Kleber Rosa quer mudança radical na Segurança Pública: 'Problema está na concepção' - 31/08/2022
Nascido e criado no Engenho Velho da Federação, bairro da periferia de Salvador, o cientista social e policial civil, Kleber Rosa, é a aposta do PSOL para a disputa ao governo da Bahia nas eleições de 2022. Militante de movimentos sociais de longa data, esta é a primeira vez que Kleber vai encarar as urnas. Caso eleito, ele promete priorizar a fatia da população pobre do estado.
“Eu vejo três pontos como fundamentais: a fome, uma política de reforma agrária de acesso à terra, com agricultura familiar; e uma mudança radical da política de Segurança Pública. Isso impacta diretamente a vida da nossa população na cidade e no campo, de forma absolutamente prioritária. Não é fácil apontar prioridades diante de tantas questões que são urgentes. Obviamente, estamos falando do desemprego. Mas o desemprego você não resolve numa tacada, numa canetada. Mas o problema da fome você pode resolver com um projeto objetivo de transferência de renda. Isso é a coisa mais urgente. Para mim, a fome é algo que dói e só quem passou fome sabe o quanto a fome dói. Eu sou de uma realidade onde experimentei todas essas iniquidades muito comuns às pessoas que estão em vulnerabilidade social e vulnerabilidade econômica. Eu sei o que é fome”, disse o psolista.
Rosa é o primeiro dos quatro postulantes ao Palácio de Ondina que serão entrevistados pelo Bahia Notícias nas próximas semanas. Na ocasião, o candidato foi questionado sobre temas do seu plano de governo e também sobre suas propostas para áreas como educação, saúde, segurança pública e meio ambiente.
A entrevista foi transcrita a partir da participação do candidato no podcast Projeto Prisma, transmitido na última segunda-feira (29) e que está disponível no canal do Youtube do BN (veja aqui).
Confira abaixo as principais perguntas feitas ao candidato:
Kleber foi entrevistado no Projeto Prisma. Foto: Anderson Ramos / Bahia Notícias
Sendo governador, quais são as suas prioridades ao chegar à cadeira?
Eu vejo três pontos como fundamentais: a fome, uma política de reforma agrária de acesso à terra, com agricultura familiar; e uma mudança radical da política de Segurança Pública. Isso impacta diretamente a vida da nossa população na cidade e no campo, de forma absolutamente prioritária. Não é fácil apontar prioridades diante de tantas questões que são urgentes. Obviamente, estamos falando do desemprego. Mas o desemprego você não resolve numa tacada, numa canetada. Mas o problema da fome você pode resolver com um projeto objetivo de transferência de renda. Isso é a coisa mais urgente. Para mim, a fome é algo que dói e só quem passou fome sabe o quanto a fome dói. Eu sou de uma realidade onde experimentei todas essas iniquidades muito comuns às pessoas que estão em vulnerabilidade social e vulnerabilidade econômica. Eu sei o que é fome. Eu com os meus 18 anos de idade já morava no Nordeste de Amaralina e com fome, eu desci para o largo das baianas, onde vende acarajé e coco, procurando um coco, para ver se achava um que ainda tinha água e um resto de carne para matar a minha fome. Foi uma situação que se estendeu até quando eu entrei na faculdade. Quando eu entrei na universidade, alguns espaços se abriram. Eu entrei quando tinha 23 anos, de forma tardia. Pessoas no tempo regular, às vezes com 17 e outras com 18 anos. Obviamente, isso é fruto das dificuldades que eu tive ao longo da minha vida. Eu já me alfabetizei com 9 anos de idade. A universidade me abriu um leque que nunca antes eu tive acesso. Hoje, atuo na EJA como professor e sou mestre em educação de jovens e adultos. Eu defendi uma dissertação recente que é sobre racismo no currículo da educação de jovens e adultos, justamente compreendendo a modalidade exclusivamente para a população negra. Ou seja, é justamente essa população que tem ser percurso interrompido por todas as iniquidades que vive e precisa retomar os estudos tardiamente. A universidade só surgiu como possibilidade para mim por causa da militância politica. A vida no movimento estudantil, o contato com outros estudantes de outras escolas, com a turma que estava na UMES, com a turma que já estava articulada em partidos, com acessos a ambientes da política, me fez enxergar o mundo para além do meu bairro, para além da minha rua, para além da minha turma.
A pandemia aumentou a infraestrutura da área de saúde na Bahia. No entanto, não existe uma perspectiva clara de manutenção desse legado. Quais são as iniciativas, caso eleito, para manter a ampliação da oferta de serviços e do próprio acesso à saúde no estado?
É fato que o governo Rui Costa apresentou números positivos, pois houve de fato um aumento no número de unidades hospitalares, de UPAs, de policlínicas e de hospitais. Mas o problema está na gestão da saúde. O governo de Rui fez a opção de praticamente privatizar tudo. Na prática, a saúde pública na Bahia ela é privatizada, porque ela é entregue a grupos privados, obviamente, com contratos milionários, que envolvem lucro. Com isso, o dinheiro público fica para dar manutenção a grupos econômicos. E isso precariza o trabalho, porque você não tem concurso público e você tem terceirização, que é um processo precarizante do trabalho. Eu que sou professor, existe os setores do serviço na escola que são terceirizados e essas pessoas vivem um dilema cruel, porque não tem garantido os seus direitos trabalhistas. Essas empresas ficam três meses, quatro meses e muitas vezes demitem sem os direitos, pois declaram falência. Aí as mesmas pessoas são contratadas por outras empresas. Além do atraso de salário. Isso acontece com médicos também. Agora tem a pejotização e isso termina refletindo na saúde como o todo, no serviço que é prestado. A estatização da saúde aponta para um gerenciamento melhor dos recursos públicos aplicados a uma unidade. Fazer um concurso público e garantir a contratação. Além disso, tratar a unidade hospitalar como algo que pertence à comunidade, criar esse sentimento. Assim, eu acredito que podemos ter uma saúde com mais qualidade e com mais oferta dos serviços.
A Bahia, infelizmente, mantém índices baixos nas avaliações de ensino feitas pelo Ministério da Educação. Somado ao problema histórico, estudantes ficaram distantes das salas de aula no período da pandemia. O que fazer para reduzir a distância entre estudantes da rede pública e da rede privada, bem como fazer com que o estado se torne uma referência na temática educação?
Eu não sei a gente precisa ou deve ter a escola particular como referência. Claro que lá tem uma qualidade. Eu tenho defendido uma educação eu tenha os pensamentos de Paulo Freire e a base pedagógica de Anísio Teixeira, que o seu pensamento já se tornou realidade na Caixa d’Água, na Escola Parque. E infelizmente foi abandonado como modelo. Quando a gente fala em um modelo ideal, as pessoas pensam que a gente não consegue que é impossível, mas, na verdade, o que a gente precisa é de vontade política. A gente precisa de um governo que priorize aquilo que é fundamental para o povo. Essa logica privatizante mostra que existem pessoas que dirigem o Estado a partir dos interesses do mercado, com discursos voltados para atender o agronegócio e grandes negócios, entregando tudo, como se o mercado tivesse alguma sensibilidade para as necessidades concretas do povo, que é a maioria e só tem acesso ao que é público. Então as pessoas precisam entender que quanto mais privatização, menos serviço para o povo. Eu defendo um tripé: primeiro, reorganizar a concepção de educação, que tem se perdido na Bahia, principalmente com a militarização; segundo: reestruturar o funcionamento, valorizando os professores e diminuir carga horária dos professores
Foto: Kau Rocha / Divulgação
Os índices de crimes violentos, bem como os números envolvendo violência policial, e também contra policiais, seguem alarmantes aqui na Bahia. O que fazer para melhorar a sensação de segurança dos baianos? Você pretende investir em tecnologia de que forma? E, sobre o efetivo de policiais civis e militares, você tem alguma perspectiva de aumentar esses números? O aumento de efetivo é a solução para frear o aumento da violência?
Não é a solução pura e simples, óbvio que se você tem um número significativo de pessoas trabalhando, a tendência é que atenda melhor ao que é necessário. Mas não adianta a gente instrumentalizar e aumentar número, se o problema está na concepção e eu não tenho dúvida que o problema da segurança pública está na concepção. Nós temos hoje, inclusive, uma polícia bem equipada, é um equívoco dizer que as polícias não estão equipadas. Não tem grandes problemas com viaturas, você vê viaturas novas tanto na capital, quanto no interior, claro, ainda é possível ver viaturas sucateadas, mas isso não é mais a marca daquilo que era a polícia. O policial tem arma, o armamento para o policial é algo quase que universal, quando entrei na polícia quem quisesse ter uma arma tinha que comprar, eu nunca comprei, sempre trabalhei com a arma da unidade policial, então eu só tinha arma enquanto eu estava no trabalho e era limitada para a equipe do dia utilizar o revólver. Hoje todo policial tem uma arma de porte individual, que porta como arma permanente. Então isso não é o maior dos problemas, o problema é a concepção da segurança pública. Nós temos uma concepção de segurança pública voltada para a guerra, a lógica da guerra às drogas faz com que o estado mobilize o seu aparato policial para uma guerra permanente. Isso já está mais do que provado que não resolve o problema da violência, muito pelo contrário, isso promove uma violência, isso promove massacres, promove chacinas. Isso é notório, isso é inquestionável, os números estão aí para dizer. Os candidatos que insistem nesse projeto tem dois motivos, ou são genocidas de concepção ou querem flertar com o eleitorado do senso comum, com o eleitorado conservador, que são convencidos que a melhor forma de tratar os bandidos é na bala, não percebendo que isso não é o elemento central para resolver o problema. Sem dúvida, sou absolutamente a favor, é fundamental e é importante dizer que isso também é um instrumento de proteção ao policial, ele não pode resistir a isso, ele tem que entender que está protegido. Nós vimos uma situação recente que a filha de uma juíza protagonizou, já vimos vários escândalos que envolvem setores da elite que desmoralizam os policiais e isso só é filmado quando o policial tem a iniciativa pessoal de pegar seu celular e filmar, em um ato não institucional. A câmera é um ato institucional, do Estado, filmando toda a ação, inclusive para proteger o policial, mas também para evitar excessos, para evitar equívocos, para evitar que a violência seja decorrente de uma ação policial. É importante dizer que a violência policial não pode ser atribuída como um problema provocado pela ação de um indivíduo policial. O problema da violência tem a ver com o modelo institucional pensado pelo Estado. Defendo a desmilitarização da polícia, nós precisamos de uma polícia desmilitarizada, uma polícia civil que, inclusive, garanta o direito para os policiais porque os policiais militares são preteridos de direitos diversos, têm seus direitos enquanto cidadãos limitados por um regime militar. Costumam sofrer humilhações, perseguições, sem muitos recursos para recorrer no ponto de vista institucional, é obrigado a se submeter, vulnerável a um mau gosto ou bom gosto de um oficial que queira fazer algo.
O país vive um momento de crise ambiental e a Bahia está inserida neste contexto, de baixa preservação de biomas importantes, como a Mata Atlântica e a Caatinga. Existe uma demanda mundial por desenvolvimento sustentável, porém temos obstáculos legais. Como aliar desenvolvimento e respeito ao meio ambiente estando na cadeira de governador ?
Exige da gente um debate que está para além das fronteiras da Bahia e que está par além das fronteiras do Brasil. Não temos como discutir meio ambiente sem discutir capitalismo e alógica predatória do uso dos recursos, sem discutir essa lógica desenfreada pelo lucro. Não temos como não fazer uma discussão macro sobre isso. É lógico que o governador precisa ter posições politicas firmes em defesa do meio ambiente e eu trago um programa que é ecossustentável, simplesmente por fazer um giro de valorização da inclusão se setores pequenos e médios em detrimento de fazer estrutura para os grandes negócios que são de fato predatórios. Para trazer um exemplo mais concreto disso, vou retomar a questão da agricultura familiar que pode ser ecosustentável, que pode ser plantada sem desmatar. Não sou agrônomo e nem técnico na área, mas com as minhas leituras e na militância pelo meio ambiente, já sabemos que existe o plantio em floresta, sem que se precise desmatar. É possível, mas só é possível quando se tem a intervenção dura do Estado, garantindo uma economia para pequenos e médios. Os grandes negócios é que são os predadores na sua essência. O capitalismo quer transformar até o ar em mercadoria e vai transformar se a gente permitir.
A Bahia apesar de ser majoritariamente negro, não temos politicas públicas eficazes de combate ao racismo. Você entende o combate ao racismo e a intolerância religiosa como uma politica de estado ? Como podemos solucionar isso ?
A minha leitura sobre o racismo me faz pensar e defender que ele precisa ser enfrentada de maneira transversal e horizontalizada, perpassando toda a política de Estado. Eu serei um governador negro que compreende o racismo como algo estruturante e não posso fazer um governo que não seja marca disso que eu trago. Em determinado momento, achei importante ter uma secretaria especifica para a inclusão racial, mas para mim hoje é necessário entender que a politica de inclusão racial precisa estar presente em toda a politica de estado. É necessário fazer uma politica de saúde voltada para o enfrentamento às distorções raciais. Na segurança pública nem se fala. Não dá pra fazer segurança pública sem pensar no recorte racial. Não dá pra pensar educação sem o elemento racial que está posto como algo fundamental para se pensar educação. A diversidade está inserida no nosso ser. Nós temos a população cigana, a população indígena na Bahia que precisam ser contempladas. Não precisamos ter uma secretaria especifica para tratar disso, como se resolvendo um problema especifico um todo estivesse contemplado, e não está. Então para mim é necessário ter uma política transversal presente em toda a politica publica do Estado, com acesso a água, por exemplo. É preciso pensar política a partir dos elementos raciais que estão postos na distribuição e no acesso dos bens.