Direito a cidade: Salvador esbarra na falta de planejamento para reduzir desigualdades urbanísticas
Por Eduarda Pinto
“A vida é diferente depois do túnel”, foi uma frase amplamente repercutida no Brasil nas últimas semanas, com relação à organização urbana do Rio de Janeiro. Após uma operação policial em duas comunidades da zona oeste, o Brasil foi tomado por uma comoção que expôs o contraste dos modos de vida nos centros urbanos do Brasil, para além da segurança pública. Ficou - ainda mais - claro que as marcas da desigualdade podem ser vistas a olho nu, o urbanismo das ruas, na arquitetura dos domicílios e no uso dos espaços públicos.
Olhando para Salvador, em que bairros mais pobres se amontoam ao lado de shopping centers e prédios de alto padrão, o urbanismo ajuda a explicar como nasceram as comunidades descritas como “favelas”. Para entender esse fenômeno, o Bahia Notícias conversou com a arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), Angela Maria Gordilho.
A pesquisadora, com mais de 50 anos de formação, conta que, para compreender a capital baiana, é necessário fazer uma viagem histórica e considerar fatores econômicos e social que tornam Salvador um exemplo tão complexo de urbanização.
LEIA MAIS:
DESIGUALDADE URBANÍSTICA
Angela detalha que “o urbanismo é o estudo do processo de urbanização da cidade, mas a urbanística é a maneira que essa cidade se faz”. “Se um lado tem pobreza, habitações pequenas, verticalizadas, sem áreas verdes, sem áreas de cultura, sem equipamentos urbanos, por isso elas vão sendo segregadas. Hoje você tem mais um elemento que segrega mais ainda que é a própria violência e o domínio de grupos de contravenção”, destaca a pesquisadora.
.png)
Foto: Tânia Rego / Agência Brasil
A professora de Arquitetura destaca que, em Salvador, a lógica de “periferia” não se aplica como em outro grande centros urbanos brasileiros, justamente porque as zonas mais pobres se misturam com os centros financeiros e de poder. É o caso do bairro de Pernambués, onde está localizado o principal shopping center da capital e possui um dos metros quadrados mais caros da cidade, e ainda foi - ou parte dele foi - considerado uma das maiores favelas de Salvador, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Essa coisa da periferia é exatamente porque ‘está fora do centro’, periferia é o que está fora do centro, mas não é o centro geográfico. Você pode estar dentro do centro geográfico e ser periferia. Nordeste de Amaralina e Calabar, são isso. Porque historicamente não tem as mesmas condições de investimento público do estado e, além disso, o investimento privado é muito escasso”, explica.
Salvador ainda possui uma peculiaridade: nem todas as comunidades ou “favelas” são invasões ou ocupações totalmente irregulares, mas, ainda que as casas possuam alvará de construção e domínio, essas regiões estão “a margem” das legislações urbanísticas.
“As casas são inacabadas, não tem reboco, são pequenas, vão crescendo para cima. Essa periferia, retirando os conjuntos habitacionais, que foram feitos conforme as normas, apesar de mais pobres do que a cidade central, as ocupações não seguem nenhuma norma urbanística da cidade. É uma ocupação a revelia das normas, por isso é chamado de informal também. Não necessariamente por uma questão jurídica, que hoje quase todas estão legalizadas em termos de propriedade da casa e do solo, mas é um urbanismo incompleto”, define a arquiteta.
.png)
Complexo do Nordeste de Amaralina, em Salvador. Foto: Reprodução/TV Bahia
Angela comenta ainda sobre o uso do termo “favelas”. Ela conta que o termo é importado das ocupações do sudeste. “Em Salvador não se usa essa palavra favela. Isso aí vem das novelas do Rio de Janeiro que acabou dominando as áreas de pobreza. Mas em Salvador era chamado de bairros pobres, porque não era ocupação, [o terreno] era arrendamento, ou doação”.
Um ponto de encontro entre a formação das favelas do Rio de Janeiro e Salvador é que, na capital baiana, parte das ocupações em zonas turísticas e de alta renda também foram retiradas por ações governamentais, ainda que menos violentas.
A professora da Universidade Federal da Bahia relata um dos casos: “A invasão da Ondina, que era ali onde tem o Othon, foi retirada e as pessoas foram levadas para Itapuã e Boca do Rio. O Estado foi tirando essas favelas que estavam nas zonas valorizadas, mas nem todas eles puderam tirar, porque algumas já eram muito grandes, como o Calabar”, suscita.
E A GESTÃO?
Enquanto pesquisadora da história do urbanismo de Salvador, Angela Maria relata que ainda teve a oportunidade de atuar como Secretária de Habitação da Prefeitura Municipal de Salvador (Sehab), entre os anos de 2005 e 2008. Trazendo a experiência do âmbito acadêmico para o curto período de gestão, a urbanista explica que todo projeto de reestruturação da habitação começaria pelos bairros e pequenas localidades.
“Eu já fiz alguns planos de bairro para Salvador, são pouquíssimas que existem. Eu fiz exatamente quando estava secretária. Coloquei na prática as coisas que a gente analisava [na Universidade]”, afirma.
Ela destaca ainda o cenário sócio-político de seu mandato: “Nós achávamos que o Brasil ia mudar porque o Estatuto da Cidade tava sendo colocado em prática, os arquitetos todos uma luta muito grande e o governo federal criou o Ministério das Cidades, então havia todo um movimento de ‘Agora vai’”, destaca.
“É preciso se fazer hoje o que se chama regulamentação de Zeis, que são zonas especiais de interesse social. Elas são zonas especiais porque elas não seguem a lei de ordenamento do solo. Não que esteja errado, legalidade do viver na cidade tem que existir, a cidade tem que ser cidadã para todo mundo. É o que se chama do direito à cidade”, inicia Angela.
“E o instrumento mais importante para que essas áreas deixem de ser periféricas socialmente e economicamente é o plano de bairro. Mas não é só fazer o plano e ficar na papel. O plano de bairro é um trabalho que você tem que fazer com muitas mãos ajudando”, completa a especialista.

Foto: Betto Jr./Secom PMS
A doutora em urbanismo destaca que, há tempos, a gestão de desenvolvimento urbano de Salvador está focada em resolver problemas “urgentes” e “imediatos”. “Problema é que não há uma vontade política para fazer isso. As pessoas quando entram no governo e as próprias pessoas com capitais mais altos pensam num futuro imediato”, delimita a professora.
Para ela, “o PDDU [Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano] em vez de melhorar o conjunto da cidade para que a cidade fique bacana para todo mundo, investe somente nessa área central”. Angela Gordilho defende que um projeto de reestruturação da habitação em Salvador teria que ser um plano intergovernamental de, pelo menos, 50 anos.
É POSSÍVEL MUDAR?
Relembrando o contexto histórico da urbanização em Salvador, ela conta que ele pode ser divido em quatro fases: 1. a ocupação das primeiras encostas da cidade, como o Engenho Velho de Brotas e a Federação; 2. a subdivisão dos loteamentos do Subúrbio; 3. a ocupação de áreas remanescentes dos conjuntos habitacionais no “miolo” cidade; e 4. a alienação das áreas verdes, que ela considera como sendo a fase atual.
“Salvador praticamente não tem mais vazios ocupáveis, nem para fazer loteamento, por isso que estão alienando as áreas verdes, algumas delas. Não tô dizendo que isso é justificativa, não, porque se torna a cidade cada vez mais de concreto. Ao contrário, a cidade tem que ser verde, ao menos metade da cidade tem que ser verde. Mas o que acontece? Como não tem mais área, as coisas vão se multiplicando em altura, em verticalização, em consumo das poucas áreas verdes”, explica a pesquisadora.
.png)
Parque Pedra de Xangô, em Cajazeiras X. Foto Valter Pontes / SECOM.
Ela conta ainda que para pensar em soluções, é importante analisar os dados sobre as moradias e formatos de habitação. “O número de casas que precisam de melhorias, algumas até, urbanísticas em Salvador é em torno de 600 mil e o número de domicílios vagos em Salvador é 600 mil também. Ou seja, não é por falta de edificação que as pessoas não estão morando bem, mas tem muito imóvel vago que é na periferia, não necessariamente é no Pelourinho. A maioria está na área central mesmo, na área mesmo histórica da cidade, a cidade antiga, mas não só”, relata Angela.
Para Angela, “nós temos realmente uma cidade que é possível de ser recuperada, mas não é nada mágico, não de quatro anos, nem de oito [anos], nem quinze [anos]”. “É um projeto que tem que ser permanente, contínuo, por, ao menos, 50 anos, e tem que ser um mutirão da cidade inteira”, destaca a ex-secretária.
A pesquisadora ainda destaca outro problema, que é a cultura de urbanidade. “Porque não é só ficar esperando que a Prefeitura e o Estado faça, cada um tem que fazer a sua parte. O problema é que as pessoas também querem tirar proveito de tudo: se o vizinho tem ali [um espaço] e pode arrastar a cerca, ele arrasta. Se a Lagoa de Abaité estiver junto, arrasta. Então tem que ser essa mentalidade da urbanidade para todo mundo”, defende.
“Existe futuro? Existe. Mas é uma questão cultural. Nós temos que avançar, não só na nossa cultura de arte, de cultura [popular], mas também na cultura urbana, porque a cidade que moramos é a nossa casa”, conclui.
