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Da enxada ao império do crime: Roceirinho funda a Katiara e lança um espectro de sombras nas periferias da Bahia

Por Ana Clara Pires

Da enxada ao império do crime: Roceirinho funda a Katiara e lança um espectro de sombras nas periferias da Bahia
Foto: Reprodução

Antes que o crime lhe desse nome, número e um legado sangrento, Adilson Souza Lima era apenas mais um filho do Recôncavo. Chamavam-no de Roceirinho, apelido nascido da terra que ele cavava com as mãos, ainda menino, nos arredores de Nazaré. Era o suor na enxada, a lida diária, o silêncio das lavouras. Nenhum sinal, à primeira vista, de que aquele jovem franzino, de passos humildes e mãos calejadas, um dia fundaria a maior facção criminosa da região.

 

Mas o crime tem seus próprios caminhos. E Adilson encontrou o dele cedo, aos 18 anos, quando passou a carregar pacotes de droga pela cidade, como aviãozinho de um pequeno grupo que controlava o tráfico de forma quase amadora. Havia, então, uma precariedade quase ingênua no comércio de drogas. Pouco controle, nenhuma estrutura, violência em níveis rudimentares. Mas o jovem Roceirinho, mesmo naquele ambiente primitivo, quis mais. Tentou se emancipar, montar seu ponto, caminhar fora da sombra dos chefes. Foi expulso. Banido da cidade onde nasceu.

 

Com a mágoa no peito, partiu para Salvador. No bairro da Valéria, onde tinha alguns parentes, encontrou um novo mundo, mais articulado, mais perigoso, mais sedutor. Ali, conheceu um traficante que queria ampliar seus tentáculos para o Recôncavo. Viu em Roceirinho o instrumento ideal: um filho da terra, com faro para liderança e nenhuma hesitação em sujar as mãos. Roceirinho aceitou. Carro, dinheiro, mulheres, tudo financiado pelo pó que vinha da capital. Em pouco tempo, deixou de ser apenas um empregado. Passou a pensar como patrão.

 

Foi assim, misturando ambição e pragmatismo, que voltou à sua cidade natal. Mas, não para pedir desculpas, e sim para tomar o que um dia lhe foi negado. Recrutou meninos, quase todos filhos da mesma miséria que ele conhecera, armou-os com fuzis e metralhadoras, e começou a eliminar seus antigos desafetos. Tomou Nazaré à força. Transformou a cidade num quartel-general do tráfico. Pagava R$ 150 por semana a cada “vapor”, os que transportavam a droga e, sob seu comando, o faturamento do grupo disparou. Com a cidade subjugada, seus domínios se espalharam como fogo em capim seco: Santo Antônio de Jesus, Maragogipe, Salinas da Margarida, Vera Cruz, Santo Amaro da Purificação. Em Salvador, conquistou espaço nos bairros do Lobato, Valéria e Águas Claras. Era o império em plena construção.

 

Mas o que ele queria não era apenas dinheiro, era ordem, controle, permanência. O crime precisava de uma estrutura sólida, como as empresas que tanto invejava. Preso em 2012, em um hotel de luxo no bairro de Ondina, foi transferido para o presídio Lemos de Brito. Foi ali, entre as grades, que Roceirinho deixou de ser apenas um chefe e virou fundador. Em 16 de outubro de 2013, nasceu oficialmente a facção Katiara, sucedendo o antigo Primeiro Comando do Recôncavo. Tinha estatuto, símbolo, doutrina. Um pentagrama com as iniciais PCRFNK passou a ser tatuado no corpo de cada membro, um selo de lealdade eterna. Roceirinho, o número 33, virou lenda.

 

O estatuto da Katiara não era um documento qualquer. Era um manifesto da nova ordem criminosa baiana. Proibia delatores, homossexuais, estupradores, pedófilos, “talaricos” e usuários de crack. Quem quisesse usufruir dos benefícios do grupo tinha que pagar caixinha de R$ 100 mensais. Cada novo integrante recebia uma “matrícula de batismo” e passava a integrar a engrenagem, com funções bem definidas: conselheiros próximos ao líder, gerentes encarregados da distribuição, soldados para proteger os pontos e os vapores que mantinham o comércio girando. Acima de todos, estava ele o homem da roça, o número 33, o fundador.

 

A Polícia Civil, a essa altura, já o tratava como figura central do crime organizado na Bahia. Em 2013, teve bens bloqueados e sequestrados: uma casa de veraneio em Jacuípe, apartamentos em Aracaju e Lauro de Freitas, uma fazenda no interior, carros de luxo. Tudo comprado com dinheiro do tráfico, registrado em nome de laranjas. No mesmo ano, a Polícia Federal iniciou a Operação Tríade. Foram apreendidas 2,5 toneladas de maconha e mais de 500 quilos de cocaína, carga avaliada em mais de R$ 50 milhões. Um golpe duro, mas não suficiente.

 

De dentro do sistema prisional, Roceirinho manteve firme o comando do Recôncavo até meados de 2018. Com sua visão estratégica, transformou a Katiara em uma cópia funcional do PCC, uma estrutura com disciplina interna, expansão metódica e capacidade de enfrentamento. Mas o tempo trouxe novos inimigos. O BDM, com armamento pesado e respaldo do Comando Vermelho, iniciou sua ofensiva. Em 2020, foi a vez do Comando Vermelho desembarcar na Bahia. Três anos depois, chegou o Terceiro Comando Puro (TCP), aliado do BDM. A guerra se intensificou. Nazaré continua como bastião da Katiara, mas as cidades vizinhas já estão fraturadas. Em Santo Amaro da Purificação, a Katiara sequer sobrevive, o território foi tomado. A violência aumentou. Esquartejamentos, execuções públicas, toque de recolher. 

 

Em 2025, depois de 13 anos no regime fechado, Roceirinho foi transferido para o semiaberto na Penitenciária Lafayete Coutinho. Era o início de uma possível transição para fora das grades. Mas a liberdade durou pouco. No dia 8 de julho, um novo mandado de prisão foi cumprido, expedido pelo Departamento de Repressão e Combate à Corrupção, ao Crime Organizado e à Lavagem de Dinheiro (Draco). A acusação: seguir comandando a Katiara mesmo preso.

 

Roceirinho se defende. Diz que deixou o crime em 2013, que virou açougueiro em Valéria, que usaram seu nome para ganhar fama. Mas sua imagem permanece entre as mais procuradas no Baralho do Crime. Seu número, o 33, continua sendo uma assinatura silenciosa nas periferias. Seu símbolo, o pentagrama, ainda é tatuado por novos soldados. E seu legado, manchado de sangue e silêncio, segue pulsando nas sombras da Bahia.

 

Porque no crime, como na roça, colhe-se o que se planta. E o que Roceirinho plantou foi muito mais que medo, foi um sistema. Um modelo. Uma ideia. E ideias, mesmo quando encarceradas, continuam a andar. Tal como raízes bem fincadas, a herança ainda é viva, nas periferias e em regiões subjugadas pela Katiara. Uma planta (não uma erva) daninha, que as autoridades de segurança não conseguiram, por enquanto, erradicar.