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Entrevista

Major Denice Santiago, comandante da Ronda Maria da Penha

Por Ana Cely Lopes

Major Denice Santiago, comandante da Ronda Maria da Penha
Fotos: Tiago Dias / Bahia Notícias

A Lei Maria da Penha (11340/06) completou 11 anos nesta segunda-feira (7). Apesar da importante marca contra violência de gênero no Brasil, casos de violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial continuam sendo denunciados diariamente. Até maio de 2017, a Bahia registrou 15,7 mil casos de violência contra mulher, além de 14 feminicídios no interior do estado. Pensando em uma forma de diminuir essa situação alarmante, a major Denice Santiago, de 45 anos, criou a Ronda Maria da Penha (RMP), operação que acompanha mulheres que estão sob medida protetiva judicial. Além da capital, a Ronda possui sede em cinco municípios baianos (Juazeiro, Paulo Afonso, Feira de Santana, Vitoria da Conquista e Itabuna) e tem planos para implantação em Barreiras, Porto Seguro e Ilhéus. Citando uma tradição arraigada de machismo, Denice explica que o trabalho de interiorização das políticas públicas é denso. “No imaginário popular daquela região é permitido ao homem fazer o que quiser. Não é uma permissão expressa, mas existe uma permissão tácita ali que diz que é possível o homem bater na mulher se ela não cozinha direito, se ele achar que a casa não está bem arrumada”, explicou. Em entrevista ao BN, a major fala sobre as principais dificuldades na implantação da RMP nos municípios baianos e sobre a importância de ressignificar comportamentos e fazer os homens entenderem seu papel como agressor.



Qual a principal importância de implantar a Ronda no interior do estado?
É fazer os homens entenderem o seu papel como agressor. Eles são parte do problema e devem ser parte da solução, a gente precisa ressignificar comportamentos. No último dia 3 de agosto fizemos em Ilhéus um trabalho em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Rural chamado "Ciranda com a Ronda". Vamos conversar com homens e mulheres assentados, quilombolas e da comunidade marisqueira sobre violência doméstica. Explicar para os homens que isso é crime, porque muitos não reconhecem quando eles abusam psicologicamente de suas esposas, falando “Você é louca, eu não fiz nada disso” e a mulher começa a se questionar no meio do caminho e acaba acreditando.

 

Algumas pessoas acreditam que no interior existe um machismo arraigado. Há alguma peculiaridade no atendimento às vítimas do interior que as diferencie das da capital?
No interior as rondas possuem um trabalho mais denso, porque as comunidades tendem a ter uma cultura do século XIX nas relações de gênero. Principalmente nas zonas rurais, é “permitido” ao homem essa posse e domínio da mulher. Em uma cidade em que eu estive um senhor falou que concordava com a Lei Maria da Penha e que de fato tinha que existir punição. Ao final da palestra, ele fez a pergunta: “Major, nem na nossa mulher nós podemos bater?”. No imaginário popular daquela região é permitido ao homem fazer o que quiser. Não é uma permissão expressa, mas existe uma permissão tácita ali que diz que é possível o homem bater na mulher se ela não cozinha direito, se ele achar que a casa não está bem arrumada. As pessoas não se intrometem e no grupo social dela talvez as vizinhas digam: “Poxa, mas ele tem razão, olha como ela deixou a casa”. Então existe uma legitimação disso e eles não dão o nome de violência. Eles entendem que isso é justo, que está correlacionado com a figura do marido e da mulher. Então as rondas que estão no interior convivem com a legitimidade social desse crime de forma muito mais complexa que a daqui da capital.

 

A capacitação dos policiais que vão atuar no interior leva em conta essas nuances e diferenças de realidades?
Os integrantes dessas rondas são desses lugares [interiores], eles entendem a linguagem e sistema, então já possuem aproximação com aquela realidade, coisa que talvez se eu pegasse uma tropa de Salvador fosse mais chocante. Coisas que os policiais achariam impossível de acontecer hoje em dia ainda acontecem. Além disso, tem a relação da Ronda com outras instituições municipais. Semana passada nos estávamos em Barreiras fazendo a capacitação. Oferecemos vagas para os servidores municipais de desenvolvimento social, do Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], do Centro de Atendimento à Mulher Vítima de Violência, Secretaria de Saúde, Secretaria de Educação. Os municípios precisam estar conosco nessa rede, o grande propósito é que a gente crie a Ronda na cidade, mas que tenha uma rede de atenção à mulher que possa sustentar a atuação da operação. Se não, não vai funcionar. 

 

A disseminação do feminismo e o movimento de empoderamento feminino levaram essas mulheres a se sentirem confortáveis a falarem sobre violência de gênero?
Eu acredito que sim. Essa atuação da mulher em rede, conversando com outras mulheres melhorou e muito o acesso à informação, o que é primordial. O que antes era proibido se falar entre mulheres, hoje entre grupos já é fomentado. Quando vamos trabalhar no interior do estado implantando uma ronda ou atuações de sensibilização, a mulher já participa dessas atividades. No começo desse processo, há 10 anos, nós tínhamos que atrelar atividades como essas com algum outro programa do governo como o cadastramento do Bolsa Família, já que nem existia por parte de seus parceiros essa "autorização" para que elas fossem participar dessas atividades livremente. Então essa atuação em rede é muito importante para que essas políticas possam prosperar.

 

Qual o passo a passo para obter a medida protetiva e ser acompanhada pela Ronda?
A Lei Maria da Penha trouxe uma inovação que é a proteção de urgência. Antigamente a mulher que ia à delegacia e denunciava voltava para casa e ia conviver com o homem que tinha acabado de agredi-la. Agora, essa mulher vai na delegacia, denuncia e afirma: “Eu preciso de medidas protetivas de urgência”. Sinalizando a necessidade, o (a) juiz(a) vai avaliar o depoimento dela junto com o (a) delegado(a) e as provas que estão no processo. Com isso, o magistrado pode deferir ou indeferir a medida. Quando ele defere a medida, sinaliza a distância que este agressor deva estar dessa mulher e se há necessidade de retirá-lo do lar. O agressor não pode se conectar por rede social, telefone e, em alguns casos, não pode sequer falar com os parentes ou amigos próximos da vítima, não se conectar de jeito nenhum com ela. Essas são umas das estratégias que a lei trouxe e que a Justiça instaura para dar segurança a essa mulher. Quando essa medida protetiva é deferida, o juiz avalia qual o tamanho do risco do caso. A vítima passa por diversas avaliações de risco e, se o risco for alto, ele manda para que a ronda acompanhe essa mulher e é aí que o nosso trabalho começa. As visitamos regularmente em casa, acompanhamos a mulher em audiências, as reconduzimos ao lar e realizamos atividades para que se sintam seguras.

 

Sabemos que na capital há uma sede em Periperi, no Distrito Integrado de Segurança Pública (Disep). Há quantas sedes da Ronda Maria da Penha no interior do estado? Sedes novas estão sendo planejadas?
Estamos em cinco cidades no interior: Juazeiro, Paulo Afonso, Feira de Santana, Vitoria da Conquista e Itabuna. Vamos implantar a RMP em Barreiras e já estamos realizando a capacitação da equipe. Agora só depende de questões de logística. Depois disso, nós temos duas outras cidades na fila: Ilhéus e Porto Seguro.

 

Qual foi a maior dificuldade que a RMP tem encontrado na implantação no interior?
A estrutura da rede local. Nós trabalhamos com outras instituições, então quando a Ronda atua quer dizer que os Centros de Referência já atuam, a Delegacia já atuou, o Ministério Publicou já atuou, a Defensoria já atuou e a Justiça já atuou. A gente tem o cuidado de quando criamos unidades no interior criamos também um comitê de governança, um comitê gestor que envolve os órgãos que sustentam o trabalho da Ronda, porque se não, a gente acaba não conseguindo atuar. Sair de casa para denunciar já é uma violência que a mulher sofre, as pessoas na rua passam a olhar. Entrar na delegacia já é outra violência, as pessoas passam a rotular. Todo esse processo que a mulher passa até chegar na Ronda precisa ser bem estruturado.



Você acredita que a RMP está ajudando a mudar o comportamento das comunidades em que atua?
Existem duas mudanças significativas que esse trabalho ocasiona. A primeira é na mulher. Algumas sequer se arrumavam, estavam em processo depressivo, não saiam de casa. Você vê essa mulher no primeiro dia de atendimento e depois de certo tempo, elas já estão saindo, já estão revivendo suas vidas, para a gente é gratificante. E o segundo é que as amigas dela veem que é possível denunciar, que já existe no estado uma atenção para cuidar da violência de gênero. Então, nós lidamos com a mudança pessoal e coletiva. E não é só com as mulheres: os homens recuam pelo simples fator de saberem que a viatura da RMP está chegando. Nossa sede funciona em Periperi há um ano e desde a nossa chegada a mancha criminal de violência contra a mulher diminuiu. O Cicom (Centro Integrado de Comunicação) apontou que o número de ligações para esse atendimento despencou consideravelmente. Apesar de não trabalharmos com atendimento ao 190, a comunidade sabe que se a mulher for denunciar, a Ronda pode passar a acompanhar. Fizemos uma visita em um bairro uma vez e um senhor falou: “Olha, eu não tenho medo da Rondesp, eu não tenho medo do choque, não tenho medo porque não faço nada errado, mas quando essa viatura chega eu me tremo todo, porque eu sei que se eu entrar na viatura aí todos vão começar a falar e não vai ter mais jeito”. A ideia mesmo é que eles reflitam sobre o crime.

 

Qual é seu objetivo na Ronda para o futuro?
A minha vontade é que a gente não precise mais implantar a Ronda Maria da Penha no interior. Embora eu saiba que é uma ferramenta que chega para salvar, é um indicador complicado de que naquela região está tendo mais violência doméstica. Eu prefiro fazer "Cirandas com a Ronda" do que implantar a ronda de fato. Quero que a Ciranda traga de fruto essa conscientização da população local da lei, mas não como uma lei com um aspecto punidor, mas a lei na perspectiva dos direitos humanos. Quero que os homens, ainda que culturalmente, tenham aprendido que a violência doméstica é possível, a reconheçam como um crime e parem de praticá-la.