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Entrevista

No 'Zorra', Evaldo Macarrão celebra a TV e defende potencial de consagração do 'ser ator'

Por Ian Meneses

No 'Zorra', Evaldo Macarrão celebra a TV e defende potencial de consagração do 'ser ator'
Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

“Não escolhi fazer arte. É a arte que me escolheu”. É assim que o ator baiano Evaldo Macarrão define a sua ida para a atuação. Cria do CRIA, Centro de Referência Integral de Adolescentes, o jovem artista de Cosme de Farias já acumula 12 anos de carreira e, atualmente, integra o programa “Zorra”, da Rede Globo. 

 

Com trabalhos no teatro, no cinema e obviamente na TV, Macarrão, que teve o sobrenome artístico gerado por uma brincadeira de um antigo educador, celebra a oportunidade de estar em uma emissora e, ao mesmo tempo, entende que “fazer Rede Globo talvez não seja o que todos os atores queiram fazer, mas é estar no lugar em que você é assistido de uma forma justa ou digna”.

 

Também formado em Pedagogia, Evaldo celebra a capacidade do “Zorra” em “descaracterizar a ideia do preto opressor, favelado e marginalizado”. Para ele, essa mudança o torna “alegre” e “potente” no que faz, na medida em que a atração cumpre uma “grande necessidade” em construir um “outro formato de criticidade, de humor e graça”.  

 

Inspirado em pessoas que fizeram parte da sua construção artística como a diretora Carla Lopes e os atores Ângelo Flávio, Marinho Gonçalves, Carlos Betão, Valdinéia Soriano e Rejane Maia, Macarrão evita se rotular somente como um comediante ou humorista. Negro e vindo da periferia de Salvador, Evaldo Macarrão comemora o fato de ser mais um profissional na televisão capaz de criar representatividade com o público: “Para mim é de tamanha alegria e felicidade ver pessoas que estão se vendo quando me vêem na TV. Isso é muito simbólico, poético, lindo”.

 

Como surgiu seu interesse pela atuação e quando aconteceram as suas primeiras oportunidades para atuar?
Surgiu uma oportunidade de um exercício de teatro de um jovem que já fazia parte do CRIA (Centro de Referência Integral de Adolescentes) e aí um colega veio me chamar para fazer uma oficina de teatro com Sasá, que era a referência comunitária. Sasá reúne alguns meninos da comunidade de Cosme de Farias e eu sou um dos chamados e vou fazer a atividade. Chega lá eu me encanto pelo teatro, continuo a fazer com ele e Sasá me indica para fazer um teste no CRIA, acabo passando e entro num grupo de teatro, que foi o meu primeiro grupo de teatro profissional. Isso foi em 2006. Mas antes, em 2003, eu tive contato com a capoeira e sempre fui chamado nas rodas para pensar alguma coisa e mobilizar alguma coisa voltada a cultura, voltada a arte para comunidade. Até mesmo na escola que eu estudei era muito raro o acesso à cultura, infelizmente, mas eu tive algumas professoras que acreditavam nisso. Uma delas me indicou para fazer uma oficina no Solar Boa Vista. Fiz, mas não gostei, achava que era coisa de abestalhado.

 

Eu tive um contato muito primordial, que talvez foi uma sinalização e um despertar que me sensibilizou para acreditar em fazer teatro e me consagrar ator. Foi com um texto de Ariano Suassuna "O Santo e a Porca", que eu encenei na escola. Daí eu fui me mobilizando e acreditando. Quando eu entro no CRIA em 2007, não era que eu já estava certo de ser ator, mas tinha algo em mim que precisa se despertar ainda mais para essa crença. Fui escolhido e começo a fazer teatro profissional no CRIA com o grupo que falava sobre violência doméstica e violência sexual contra crianças e adolescentes. No final de 2007 faço um teste para o longa "Capitães da Areia". A diretora de teatro do CRIA, que é minha referência artística e hoje minha amiga, que é Carla Lopes, olha para mim e diz que eu vou passar. E acabo passando para fazer Pirulito. Em "Capitães da Areia", já em 2008, ainda no CRIA, eu começo a acreditar mais e me afirmar como ator e ver que de fato ia ser ator mesmo. Quando eu vou para o set de filmagem e tem um monte de gente e atores profissionais com nome forte, eu vejo que estava em um negócio sério mesmo. O cinema me deu esse lugar de afirmação também como cidadão, como pessoa preta, pessoa linda, negra, candomblecista, artista e educador.

 

Quando surgiu a oportunidade para ir para a TV?
Eu lembro que a diretora do filme "Capitães da Areia", Cecília Amado, convidou alguns atores para fazer um cadastro para a Rede Globo aqui em Salvador. Depois que eu vim saber que eu estava sendo testado para a novela "Gabriela", no final de 2011. Em 2013, estava no Bando de Teatro Olodum e recebo a ligação de uma produtora de elenco para fazer uma participação na "A Grande Família", que foi o meu primeiro trabalho de fato na televisão, na Rede Globo, que era o pajé Murici mais novo [personagem do Luis Miranda]. Depois retorno para outra participação que voltava ao passado e vivia o pajé Murici na Copa do Mundo. Surge outra oportunidade de fazer a primeira fase de "Velho Chico", que foi uma coisa bem rápida, mas foi muito legal pelo contato com os atores de lá e uma trupe de atores daqui como Ângelo Flávio, Cláudio Machado e Luisa Proserpio, uma galera boa. Aí em 2018 eu fiz um workshop de humor na Globo e depois surge o teste para o "Zorra", e acabei sendo selecionado.

 

Qual a origem de seu nome? É um nome artístico?
Macarrão vem de uma brincadeira que surgiu no CRIA de um preparador vocal e eu chegava para fazer aula 7h40 da manhã, achava que era muito cedo. Achava que ator não precisava de trabalho de corpo, pensava que era só pegar o texto, ler, memorizar e representar. Fui entendendo que não. Tinha um trabalho intenso com voz, tinha um trabalho intenso com corpo para chegar ao ar da emoção e da interpretação. Aí nesse trabalho de corpo, era outra pessoa que fazia, Djalma Gomes, seu Dija, que era o preparador vocal. Esse senhor achou no dia de fazer a atividade corporal de olhar para mim na roda e eu todo largado. "Ah todo mundo fazendo a atividade, menos você. Todo largado aí na roda, parece um macarrão" e a galera caiu na risada. Eu achei sem graça a piada e as pessoas rirem da piada. Eu retruquei: "Olha meu senhor, meu nome é Evaldo Maurício. Me respeite". Eu com 13/14 anos de idade tendo um posicionamento desses. O mais engraçado não foi a minha defesa, mas a visualização daquele garoto raquítico dando aquela resposta a um senhor de 60 anos e um grupo de pessoas. Que ousadia, que audácia.

 

Passei a aceitar como artístico no Bando, quando fazia "Ó Pai Ó" em 2015 e tinha convidado uma colega para ir ver. Eu disse: "Vou botar seu nome na bilheteria". Esqueci. Ela ficou na bilheteria do Vila Velha, não tinha mais convite, mas tinha um ingresso reservado para alguém da produção, que acabou não indo. E ela na bilheteria tentando se explicar que era convidado de Evaldo Maurício. "Evaldo Maurício? Não tem nenhum ator do bando com esse nome Maurício não". Aí alguém do bando passou e perguntou se era Macarrão. Ela já estava perdendo a esperança que não ia ver, mas acabou entrando. Quando acabou o espetáculo ela falou: "Meu querido, deixa eu te falar uma coisa. Eu to vindo do Rio de Janeiro te dizer que seu nome artístico é Macarrão. Foda-se o Maurício, é Macarrão". E aí fiz a leitura que Evaldo Macarrão tem tudo a ver comigo e com meu arquétipo religioso.

 

Você possui alguma inspiração, seja ela na própria arte ou na sua vida pessoal, que foi o motor para seguir em frente?
Eu tenho muitas mulheres. Tenho Carla Lopes, que foi uma das pessoas mais importantes que disse: "Acredite no sonho, porque é possível. É possível sonhar, acreditar, transformar e realizar. Vá, você é bom ator". Então, para mim ela é a minha musa inspiradora, minha grande referência. Não deixo de ter inspirações de palco, como uma figura como Ângelo Flávio, que diz que é possível fazer teatro negro em uma cidade que tem maioria da população negra, mas que ainda assim se considera uma cidade racista. Tem o Marinho Gonçalves, um colega e companheiro que vi muito tempo encenando e sempre gostei de vê-lo atuando, um ator potente. E Carlos Betão, que é um ator que eu tive uma honra de contracenar na Paixão de Cristo. Tem Valdinéia Soriano e Rejane Maia também.

 


Foto: Paulo Victor Nadal / Bahia Notícias

 

Em abril, mais precisamente no dia 13, você completará 1 ano no elenco do “Zorra”. Desde a sua estreia até hoje, como você descreve essa experiência no humorístico?
É de uma intensidade de emoção, de realização. Eu vim pensando nisso. Quando eu falo de realização no sentido de olhar para trás e ver toda a minha história e trajetória, com muitos obstáculos, com muita dificuldade e chegar a um lugar de consagração. Fazer Rede Globo talvez não seja o que todos atores queiram fazer, mas é estar no lugar que você é assistido de uma forma justa ou digna. Você se revela mais e você é mais divulgado e é consagrado. Fazer um ano no programa é se sentir realizado, me sentir intenso. Eu me entreguei mesmo e para mim foi de um encontro muito belo, porque o "Zorra" congrega com as mesmas coisas que eu acredito, sobre o posicionamento político, social e pedagógico.  Eu costumo dizer que o "Zorra" é um programa que consegue ser político/crítico/social/pedagógico. Tem ali uma coisa educativa de sinalizar, ver, cuidar e falar de uma categoria que é marginalizada com muito respeito e muito cuidado. Comparando a minoria que é consagrada e é bem assistida.

 

Após a reformulação do programa, o “Zorra” passou a ter mais liberdade para tocar nas feridas de muitas questões, principalmente as políticas. Qual avaliação você faz disso e como te impacta? 
Para mim foi de uma grande necessidade a mudança, porque a extremidade que a gente vem vivendo e o lugar extremo que o povo preto está, é de um retrocesso. Se vacilar a favela deixa de ser favela, para ser senzala. Estrategicamente foi pensado a periferia à velha senzala. Os negros escravizados não são mais escravos, mas vamos pensar o lugar deles, vamos pensar o lugar onde eles não tinham vez nem voz. Só que Djamila Ribeiro vem lá e diz: "Lugar de fala aqui meu filho". Foi de uma necessidade grande essa reformulação midiática de programa que atende uma grande camada social. Sair do "Zorra Total" quatro anos atrás, para ir para o "Zorra" com outro formato de criticidade, de humor e graça foi uma grande necessidade. Eu me vejo representado. Não dá mais para brincar com racismo, não dá mais para brincar com "preto quando suja na entrada, suja na saída". Não dá mais para achar isso engraçado, não dá mais para fazer essa velha piada, na verdade, nunca deu, só que antes as coisas era muito veladas e hoje elas estão deixando de ser veladas.

 

E vocês têm esse cuidado com a produção das cenas para não cometerem esse erro, não é? 
Existe uma inteligência de humor que é apontar a graça. Falar para o telespectador do que ele está rindo e o que ele vai rir. É fazer esse telespectador, mesmo sem uma bagagem teórica, entender o que a cena está dizendo. O pobre que não teve acesso a educação, ele vai entender minuciosamente para quem é a crítica e o que é que a gente está rindo. A gente não vai rir do preto que está no tráfico. A gente vai rir do que faz esse preto ir para o tráfico e quem comanda esse tráfico. O porquê de existir o tráfico, o porquê que é tão vulnerável do preto estar no tráfico. Então a cena ela é muito bem colocada nesse olhar analítico, de crítica, sugestão e apontar o principal opressor e agressor da história. E daí a gente ri desse opressor desse agressor. Daí minha identificação e meu pacto de encontro com o programa. No "Zorra", a gente descaracteriza da ideia do preto opressor, favelado e marginalizado e o preto está em outro lugar e isso me deixa muito alegre e potente. Eu sou muito pouco utilizado em personagens que venham caricaturar a minha imagem quanto homem negro para a reprodução que a gente sempre viu de preto na televisão. Isso é muito massa de ter esse cuidado de reconfigurar ideias estereotipadas.

 

Alguns atores com passagem no “Zorra” têm realizado outros trabalhos na televisão, apresentando e atuando em novelas, como Érico Brás, Luís Miranda, Débora Lamm, Maria Clara Gueiros, Fabiana Karla. Em boa parte, os personagens não seguem a linha da comédia. Existe um desejo seu de futuramente também fazer esse percurso?
Eu gosto do humor e me sinto muito feliz fazendo humor. Eu achava que era mais fácil, mas é muito difícil, porque existe uma caracterização, uma composição do trabalho que o ator deve ter para integrar ao personagem que é delicado. Existe um trabalho de ator para esse lugar técnico e emotivo para pegar o telespectador no riso. Talvez, fazer o outro chorar é mais fácil do que fazer o outro rir. Eu adoro o humor porque eu me sinto desafiado. Mas eu quero muito poder fazer um papel bacana em uma novela, uma coisa séria que me dê protagonismo.

 

No "Zorra", eu ainda tenho poucas cenas e estou no gostinho de quero mais. Talvez eu não esteja ainda em evidência por uma questão de hierarquia, talvez nem exista. Mas tem atores que estão há 5 anos no programa e não tem tanta repercussão. Eu entendo que tem um grande elenco, com 23 atores e o programa é bem curtinho. É muito difícil agregar todas as cenas. Eu estou ainda no lugar de paciência. É algo que eu fico ainda inquieto, tanto no lugar de me ver mais, mas também em outros programas e outros trabalhos na Rede Globo até. Eu gosto de me ver desafiado sempre.

 


Foto: Paulo Victor Nada / Bahia Notícias

 

Como é o processo de gravação das cenas? Ocorrem momentos em que você e os colegas se distraem, dão risada?
Total distração. Eu não me recordo chegar no "Zorra" com algum problema e esse problema ser piorado pela energia dos colegas. Se eu for gravar com alguma questão que está me aprisionando, que está me deixando para baixo, eu chego no estúdio e encontro com um dos colegas, já se manisfesta uma graça, uma brincadeira. É piada total, é zorra e brincadeira, é graça o tempo todo. É tanto humor e tanta graça que às vezes a gente vai para a cena e se a gente não se segura acaba dispersando, brincando. Por exemplo, sempre foi muito difícil estar em cena com o Otávio Müller, que é um dos grandes atores. É uma fanfarra, de uma zoação e perturbação o tempo todo... E eu que estava em cena com Otávio tinha, as vezes, que parar, sair, beber uma água, respirar, porque era sempre uma baderna em prática. Isso é muito bacana, porque entende que a gente está trabalhando, mas ao mesmo tempo brincando e se amando. É isso que vem faltando na humanidade. Se falta amor fica tudo muito difícil.

 

Assim como você, outros dois baianos marcaram recentemente o programa, que foram o Érico Brás e o Luís Miranda. Como é para você estar fazendo parte de um movimento, que busca valorizar atores baianos, negros, na oportunidade de mostrar que também são capazes de fazer humor?
[Oportunidade] Necessária. A gente tem muitos atores bons aqui. É tanta gente aqui em Salvador, tanto atores maravilhosos, embasados, com fundamento teórico, que não é só prática. Existe teoria por trás, existe estudo, existe pesquisa. [...] É importante e necessário estar num programa como "Zorra", estar numa novela como "Amor de Mãe", ou em outros trabalhos. Quando eu fui chamado para fazer o teste eu lembro que tinha uma coisa de não deixar esse buraco vago. Tem que ter alguém que não substituísse os meninos, mas que viesse na mesma linha de ator negro e que fosse baiano. Se fosse soteropolitano melhor ainda. Eu não penso em parar de fazer televisão por agora. 

 

No “Zorra” você incorporou a personagem Claudineia, que é diferente de seus outros personagens. Foi a primeira vez que você fez um papel feminino?
Foi a primeira vez que eu fiz uma personagem feminina e adorei. Adorei, porque existe um lugar singular e, na cena, eu fui para o lugar da graça, da comédia e da brincadeira, mas também embarquei no lugar da seriedade. Como é para uma trans se posicionar diante de um abuso. A cena tinha uma intenção de abuso, mas que quebrava na ideia de pagar apoio, flexões. Eu fui para um lugar muito singular dessas trans que são abusadas e violentadas a cada minuto e que muita gente não vê ou finge que não vê. Eu fui muito para esse lugar respeitoso. Postei um texto na rede social sobre a vivência, a minha entrega de viver a personagem e o respeito de poder recebê-la e de dar o meu corpo para esse corpo que é agredido, que é tão violentado e marginalizado. Embalei na poesia do programa para um lugar de posicionamento político e adorei. Estou muito interessado de fazer outros personagem que me coloquem neste lugar de trans ou feminino. Eu adoro essa ideia de composição feminina. 

 

Qual a sensação de ver todas as vezes na abertura do “Zorra” seu nome e você pulando uma grade com roupa de militar?
Isso é massa! O grande barato do programa foi fazer isso. De ter a imagem do ator e o nome. Por exemplo, eu não sou muito conhecido, as pessoas estão me reconhecendo agora. Aqui em Salvador talvez eu seja mais conhecido, porque eu vim construindo uma carreira no teatro e muita gente me viu nos grandes espetáculos. Para mim é de uma inteligência e de uma riqueza. Eu estou construindo carreira na televisão, então, tem muita gente que não me conhece até mesmo aqui. Então isso dá um valor. 

 

E o público, como ele tem reagido?
De uma felicidade, de uma identificação... Eu sou parado na rua e tem pessoas me abraçando dizendo: "Eu só assisto o programa por sua causa". Com muita alegria e muita emoção dizendo que só assiste o programa porque sabe que vai me ver e se sente representado por mim, por ser baiano e por ser soteropolitano. Tem gente também de cor que diz: "Eu assisto porque eu te vejo e me vejo também" por ser negro, por ser preto. É massa hoje ver o "Zorra". Para mim é de tamanha alegria e felicidade de ver pessoas que estão se vendo quando me vê na TV. Isso é muito simbólico, poético, lindo.