Histórico de atrasos no PDDU revelam crise de planejamento urbano de Salvador e do interior baiano; entenda
Por Ronne Oliveira
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) é considerado um dos instrumentos mais importantes para entender, organizar e desenvolver uma cidade. No entanto, mesmo após 25 anos do início das discussões sobre a importância desse tipo de planejamento, grande parte dos municípios da Bahia ainda não apresenta propostas claras ou atualizadas para estruturar seu crescimento urbano.
O plano funciona como um documento que orienta o desenvolvimento e o funcionamento das cidades. O ‘PDDU’ é o principal mecanismo de entender uma cidade e tem respaldo legal na Constituição Federal e na Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – ou simplesmente, chamada de o Estatuto da Cidade.
Além disso, conforme determina a legislação, o plano deve abordar temas como mobilidade, habitação, infraestrutura, meio ambiente e participação popular. O Estatuto da Cidade recomenda a elaboração do PDDU para municípios com mais de 20 mil habitantes. Mesmo assim, sua aplicação esbarra em barreiras políticas, técnicas e orçamentárias — especialmente nas cidades do interior.
E A BAHIA?
Dados do último Censo do IBGE, divulgados no fim de 2024, estimam que a Bahia possui pelo menos 165 municípios com mais de 20 mil habitantes. No entanto, um levantamento feito pelo Bahia Notícias aponta que, entre os planos de governo dos prefeitos eleitos nas últimas eleições municipais, a ideia de "Desenvolvimento Urbano" aparece de forma explícita em apenas 100 municípios.
Essa situação é vista como um verdadeiro retrocesso, como aponta o antropólogo e professor emérito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Ordep Serra, em entrevista ao Bahia Notícias.
“O PDDU é um projeto amplo que cuida, como diz o nome, da maneira como uma cidade vai se desenvolver. Ele deve ter um escopo temporal amplo. Não vale a pena fazer um PDDU imediatista, como foi feito em Salvador. E ele é absolutamente necessário. Não ter um plano diretor de desenvolvimento urbano é uma irresponsabilidade muito grande”, alerta Ordep.
Na capital baiana, a situação também é preocupante. Com quase dez anos desde sua última atualização – feita em 2015 e sancionada em 2016 –, o novo PDDU ainda depende de trâmites burocráticos para começar a tramitar na Câmara Municipal de Salvador (CMS).
Analisando o tema, o prefeito Bruno Reis (União) indicou em contato com o Bahia Notícias que, em 2023, abrir a discussão “geraria uma grande instabilidade para quem quer investir no mercado soteropolitano". "É óbvio que a gente precisa fazer ajustes, sempre melhorar, mas efetivamente é agora que o PDDU está se consolidando, o novo PDDU. Então minha ideia é deixar para discutir isso efetivamente mais para a metade ou final do ano que vem”, diz o gestor.
Mesmo com atrasos, é importante explicar que a obrigatoriedade legal para elaboração de um Plano Diretor Municipal só se aplica, de fato, a municípios com mais de 100 mil habitantes. Essa exigência está prevista no Estatuto da Cidade (Lei Federal n.º 10.257/2001), que define critérios populacionais para a obrigatoriedade do plano, contundo a atualização e planejamento é indicada para cidades de mais de 20 mil habitantes, inclusive apoiada por cientistas e urbanistas baianos.
“O PDDU não é um documento para ficar na gaveta. Ele deve ser um pacto vivo entre governo e sociedade, constantemente revisado à luz das mudanças urbanas e climáticas”, relembra a urbanista Marlene Costa, professora da Ufba.
Na Bahia, menos de vinte municípios se enquadram nessa faixa populacional: Salvador, Feira de Santana, Vitória da Conquista, Camaçari, Juazeiro, Lauro de Freitas, Itabuna, Ilhéus, Porto Seguro, Barreiras, Jequié, Alagoinhas, Teixeira de Freitas, Eunápolis, Simões Filho, Paulo Afonso, Luís Eduardo Magalhães e Santo Antônio de Jesus.
Para o urbanista Marco Bau Carvalho, em entrevista ao Bahia Notícias, o PDDU deveria estruturar o crescimento urbano de forma equilibrada, considerando uma dimensão social, humanitária e coletiva. “Um PDDU precisa refletir os interesses coletivos. E aqui na Bahia vivemos um processo histórico de jogo de interesses”, avalia o urbanista.
A situação no interior não é diferente. Embora o Estatuto da Cidade estabeleça um prazo de até oito anos para atualização dos planos, a maioria dos municípios segue com os documentos desatualizados ou sequer possui um debate dos gestores sobre a realização de um novo plano.
Um levantamento do Bahia Notícias com os planos de governo de todos os prefeitos eleitos em 2024 identificou que apenas 29 de 417 municípios apresentaram propostas de atualização ou elaboração do PDDU. Isso representa cerca de 10% do total de cidades com mais de 20 mil habitantes segundo o IBGE.
Além disso, em 2024, a pesquisa MUNIC do IBGE revelou que apenas 26 cidades de toda a Bahia possuíam um Plano Diretor de Drenagem Urbana, essencial para prevenir enchentes, alagamentos e outros desastres ambientais. E com um cenário em que grande parte das câmaras legislativas do estado estão aliadas as prefeituras, permitindo uma aprovação mais fácil sem grande oposição maioritária, como na capital baiana.
“Fizemos uma consulta longa e completa no projeto Participa, que foi completamente ignorada. É preciso um investimento científico sério para fazer um bom PDDU. É preciso uma discussão constante com a população. É preciso que a Câmara de Vereadores se envolva em todas as discussões. O que não acontece, né? Em outras ocasiões, a gente tem testemunho de que os vereadores sequer tinham conhecimento do que estavam votando, e recebiam na calada da noite os membros que tinham que aprovar rapidamente, procedendo como lagartixas do prefeito. Isso é muito terrível”, sustenta Ordep Serra.
O atraso na elaboração e atualização dos PDDUs não é recente. Em um artigo publicado na revista Imersão, em 2021, o professor Francisco de Queiroz e o urbanista Hélio Cunha analisaram a situação das 16 maiores cidades do interior baiano, apontando a falta de aprofundamento no debate sobre o tema.
“Ao analisar os PDDUs dessas cidades e realizar visitas a campo, identificamos dois pontos principais: os planos diretores são legislações desatualizadas, sem funcionalidade e sem eficiência prática; e, muitas vezes, esses documentos existem apenas para cumprir a obrigatoriedade legal do Estatuto da Cidade”, concluem os urbanistas.
Ordep Serra, que participou do projeto “Participa”, que ouviu a população de diferentes bairros de Salvador para a elaboração do PDDU de 2016, também critica duramente o processo. Para ele, o plano não somente ignorou a população e a comunidade cientifica, como foi feito sem entender a cidade de Salvador.
“O plano é uma ficção! Temos um PDDU fake. Primeiro, a forma como foi produzido: uma equipe de fora, sem conhecimento sobre Salvador e sem estudos aprofundados. As propostas foram feitas no vazio, sem consulta suficiente à comunidade científica. Além disso, o texto já frágil foi completamente modificado por emendas na Câmara, que desfiguraram ainda mais o projeto”, lembra Ordep.
Imagem da sede da CMS na capital baiana | Foto: Reprodução / Bahia Notícias
O TEATRO NAS CÂMARAS MUNICIPAIS
O urbanista Marcos Bau Carvalho, autor de uma dissertação sobre o PDDU de 2008, afirma que o processo de emendas virou um instrumento de afastamento entre a gestão pública e a população.
“A vontade política dos governantes domina o PDDU. Podemos ter um plano que é, na verdade, um espantalho. As emendas, historicamente, têm sido uma forma de atender interesses específicos, e a falta de consulta pública verdadeira reforça esse distanciamento. O problema é estrutural: o poder público está cada vez mais sofisticado em driblar os mecanismos de participação social”, avalia o urbanista.
Segundo Bau, a falta de penalidade prevista na lei para prefeitos que atrasam a atualização dos PDDUs contribui para o ciclo de omissão como se fosse um 'jogo de teatro' histórico e sem fim.
“O que importa para quem decide não são as boas experiências de planejamento como Barcelona lá fora ou Porto Alegre aqui, mas sim o poder e os interesses econômicos que se escondem por trás de cada emenda. A história mostra isso. O PDDU, na prática, tem virado um teatro. Falta consciência crítica nas esferas de poder”, conclui.
Um dos maiores desafios é justamente a revisão dos planos já existentes. Muitos municípios baianos sequer atualizaram seus PDDU's desde a versão original. Jequié, no sudoeste baiano, é um dos poucos que discute uma atualização recente para 2025. Em muitos casos, os documentos não dialogam com as atuais dinâmicas urbanas — como o crescimento desordenado das periferias, a especulação imobiliária e os efeitos das mudanças climáticas.
Além de orientar o uso e a ocupação do solo, o plano diretor permite que o gestor público, em conjunto com a comunidade, proponha ações para melhorar as condições urbanas e ambientais da cidade. O futuro das cidades baianas depende da capacidade de transformar o PDDU em um instrumento efetivo de desenvolvimento, inclusão e sustentabilidade.