JK Rowling mostra seu feminismo limitado no livro 'Troubled Blood'
por Camila Von Holdefer | Folhapress

"Troubled Blood" é o quinto livro de Robert Galbraith --pseudônimo de J. K. Rowling, autora da saga "Harry Potter"-- protagonizado pelo detetive Cormoran Strike.
Publicado na esteira de uma série de declarações transfóbicas da autora, o livro causou polêmica por causa do personagem Dennis Creed --um assassino em série que se veste de mulher a fim de conquistar a confiança das vítimas. Ao conservar acessórios e peças de roupa como suvenir, ele sente que rouba uma suposta "essência" das mulheres.
Não é um detalhe desprezível. Estamos diante de uma autora que tem deixado muito claro o que pensa a respeito de um grupo vulnerável e frequentemente marginalizado, fornecendo aqui -- mais do que qualquer outra coisa -- uma caricatura do próprio preconceito na ficção.
Não há nenhuma dúvida de que "Troubled Blood" foi pensado para ser um sucesso comercial. Quase nenhum clichê foi esquecido. Até o romance melodramático entre os detetives tem um lugar garantido, com direito a sentimentos ambíguos e nunca reconhecidos de todo.
Cormoran Strike, difícil e enigmático, torturado pelo próprio passado, tem medo de se comprometer. Robin Ellacott, traumatizada pela violência de gênero e por um divórcio turbulento, não sabe bem o que quer. Strike e Robin foram feitos um para o outro, mas não admitem isso.
Mais do que previsível, o livro é uma colagem mal acabada de retalhos de enredos de sucesso. As fontes de inspiração de Rowling --mais audiovisuais do que propriamente literárias, se se considerar o meio a partir do qual se popularizaram -- são óbvias, talvez porque seja óbvia a intenção de levar a trama para as telas.
De Thomas Harris a Dan Brown, passando, é claro, por Stieg Larsson, a autora ciscou nos canteiros certos. Se fosse um soft-porn, "Troubled Blood" teria um personagem trilionário, uma jovem tosca e doses de sadomasoquismo pasteurizado.
"Troubled Blood" não é só um Frankenstein feito de narrativas conhecidas, mas um romance caça-níqueis que atira para todos os lados, sem distinção. Uma ampla gama de personagens permite à autora entrar em discussões sobre identidade e pertencimento, que englobam desde laços de parentesco até o nacionalismo.
Mas o lugar de honra é da astrologia, com direito a ilustrações feitas por um policial em surto na década de 1970. São páginas e páginas discutindo se o assassino é, digamos, do signo de capricórnio.
Como justificativa para atacar pessoas trans, Rowling já afirmou estar defendendo as mulheres. No entanto, apesar de ter tido a chance de modificar a fórmula e a estrutura do romance policial, a autora escolheu abraçar um chavão.
Mulheres raptadas, estupradas, torturadas e mortas compõem não só o cenário brutal que é alvo da crítica principal do livro, mas, o que fica evidente, surgem também de modo apelativo, ajudando a criar e a moldar a tensão.
Não se pode nem contar com uma Lisbeth Salander para deixar a coisa mais interessante --embora a personagem originalmente criada por Larsson também cresça numa trama policial mais ou menos clichê. O objetivo de Rowling é revelar a misoginia amplamente naturalizada, embora a narrativa não mostre nenhuma coerência interna nesse sentido.
Some as saídas fáceis e óbvias e o melodrama de quinta às construções constrangedoras de que Rowling --tanto de um ponto de vista feminista quanto literário-- não parece ter vergonha de se servir.
As próprias personagens mulheres são com frequência desenvolvidas e descritas a partir de estereótipos e termos que boa parte da crítica já se cansou de apontar como clichês de gênero. A ex-noiva instável e imprevisível de Strike, por exemplo, é para ele como "uma droga ou uma doença".
O desfecho do livro, no qual assassino e motivação são revelados, é a prova definitiva de que, embora tenha a intenção de questionar certos papéis, o suposto comprometimento de Rowling com o feminismo é limitado.
Não se pode nem sequer dizer que o resultado final de "Troubled Blood" é bem-sucedido no saladão de referências que reúne e na reprodução de uma fórmula batida. O livro se arrasta, e Rowling definitivamente não sabe a hora de parar. Você não pode deixar de perder, eu diria.
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