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Entrevista

Isaac Newton Carneiro, professor e especialista em direito municipal

Por Francis Juliano

Isaac Newton Carneiro, professor e especialista em direito municipal
Fotos: Priscila Melo / Bahia Notícias

É na cidade que se tem a melhor avaliação dos serviços públicos. O prefeito – mais do que o governador e o presidente – é a autoridade mais próxima do cidadão. Segundo o especialista em direito municipal, Isaac Newton Carneiro, é aí que reside o descompasso entre expectativa e realidade. “Quantas vezes a União chega na rua, na praça, na saúde, chega na educação e na assistência social em um pequeno município do interior? Quantas vezes o ministro vai estar lá para resolver um problema de salário?”, levanta as questões.

 

Ao Bahia Notícias, o professor discorreu sobre o que eram as cidades há 30 anos e como estão agora, esmiuçou o dilema da arrecadação de impostos, debateu as alternativas de investimento e demonstrou preocupação quanto às conseqüências que a aprovação da reforma da previdência, proposta pelo governo federal, podem causar para cidades pequenas. “O cenário que está aí, nesse modelo que está aí, é trágico. Para o Nordeste isso é complicadíssimo”, prognosticou. Leia a entrevista completa abaixo.

 

 

Do tempo que o senhor começou a trabalhar com a pauta municipalista, ou seja, metade década de 80, para hoje, o que mudou na gestão dos municípios?

Mudou que os municípios recebiam naquela época algo em torno de 4% da receita pública arrecadada no país. Hoje, eles recebem cerca de 13% da arrecadação. Podem, eventualmente, com arrecadação de convênio com o governo federal chegar a 15%, 16%. Mas os pequenos municípios acabam recebendo 13%.

 

Essa arrecadação se dá por quais impostos?

Tem um chavão popular que diz que “quem parte, reparte e fica com a melhor parte”. Se diz frequentemente que os municípios não sabem cobrar. Mas o principal imposto cobrado no país é o imposto de renda [que vai para o governo federal]. Porque ele é descontado diretamente na função da riqueza. Quem inventou o sistema tributário foi o governo federal. Ele escolheu os tributos que queria cobrar e disse para os municípios quais eram os deles. E não deixou os melhores. Deixou os mais difíceis. Os impostos locais, o ISS [Imposto sobre Serviços] e o IPTU [Imposto sobre a Propriedade Predial Urbana], são muito mais difíceis de cobrar. O IPTU mesmo é cobrado sobre uma riqueza morta. É um imóvel parado. 

 

Com a arrecadação maior, os municípios passaram a oferecer, de fato, mais serviços para as populações?

Houve esse aumento na arrecadação, mas houve um aumento estupendo de serviços públicos que os municípios passaram a ser obrigados a fazer. Porque os prefeitos, antes de 1988, não tinham obrigação de manter serviços de educação e saúde. Não tinham assistência social também. Tinham que tomar conta da praça, manter o mercado. Hoje, o município faz a educação da pré-infância até o ensino médio. E na saúde todo o pronto atendimento, de urgência e emergência, é feito pelo município. A regulação, que é onde você não resolve lá, é que vem para o Estado. 

 

 

Só que a qualidade desses serviços é sempre criticada.

Veja, quantas vezes a União chega na rua, na praça, na saúde, chega na educação e na assistência social em um pequeno município do interior? Quantas vezes o ministro vai estar lá para resolver um problema de salário? Temos um problema grave no país em matéria de educação. A fixação do piso básico do professor do ensino fundamental é estabelecida pela União. Só que ela fixa, mas não tem a menor responsabilidade de assumir quanto isso vai custar no município. 

 

Mas a União não transfere o que é devido? 

Os valores programados, oriundos da União, não conseguem pagar a folha até o final do ano. E por que não consegue? Porque o governo foi aumentando a base salarial, sem fazer a transferência dos valores dos professores. O critério para o cálculo do dinheiro é o número de alunos. Como houve uma diminuição do número de alunos e o número de professores se manteve, o que aumenta a despesa de pagamento, isso causou um impacto nos últimos dez anos trágico para os municípios. 

 

Essas limitações na gestão dos recursos são entendidas pela população? O eleito médio geralmente imagina que a prefeitura tem muito dinheiro e só não gasta porque não quer ou porque há desvios. É isso mesmo?

O problema é essa construção do sonho. Isso não é novidade. Acontece no Brasil. Acontece em toda a democracia. É natural que o político construa o sonho a partir do desejo das pessoas. Quem está na base enfrenta de frente. Está na primeira trincheira. Ele ouve o cidadão que reclama da falta de médico, de ambulância, de vaga para o filho, da falta de calçamento da rua, da falta de iluminação. Agora, com 13% de arrecadação, o prefeito acaba sendo um agenciador, um pedinte para os outros níveis, estadual e federal. Então, o prefeito tem de estar correndo atrás de projeto, de emenda, ter de submeter esse tipo de jogo.

 

 

Agora, essa discussão sobre a realidade financeira dos municípios não deveria ficar mais evidente nas campanhas eleitorais? 

Vamos olhar para os candidatos de todos os níveis. Eles revelam quando estão em campanha as dificuldades que terão no cargo? “Olha, você vai votar em mim, mas, com certeza, tais coisas eu não vou conseguir”. Me diga quantos fazem isso? Isso em todos os níveis da política. Todo político tem um sonho pessoal e um sonho com relação a sua cidade. O sonho pessoal é construir aquele status que o diferencia dos outros. E o sonho da sua cidade é construir uma cidade melhor. Ele diz ”eu vou fazer uma praça” e tal. Só que quando chega na prefeitura, ele larga esses desejos para cuidar só do que entra e do que gasta. Porque na porta dele, tem que resolver o problema do médico que custa R$ 20 mil por mês, se não ele não vai ter ponto de atendimento, e a população vai reclamar, tem que resolver o problema do calçamento, precisa mandar o sujeito que está em tratamento de câncer para outra cidade, precisa resolver a questão do dinheiro porque as necessidades da vida são muito grandes e o dinheiro não é suficiente. E nós mudamos. Em 1910, no Brasil, 86% da população moravam na roça. Em 2010, 84% da população residia na cidade. 

 

Qual a realidade dos municípios baianos diante desse cenário ainda de recessão econômica?

O primeiro impacto que a recessão traz é o desemprego. E o desemprego traz com ele uma imensa quantidade de problemas. Se antes as pessoas moravam na roça – viviam no interior até meados o século passado – essas demandas não apareciam. Porque o sujeito na roça conseguia produzir seu próprio alimento. Na cidade não tem como. Vivendo em uma favela não vai conseguir produzir sua comida. Ele precisa da estrutura da sociedade para se abastecer da vida. E o desemprego é o primeiro impacto da crise e ele aparece de pronto na vida do prefeito. Tem aquela história que se diz que os prefeitos enchem as prefeituras de cargos. Mas enche porque o sujeito perde o emprego. É uma simbiose do necessitado com o político. Porque que São Paulo e o sul do país não têm esse problema do emprego oferecido pela prefeitura. Porque existe um mercado que chama o trabalhador. Na vida das pequenas e pobres cidades do Nordeste isso não acontece. O sujeito não tem onde oferecer sua força de trabalho.

 

Quais seriam as alternativas para que as cidades de pequeno porte possam atrair investimentos, além da isenção de impostos para a instalação de empresas?

Os gestores precisam reinventar a vida na cidade. Precisam reinventar uma economia na cidade. Tem soluções de diversas ordens que a gente tem chamado de sustentabilidade. Ou seja, que as pessoas consigam viver ali com o que produzem. As cidades precisam reencontrar também sua aptidão. Quais as cadeias econômicas possíveis. 

 

Está em discussão a reforma da Previdência. Caso seja aprovada a proposta do governo, qual será o impacto nas finanças dos municípios baianos?

Olha, eu já fui um bom estudante de Previdência. O cenário que está aí, nesse modelo que está aí, é trágico. Para o Nordeste isso é complicadíssimo. E aí o cenário é bem específico de nossa região. Em 2007, nós fizemos um estudo na região do Baixo Sul baiano. A gente descobriu que em algumas cidades, como Igrapiúna, por exemplo, 45% da riqueza que entrava no Município eram de transferência federal, seja do FPI [Fundo de Participação dos Municípios] ou de aposentadoria. Ou seja, se eu estou dizendo que para o sujeito se aposentar com 30 anos, ele contribui com 8, o que a gente vai ter com a falta dessas transferências em um futuro breve? A gente vai ter um empobrecimento dessas regiões imenso. Por isso que está todo mundo se rebelando contra a aposentadoria rural. Porque no interior no dia em que aposentado recebe dinheiro, o mercado funciona. Quantos avós não sustentam netos, filhos? A lógica da reforma da Previdência é excluir a participação do Tesouro na manutenção do sistema. Só que isso tem um custo para o equilíbrio social do país, que é fazer com que os mais pobres possam ter acesso a uma condição de vida melhor.

 

Outras duas reformas são cobradas pelos municípios, que são as reformas tributária e fiscal. Os municípios pedem maior participação no bolo tributário. Como anda a discussão dessas reformas?

As reformas tributária e fiscal estão entrelaçadas, mas não há ainda uma proposta bem encaminhada. Sobre a reforma tributária há uma proposta no Congresso de fazer com que o ISS e principalmente o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados] transitem em um mesmo tributo. Sobre a reforma fiscal não há nada de concreto que mostre um alento para resolver a questão do pacto federativo. O que a gente tem são circunstâncias gravíssimas. Por exemplo, hoje está sendo discutido como é que faz a distribuição do que se arrecada do petróleo. Essa discussão se arrasta há seis anos. E tem uma liminar de uma ministra do Supremo [Cármen Lúcia] parada. E isso já trouxe prejuízo da ordem de quase R$ 60 bilhões, e a ministra não decide. Parou o processo. 

 

Essa liminar se refere a quê?

Essa liminar trata da distribuição do petróleo na plataforma. Em 2012, fizeram uma lei para dizer como se distribuiria o petróleo produzido em plataforma continental. Porque ele não é produzido em solo de nenhum município. Por essa nova lei haveria um cálculo da extensão proporcional dos municípios. Essa lei foi interrompida por uma liminar dizendo que não era para se distribuir desse jeito. A liminar da ministra privilegia, basicamente, Rio de Janeiro e Espírito Santo, estados produtores. [Pela Lei dos Royalties, sancionada por Dilma Rousseff, estados e municípios não produtores receberiam 21% dos royalties, sendo que a partir de 2020 passariam a receber 27% do mesmo recurso. Atualmente, estados não produtores recebem 7%,e os municípios não produtores, 1,75%].

 

Há outras distorções que prejudicam os municípios?

Há dois anos foi feita uma alteração na lei do ISS. Porque quando você compra um plano de saúde, ou quando faz uma transação no cartão de crédito, aquilo é serviço. Foi feito uma alteração para dizer o seguinte: “se a máquina de cartão de crédito for feita em Ipirá, por exemplo, quem tem direito de receber é essa cidade”. A mesma coisa no plano de saúde. A lucratividade do plano vai ser tributada no município onde ocorre o serviço. Só que atualmente no Brasil, apenas cinco município recebem por todas essas operações de cartão de crédito. São os municípios que aceitaram sediar essas empresas, como Barueri, em São Paulo. As empresas ficam lá por pagar uma taxa mínima para a prefeitura. Aí foi feita a lei para que os serviços beneficiassem também os municípios onde as operações são feitas, mas um ministro do Supremo [Alexandre de Moraes] deu uma liminar cancelando isso.

 

O que o prefeito do interior baiano, principalmente das cidades pequenas, precisaria fazer para ter uma gestão eficiente? O que o senhor recomendaria a ele?

Jogar o coração fora. A primeira recomendação é essa. Porque por vezes vai aparecer gente pedindo, uns porque precisam de muito dinheiro, outros porque precisam mesmo. E ele tem que ponderar. Uma boa cidade bem administrada vai dar a ele uma margem de até 10% para fazer algum tipo de investimento. Esses 10% é a margem que ele tem, é aquela promessa que ele fez na campanha. Se não fizer isso vai ficar estacionado.