantamento inédito realizado pela plataforma Consulta remédios. A passagem por esta pandemia não é inócua, trouxe consequências, algumas tal vez definitivas. Teremos que estar atentos ao que ela nos provoca, às mudanças objetivas e subjetivas na nossa saúde física e mental. Não nos espantemos se houver um aumento no uso de substancias estimulantes, usadas para “levantar o animo”, para se concentrar, se interessar e acreditar no mundo. A nossa clínica do dia a dia, novas pesquisas e estudos poderão confirmar ou não esta questão. O tempo dirá.

 

*Maria Eugenia Nuñez é psicóloga, psicanalista da Elpis Saúde Mental

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias