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Com forte presença em Cannes, Brasil conquista vitórias inéditas

Por Guilherme Genestreti | Folhapress

Com forte presença em Cannes, Brasil conquista vitórias inéditas
Foto: Divulgação

Em meio à maior crise do cinema nacional dos últimos 25 anos, com ameaça de congelamento dos recursos para o setor, o país conquistou duas vitórias inéditas no Festival de Cannes, o principal do mundo, que encerrou sua 72ª edição neste sábado.

A dúvida é se elas podem provocar alguma sensibilização num momento em que o governo revê as suas políticas de financiamento à cultura. Com "Bacurau", sátira violenta que fala de um Brasil dividido e armado, os pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ganharam o prêmio do júri da competição, o terceiro mais importante do evento.

E "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", do cearense Karim Aïnouz, foi escolhido o melhor filme da seção Um Certo Olhar, paralela à disputa pela Palma de Ouro. Fora da programação oficial, "The Lighthouse", longa americano que tem o brasileiro Rodrigo Teixeira como produtor, ganhou prêmio da crítica. Os dois primeiros têm muito a falar sobre o Brasil contemporâneo.

Bacurau é o nome que os diretores dão a uma cidade algo utópica no sertão pernambucano, um lugar erigido em torno de símbolos regionais que se vê assolado por uma invasão externa. O assédio chega sob a forma de agentes estrangeiros, apoiados por um político e por dois entreguistas do Sudeste.

O revide dos locais envolve apelar para o cangaço, uma resposta violenta que também opera no nível da metáfora. Ela surge como um manifesto cultural contra o imperialismo e contra a perversão das instituições. Não faltou quem visse nisso uma mensagem enfurecida contra Bolsonaro e a guinada conservadora."Será ótimo que um filme como esse possa ser apresentado num país que está desmontando a cultura", disse Mendonça Filho, dias antes da premiação. 

Após a vitória, em conversa com jornalistas, afirmou que não descartava a possibilidade de Bolsonaro ver o longa. "Ele pode até gostar." Essa foi a segunda vez que o cineasta recifense concorreu à Palma de Ouro. Na primeira, em 2016, encampou um ato anti-impeachment de Dilma no tapete vermelho antes da estreia de "Aquarius", o que acabou virando um dos grandes gestos da cultura contra o governo Temer.

O longa de Aïnouz também parece dizer algo sobre o país hoje. Ao menos, foi o que o cineasta deixou claro ao dizer que gostaria de chegar "aos milhões que votaram nesse governo". Tanto é que apostou na tradicional embalagem do melodrama.

A trama de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", uma adaptação do romance homônimo de Martha Batalha, fala de duas irmãs que são separadas uma da outra no Rio de Janeiro dos anos 1950. Mãe solteira, uma é expulsa de casa e vai parar na rua. A outra se casa, mas sacrifica suas aspirações para assumir o papel de dona de casa.

Cada uma à sua maneira, ambas sucumbem ao machismo institucional, personificado em figuras opressoras de pais, maridos, colegas de trabalho e ginecologistas. "Bacurau" estreia em 30 de agosto no circuito brasileiro. "A Vida Invisível" deve entrar em cartaz em novembro.

Prêmios à parte, a presença nacional em Cannes já havia sido maciça em quantidade. Neste ano, o Brasil foi o quarto país com maior participação (seis filmes, no total), atrás apenas de França, Estados Unidos e Bélgica --um feito "impressionante", segundo a revista especializada Variety.

O irônico foi que, em abril, quando saiu a lista de selecionados ao festival, o anúncio ocorreu poucas horas antes de a direção da Ancine anunciar a suspensão de recursos para a produção audiovisual. Ela se anteviu a uma decisão do Tribunal de Contas da União, que contesta a forma como a entidade fiscaliza seus projetos. O processo ainda está em andamento.

Não foi por outra razão que tanto Aïnouz quando Dornelles e Mendonça Filho martelaram que dedicavam seus prêmios aos trabalhadores do cinema no país ao subirem ao palco. "Bacurau" chega a ter nos seus créditos finais a informação de que gerou 800 empregos diretor e indiretos durante a produção.

Os três também manifestaram apoio aos protestos contra os cortes na área da educação e insistiram que o país vive um momento de intolerância. Para Mendonça Filho, a vitória pode manter o debate sobre o financiamento público à cultura.

A classe cinematográfica, que se colocou em peso contra a eleição do atual presidente, ainda não conseguiu uma interlocução adequada com o governo. Para piorar, o atual presidente da agência, Christian de Castro, não tem conseguido gerir aquela que se anuncia como a pior crise do setor nos últimos 25 anos.

Por trás de três dos seis filmes com DNA nacional que estrearam em Cannes, o produtor Rodrigo Teixeira crê que faltou ao setor audiovisual ter pensado num plano B ao longo dos últimos anos. "Ficamos dependentes do incentivo estatal, que precisa continuar existindo, mas que não pode ser a única forma de financiamento", diz.

Ele acredita que ainda que falta união e liderança no setor. "Alguém tem que assumir esse papel e falar com o governo. Por mais que [Bolsonaro] também não tenha sido o meu candidato, ele foi eleito", diz. "O cinema é bom de briga, mas diálogo precisa existir com qualquer um."

No Brasil, Mendonça Filho responde a um processo envolvendo as contas de seu primeiro longa, "O Som ao Redor" (2012). A Secretaria Especial da Cultura, que hoje substitui o Ministério da Cultura, acusa a produtora do cineasta de ter captado R$ 1 milhão de forma irregular num edital para filmes de baixo orçamento e exige que ele devolva, em valores atualizados, R$ 2,2 milhões.

O diretor afirma que sofre acusações injustas e ainda pode recorrer ao Tribunal de Contas da União.

Os prêmios deste ano se somam a outros que o cinema brasileiro já recebeu nas 72 edições do festival. Em 1962 o país recebeu a Palma de Ouro com "O Pagador de Promessas", e, em 1969, Glauber Rocha venceu como melhor diretor por "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro". Também já foram premiadas as atrizes Fernanda Torres, por "Eu Sei Que Vou Te Amar" (1986), e Sandra Corveloni, por "Linha de Passe" (2008).