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Criminalidade cibernética e a boca de urna virtual

Por Adriano Figueiredo de Souza Gomes e Eduardo Vaz Porto

Criminalidade cibernética e a boca de urna virtual
Foto: Divulgação

Em tempos de software, hardware, malware, spyware, vírus, Cavalo de Tróia, bitcoin, blockchain, startup, internet banking, e-commerce, dentre tantos outros novos termos e expressões, que passaram a integrar o cotidiano de indivíduos que não mais se compreendem sem a utilização de máquinas e aparelhos em conexão com a rede mundial de computadores (internet), a criminalidade cibernética constitui tema de inquestionável relevância. 

 

Nessa conjuntura, caracterizada pela informatização das relações humanas, as infrações e os ilícitos não ficariam à margem da convivência humana - agora no espaço cibernético -, até porque, como sustentava o sociólogo francês Émile Durkheim, o crime é um fenômeno social normal, que mantém aberto o canal de transformações de que a sociedade necessita para se desenvolver.

 

E o delito é justamente um fenômeno social normal, porque os seres humanos, no decorrer de sua (in)evolução histórica, não conseguem manter uma relação harmônica e pacífica contínua. E as infrações, violações a regras de convivência, inobservâncias de cuidados com o próximo constituem uma realidade inexorável, demandando, de outro lado, ferramentas e novas estratégias da sociedade para prevenir e enfrentar tais situações.

 

De fato, com o desenvolvimento da sociedade humana, a inevitável complexidade das relações intersubjetivas determinou o incremento dos riscos à manutenção da convivência harmônica e pacífica entre os indivíduos, trazendo a reboque a criação de novos delitos, a exemplo dos crimes contra o meio ambiente; contra as relações de consumo; contra o sistema financeiro, dentre tantos outros; e mais recentemente, a criminalidade cibernética.

 

Nesse ponto, é cabível a seguinte observação: se o Direito Penal é o meio adequado/necessário para o controle de tais infrações e se tais ilícitos deveriam alcançar o patamar de delitos são indagações que, a despeito de sua importância e relevância, não serão enfrentadas na presente abordagem por diversas razões, inclusive em virtude do escopo desta proposta, que busca informar a respeito de uma nova modalidade criminosa, e não criticar fatores antecedentes que traduzem a opção de política criminal.  

 

Apesar de entender que o Direito Penal não pode servir de remédio para todos os males, o fato é que a criminalidade acompanha o desenvolvimento social, e quanto mais situações sociais complexas são estruturadas, novas modalidades criminosas são criadas, a traduzir uma expectativa de o Direito Penal figurar como infalível controle social formal.

 

Nessa conjuntura, surge a criminalidade digital, advinda da informatização das relações humanas, cada vez mais complexas, desafiando os controles sociais no âmbito do espaço cibernético, pois as infrações passaram a apresentar uma conformação distinta dos velhos modos de operação criminosa, podendo ser praticadas em tempo e em lugar largamente distanciados do resultado provocado através da internet, conforme bem já sinalizou Jorge de Figueiredo Dias.

 

Nesses termos, a criminalidade cibernética é uma realidade e, portanto, necessita de abordagem e enfrentamento para ser entendida, impondo, portanto, o conhecimento de expressões que remetem a ela: Crimes Virtuais, Crimes Digitais, Crimes Informáticos, Crimes de Informática, Crimes de Computador, Delitos Computacionais, Crimes Eletrônicos, Crimes de Alta Tecnologia, Cybercrime, Crimes Cibernéticos, dentre outras.

 

A infração penal para ser classificada como crime cibernético necessita basicamente contar com o seguinte aspecto que a caracteriza: aderência à atmosfera cibernética, seja pela ocorrência no espaço virtual, seja pela prática por meio da internet, ou até mesmo pelo envolvimento de máquinas e aparelhos informáticos.  

 

Assim sendo, tem-se velhos conhecidos sendo praticados por meio da internet em razão das relações humanas intersubjetivas se concentrarem em plataformas eletrônicas (relacionadas ao e-commerce) e redes sociais virtuais (facebook, instagram, dentre outras), a exemplo de: calúnia, difamação, injúria, ameaça, furto mediante fraude, extorsão, estelionato, crimes relacionados à pornografia infantil e tantos outros.

 

Em razão de sua natureza eminentemente cibernética, outro exemplo de crime eletrônico é a invasão de dispositivo informático, incluído no Código Penal Brasileiro (Cf. artigo 154-A) pela Lei nº 12.737/2012, que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, vulgarmente conhecida como Lei Carolina Dieckmann.

 

Para demonstrar que a criminalidade cibernética é uma realidade da qual não se pode esquivar, há poucos dias atrás, em 24 de setembro de 2018, foi publicada a Lei nº 13.718/2018, pela qual foi incluído o artigo 218-C no Código Penal, intitulado Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, inclusive por meio de sistema de informática ou telemática, restando disciplinada mais uma espécie de crime digital. 

 

Na presente abordagem, considerando a proximidade do pleito eleitoral, pretende-se retomar considerações a respeito do crime de Boca de Urna, já agora disciplinada a sua prática por meio da internet e, portanto, assumindo o status de delito cibernético.

 

Antes de outubro de 2017, o crime eleitoral, intitulado Boca de Urna, estava disciplinado apenas pelo parágrafo 5º, incisos I, II, III, artigo 39, Lei nº 9.504/1997, pelo qual constitui crime, no dia da eleição, punível com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de cinco mil a quinze mil Ufirs: o uso de alto-falantes e amplificadores de som ou a promoção de comício ou carreata; a arregimentação de eleitor ou a propaganda de boca de urna; a divulgação de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos.

 

Portanto, qual no dia da eleição, faz propaganda eleitoral de partidos políticos ou de seus candidatos, mediante, por exemplo, a utilização de amplificador de som; distribui material gráfico para fins de aliciar e/ou influenciar a vontade dos eleitores; divulga levantamento de intenções de voto na data do pleito eleitoral (a chamada pesquisa de boca de urna), entre as 08h e 17h, comete o crime intitulado boca de urna.

 

Com advento da Lei nº 13.488/2017, cuja finalidade consiste na promoção de uma minirreforma no ordenamento jurídico-eleitoral, foi incluído o inciso IV no parágrafo 5º do artigo 39, Lei nº 9.504/1997, pelo qual restou disciplinada a prática da boca de urna virtual, caracterizada pela publicação, no dia da eleição, de novos conteúdos ou o impulsionamento de conteúdos nas aplicações de internet de que trata o art. 57-B da Lei no 9.504/1997, podendo, por outro lado, ser mantidos em funcionamento as aplicações e os conteúdos publicados anteriormente.

 

De acordo com a Resolução-TSE nº 23.551/2017, que dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral nas eleições, especificamente o artigo 81, parágrafo primeiro, não resta configurado o crime disciplinado no inciso III, parágrafo 5º, artigo 39, Lei nº 9.504/1997, a manutenção da propaganda que tenha sido divulgada na internet antes do dia da eleição.

 

Sobre a temática, o Juiz Federal Márcio André Lopes Cavalcanti ressalta que não configura o referido crime a manutenção das propagandas que já existiam, a exemplo de uma página no Facebook; não há obrigatoriedade de retirada do espaço cibernético no dia da eleição, podendo ela continuar normalmente. E prossegue: no entanto, se algum post que já estava publicado naquela rede social digital for impulsionado (pagamento de valor para ele permanecer em destaque no dia da eleição), restará caracterizado o crime do art. 39, parágrafo 5º, inciso IV, Lei nº 9.504/97.

 

Para melhor clareza da temática em apreço, convém conhecer as terminologias aplicáveis. Assim é que o chamado impulsionamento de conteúdo é definido pelo art. 32, inciso XIII, da Resolução-TSE nº 23.551/2017, como o mecanismo ou serviço que, mediante contratação com os provedores de aplicação de internet, potencializem o alcance e a divulgação da informação para atingir usuários que, normalmente, não teriam acesso ao seu conteúdo. É exemplo disso o chamado link patrocinado contratado na rede social mais frequentada na internet, o Facebook. A propósito, dispõe a citada Resolução que todo impulsionamento deverá conter, de forma clara, o número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) ou o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) do responsável, além da expressão 'Propaganda Eleitoral' (Cf. art. 24, § 5º).

 

Entretanto, a despeito do conteúdo explicativo das mencionadas normas, com a proximidade do dia 07 de outubro de 2018, data do 1º turno do pleito eleitoral, além do necessário conhecimento a respeito da existência do referido delito cibernético, algumas questões precisam ser enfrentadas a respeito do crime de boca de urna virtual.   

 

Ao considerar o conteúdo normativo do inciso IV, parágrafo 5º, artigo 39, Lei nº 9.504/1997, questiona-se, por exemplo, se o próprio candidato, partido ou coligação realizar, no dia do pleito, as chamadas "curtidas" e/ou "compartilhamentos" de conteúdo de propaganda eleitoral já publicada anteriormente, estar-se-ia diante da configuração de crime de boca de urna virtual?    

 

Haja vista o conteúdo normativo do referido dispositivo legal (artigo 39, § 5º, IV, Lei nº 9.504/1997), o que se revela expressamente proibido pela novel disciplina da Lei das Eleições é a publicação por parte de candidato ou partido político, no dia das eleições, de conteúdo novo nas aplicações de internet, quais sejam, sítio de candidato ou do partido/coligação com endereços comunicados à Justiça Eleitoral, mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente e por meio de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas ou assemelhadas.

 

Além disso, também resta proibido o impulsionamento, no dia da eleição, de qualquer conteúdo nestas aplicações de internet, realizada por candidato ou partido político, sendo relevante registrar que, para o cidadão comum, já é vedado contratar o impulsionamento em qualquer momento do período eleitoral, inclusive no dia do pleito.

 

Assim, embora a finalidade da inovação legislativa tenha sido a de evitar a disseminação de conteúdo eleitoral nas aplicações de internet no dia da eleição para impedir a boca de urna virtual, é possível se depreender que o fato do candidato ou partido político tão-somente "curtir" ou "compartilhar" conteúdo antigo, já postado anteriormente - hipóteses em que se estará fazendo circular novamente a informação sobre a candidatura - não ensejaria a configuração de crime, especialmente com base no princípio da legalidade estrita.

 

Portanto, a rigor, compreende-se que o legislador vedou, no dia da eleição, além da divulgação de conteúdo patrocinado (mediante impulsionamento), a publicação de qualquer outro novo conteúdo, inclusive aqueles que já houvesse sido veiculado anteriormente nas aplicações de internet elencadas no art. 57-B da Lei nº 9.504/97 e acima referidas.

 

Cabe, ainda, lembrar que, em termos de materialidade do delito, a comprovação da prática do crime de boca de urna virtual, quando comparada ao pulverizado aliciamento de eleitores no entorno das seções eleitorais no dia do prélio, torna-se mais facilmente detectável em razão do "rastro cibernético" que deixa, sobretudo nos sítios do candidato informados à Justiça Eleitoral.

 

Vale dizer, a publicação, no dia da eleição, de novos conteúdos de propaganda eleitoral, bem assim o impulsionamento de conteúdos já publicados anteriormente são ações que deixam registros no espaço cibernético, a viabilizar a comprovação da materialidade do crime.

 

Por fim, para fins de cautela, faz-se a ressalva de que se trata de tema novo, ainda não enfrentado pelos órgãos jurisdicionais que compõem a Justiça Eleitoral, reclamando cautela para que a conduta não seja interpretada como abusiva ou que objetive burlar as restrições legais incidentes na hipótese aqui examinada.

 

Com essas ponderações, recomenda-se prudência e atenção quanto ao uso, no dia do pleito, de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de terminal conectado à internet, destinadas à divulgação de conteúdo eleitoral, a fim de evitar a caracterização do novo tipo penal de boca de urna virtual nestes ambientes cibernéticos.

 

* Adriano Figueiredo de Souza Gomes é Mestre em Direito Público, com ênfase em Direito Penal Contemporâneo, pela UFBA; Professor da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito e UNIFACS; e advogado Criminalista; e Eduardo Vaz Porto é procurador do Município de Salvador e advogado